domingo, 22 de dezembro de 2013

Má educação é a nossa Cartago - TONY BELLOTTO O GLOBO - 22/12 - Confusão no domingo - FERREIRA GULLAR FOLHA DE SP - 22/12


Má educação é a nossa Cartago - TONY BELLOTTO

O GLOBO - 22/12

Torcedores rivais se enfrentaram numa batalha de fazer inveja ao mais descerebrado dos hunos


Colosso

O coliseu de Roma tem seu nome originado na expressão latina colosseum, que se referia à estátua gigantesca do imperador Nero que adornava seus entornos. O anfiteatro foi usado por quatro séculos como centro de entretenimento, e suas ruínas permanecem como símbolo fotografável do Império Romano e ponto turístico concorrido. Lá se exibiam combates de gladiadores, lutas e caçadas de animais selvagens, execuções sangrentas e até batalhas navais, quando a arena era inundada por dutos subterrâneos alimentados por aquedutos, prodígio da arquitetura etrusca assimilado pelos romanos.

Panis et circensis

A política do pão e circo foi utilizada por antigos administradores romanos com o intuito de dirimir o descontentamento do povo com seus governantes. A estratégia consistia em oferecer grandes espetáculos públicos enquanto se distribuía pão ao povaréu animado. A prática teve como consequências elevação de impostos e a subsequente derrocada da economia do Império. Vale dizer que tudo isso ocorreu dois mil anos antes da criação do Bolsa Família, do Ultimate Fighting e do Campeonato Brasileiro de Futebol.

De volta para o futuro

Há duas semanas um grupo de bárbaros brasileiros protagonizou na Arena Joinville — na aprazível cidade catarinense de altos índices de desenvolvimento humano — cenas lamentáveis de violência, embora desafortunadamente corriqueiras. Durante o jogo entre Atlético Paranaense e Vasco, torcedores rivais se enfrentaram numa batalha de fazer inveja ao mais descerebrado dos hunos, socando-se e chutando-se como se vivêssemos na Roma antiga. Injustiça: na Roma antiga o pessoal era mais civilizado. Lá os espetáculos aconteciam na arena, conduzidos por lutadores profissionais, enquanto o povo se divertia nas arquibancadas. Em Joinville, ao mesmo tempo em que jogadores profissionais se horrorizavam em campo com a barbárie, nas arquibancadas alguns representantes do cordial, alegre e pacífico povo brasileiro se incumbiam de tentar matar uns aos outros.

Breve pausa para orientação espacial

Onde está o Brasil verdadeiro? Na imagem dos boçais se agredindo em Joinville ou na da bela figura de Fernanda Lima anunciando na Bahia o sorteio das seleções da Copa do Mundo? Ambas as alternativas estão corretas? Respostas para a Redação.

Rebeldes sem causa, sem calça e sem graça

Com torcedores como esses, por que se preocupar com manifestantes?

As autoridades, a FIFA, a polícia e os brasileiros pacíficos não devem temer black blocs e outros possíveis — e prováveis — manifestantes que se insurjam violentamente contra a realização da Copa do Mundo no Brasil. Torcedores como os que se digladiaram em Joinville são manifestantes muito mais contundentes e radicais da grande desgraça brasileira e representam uma ameaça bem mais aterradora e eficiente. Ainda que se possa reduzi-los todos a farelo do mesmo sacolé, ao contrário dos black blocs os bárbaros de Joinville não usam máscaras, despreocupados com a revelação de suas identidades. Se forem presos, outros milhares surgirão, como zumbis, com a mesma determinação obstinada de destruição. Também ao contrário dos black blocs, os vândalos dos estádios — desculpe, das “arenas” — não agem motivados por nenhuma ideologia além da devoção canina a agremiações esportivas e preferem o aniquilamento sangrento de semelhantes à ingênua depredação de vidraças e placas de trânsito.

“Eis a beleza da coisa”, diria o doutor Strangelove com um sorriso, momentos antes de o mundo acabar numa grande hecatombe.

Catão

Os acontecimentos de Joinville só atestam mais uma vez que chegamos ao fundo do poço. E que o fundo do poço — surpresa! — não tem fundo. Desculpem-me os burocratas, os otimistas e os empreendedores de plantão, mas parece só haver uma solução para a barbárie brasileira: a Educação. Claro que situações como essa demandam medidas urgentes de segurança pública, infraestrutura, organização dos estádios e vergonha na cara, mas é bastante coerente que enquanto angariarmos resultados pífios em pesquisas sobre índices de educação, continuaremos a manifestar nossa violência irracional com requintes de campeões do mundo. No primeiro governo Lula uma das poucas coisas realmente animadoras foi a nomeação de Cristovam Buarque como ministro da Educação. Cristovam, assim como seu xará genovês, sabe que só se descobre um novo mundo com coragem, conhecimento de causa e determinação inabaláveis. Buarque preconizava uma revolução radical no ensino, mas caiu fora do governo tão logo os escândalos de corrupção começaram a pipocar. “Delenda est Carthago”, dizia Catão, político romano que sempre finalizava seus discursos alertando que Cartago, por ameaçar o Império Romano, devia ser aniquilada.


