segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Agressões de alunos são principal motivo de doenças psicológicas entre educadores, afirma Lenine da Costa Ribeiro BBC

Agressões de alunos são principal motivo de doenças psicológicas entre educadores, afirma Lenine da Costa Ribeiro

BBC
Divulgação/Iamspe/BBC
Ribeiro é médico do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de SP
À frente de sessões de terapia em grupo para professores da rede pública há mais de 25 anos, o psiquiatra Lenine da Costa Ribeiro diz que as agressões físicas e verbais vindas de alunos são os principais motivos de doenças psicológicas entre os educadores que recorrem ao divã.
Segundo o médico do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo (Iamspe), seis em cada dez professores não conseguem mais voltar às salas de aula após enfrentarem episódios de agressões graves - como humilhação, ameaças e ataques físicos.
De acordo com Ribeiro, assumindo cargos de "readaptação", como funções na secretaria ou na biblioteca escolar, esses educadores tendem a ser vistos como figuras menos importantes do que aqueles que seguem dando aulas.
Desinteresse pela vida, depressão, perda de memória e problemas de cognição são algumas das consequências da violência no cotidiano das escolas, diz o psiquiatra. Leia, a seguir, a entrevista com o médico do Iamspe:
A violência na escola é um tema recorrente nas sessões de terapia?Lenine da Costa Ribeiro - O medo dos alunos, as situações de agressão e humilhação e a sensação de impotência são as queixas mais comuns nas reuniões. Fala-se sempre sobre salário ou infraestrutura das escolas, mas a insegurança do professor em relação aos alunos é um tema bem mais frequente. Os professores reclamam mais do medo que do salário.
Quais são suas consequências para a saúde dos professores?Surgem transtornos de ansiedade generalizada. O estresse pós-traumático é um agravamento importante da saúde mental e leva a sintomas como pânico em diferentes níveis, falta de interesse pela vida, depressão, perdas de memória, dificuldades de cognição e fobias distintas. São sintomas que não respondem rápido aos tratamentos e que por isso costumam ser longos, assim como os períodos de afastamento, que chegam a durar mais de um ano.
Como é esse tratamento?Primeiro, com medicação. Antidepressivos e neuromoduladores. O tratamento medicamentoso tenta abreviar o sofrimento o mais rápido possível, mas também são necessários pelo menos dois anos de monitoramento. Neste período o professor participa de sessões de psicoterapia feitas em grupo, onde todos compartilham e discutem experiências. Muitos deles são afastados das escolas até que consigam se recuperar.
Quais são os principais relatos compartilhados nas sessões?
Há pessoas que tinham grande capacidade de dar aulas, articulação didática, e que ficaram completamente apáticas. O mais frequente é a incapacidade do professor de dar aula porque está sendo impedido agressivamente. Ele não consegue mais se impor e perde toda a autoridade diante da turma. Ameaças também são frequentes, não são só ameaças contra a vida, mas contra o patrimônio da pessoa, como esvaziar os pneus do carro, por exemplo. O maior medo é sofrer reprimendas na rua, depois das aulas, fora da escola.
Algum caso que o tenha marcado?
Uma professora tinha advertido um aluno em sala. Na reunião de pais, a família, particularmente o pai, foi muito intensamente agressivo no auditório repleto de pessoas. Seu discurso era raivoso e acusador. Depois desse evento, ela nunca mais pode funcionar da mesma maneira. A maneira agressiva com que ele tentou tirar satisfações foi tão hostil e a estressou de tal forma que essa a professora nunca mais conseguiu dar aulas. A humilhação é tão dolorosa quanto a agressão física. São várias as formas de violência.
Pode falar sobre estas diferentes formas de agressão?A violência física não costuma ser tão explícita, ela é menos comum. Na rotina mesmo estão as agressões verbais, a desconsideração, um desrespeito profundo à condição do professor. O que acontece é uma descaracterização de seu papel. O educador, aquela pessoa que seria central e determinante na construção de um sujeito, de um indivíduo, de uma personalidade, é tirado de seu lugar. Isso é muito grave, tem consequencias muito importantes, porque cada agressão afeta não só a relação do professor com o agressor, mas também com todos os demais alunos.
É comum que os professores extravazem este estresse agressivamente sobre os alunos?
Quem está limitado não costuma criar enfrentamentos. Essas pessoas costumam ter respostas mais apáticas, por conta da ansiedade, da depressão. Isso tudo acaba colocando o professor numa situação de limitação e quase sempre quem está limitado não consegue entrar em situações de enfrentamento.
Como é o retorno destes professores à sala de aula?
O que vejo nesses casos é que o retorno acontece quase sempre de forma readaptada, e não à sala de aula. Uma porcentagem importante, em torno de 60% dos pacientes, volta para a escola ocupando funções administrativas, ou na biblioteca, na secretaria. A readaptação é às vezes a única maneira de dar continuidade ao cargo. Este retorno é muito difícil.
Como as escolas costumam reagir aos pedidos de afastamento?Posso falar sobre o momento do retorno. Os readaptados dizem sempre sofrer algum tipo de prejuízo. Isso acaba se tornando parte da própria condição social deles. Acabam sendo vistos como uma posição de menos valia, o que causa baixa autoestima. É como se eles passassem a ter menos valor do que aqueles que estão lecionando.
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    Agredida por alunos, diretora de escola em São Paulo desiste da profissão

    Agredida por alunos, diretora de escola em São Paulo desiste da profissão

    “Eu fui cercada por 300 alunos”, relata a educadora, que atribui a violência na escola a menores em liberdade assistida com passagem pela Fundação Casa

    Wanderley Preite Sobrinho - iG 
    Reprodução
    Trecho da ata formulada pelos professores da escola Luiz Gonzaga Righini e entregue à Diretoria de Ensino do centro da cidade
    Diretora de escola há 20 anos, H.R.S desistiu da profissão. Aos 51 anos, a educadora responsável pela escola estadual Luiz Gonzaga Righini, no bairro do Limão, zona norte de São Paulo, raramente sai de casa, onde administra os três antidepressivos receitados pelo médico que lhe deu 180 dias de licença após um trauma sofrido no último dia 17 de abril. Na manhã daquela quarta-feira, um grupo de alunos, segundo H.R.S., “liderados por garotos em liberdade assistida da Fundação Casa”, se rebelou contra ela no pátio da escola, onde foi agredida.
    “Fui cercada por 300 alunos. Os líderes me apontavam o dedo, enquanto outros jogavam papel, caderno, latinha, garrafa”, lembra a diretora, que prefere manter seu nome em sigilo. “Não vou mais voltar a trabalhar. Não dá mais. Depois da humilhação pela qual passei, não dá para voltar a escola nenhuma.”
    Os distúrbios começaram às 12h20 do dia anterior, quando um rapaz de 18 anos ajudou menores do