Confusão no domingo - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 22/12

Cada qual tem seus hábitos e manias; se quer que o namoro dure, o melhor é viver cada um no seu canto


Eles são namorados, mas moram em casas separadas. Ele no Leme, ela em Botafogo. É que, como já não são jovens, cada qual tem seus hábitos e manias, como querer de repente ficar só, gostar de programas de televisão diferentes, enfim, se quer que o namoro dure, o melhor é viver cada um no seu canto.

Disso resulta que, em vez de marido e mulher, continuam namorados. Telefonam-se todos os dias, mas nem sempre se encontram. Quando se encontram é para passear, jantar ou ir ao cinema, em geral aos domingos e feriados.

Ele lê para ela ao telefone o nome dos filmes que estão passando, a que hora e em qual cinema, e se encontram lá. Depois vão tomar um lanche, ou vai um para a casa do outro que ninguém é de ferro. Tudo certinho, como convém aos casais que não gostam de dramas nem de arranca-rabos.

E assim foi que marcaram para ir ao cinema naquela tarde de domingo. A escolha do filme foi feita, como de hábito, e já que o cinema era mais perto da casa dela que da dele, encarregou-se ela de comprar os ingressos.

Ele almoçou na hora de sempre e ligou a televisão para a última corrida do ano da Fórmula 1, particularmente interessante porque era a despedida de Felipe Massa da equipe da Ferrari. Depois lembrou-se que não ia dar tempo de ver o fim da corrida, pois prometera chegar ao cinema uns 20 minutos antes de começar o filme.

Fez os cálculos e concluiu que, se saísse de casa às 15h15, chegaria a tempo. Por isso, às 15h, começou a trocar de roupa, e na hora prevista estava já na rua tomando um táxi que o levaria ao cinema.

Chegou um pouco antes do que previra, pois o trânsito estava fluente, mais do que de costume. Ela ainda não havia chegado, conforme deduziu depois de atravessar a sala de espera e entrar na livraria que há ali. Estranhou, mas ficou vendo os livros para fazer hora. Abriu um deles, leu alguma coisa e, depois de um tempo, foi sentar-se na única cadeira que ainda estava livre, na entrada da lanchonete. Havia gente demais, formara-se uma fila enorme para ver não sabia qual filme. Mas ela não chegava!

Consultou o relógio, já estava na hora de entrar na sala de projeção, ela nada. Isso nunca havia acontecido, ela sempre chegava antes. Foi então que se lembrou de que, ao sair do apartamento, ao entrar no elevador, ouviu um telefone tocar, poderia ser o seu? Entrou no elevador e seguiu adiante. Seria ela? Teria acontecido alguma coisa e ela tentara avisar? E pior é que ele não usa celular, só o telefone fixo de casa. Não é nada disso, pensou, ela deve estar chegando.

Mas a aflição não cedia. Viu um rapaz com um celular e pediu a ele para fazer uma ligação. Ligou para a casa dela e ninguém atendeu. Ela tem celular, mas ele não sabia o número. Aflito, foi até a porta de entrada para esperá-la. Ficou ali uns dez minutos e nada. Decidiu tomar um táxi, ir até em casa e de lá telefonar para o celular dela. Foi, ligou, ela atendeu. "Estou aqui no cinema, acabei de chegar". E ele: "Mas já passam das 16 horas, o filme já começou. Você chegou depois de ter começado? Não acredito!".

E ela: "Já vou para aí", disse e desligou. Ele ficou perplexo, mas logo tomou uma decisão: desceu, pegou um táxi e voltou para o cinema. Encontrou-a na lanchonete: "Você está maluco. Por que veio tão cedo para o cinema? O filme só começa às cinco, são quatro e meia".

"É, você tem razão. Estou ficando matusquela. Meti na cabeça que o filme começava às quatro. Como você não chegou, fui para casa e de lá te liguei". E ela: "Você estava em casa?! Pensei que estivesse na porta do cinema me esperando! Que confusão!".

Riram e decidiram entrar na sala de cinema. Sentaram-se rindo da encrenca em que se haviam metido, até que as luzes se apagaram e na tela surgiram os anúncios. Depois a projeção de um trailer que não terminava nunca e, de repente, a luz acendeu de novo, cessou a projeção. Passaram-se os minutos e nada. Até que surgiu um funcionário do cinema e anunciou que o projetor dera um defeito, a sessão estava cancelada.

Sem dúvida alguma, aquele não era um dia de sorte do casal.

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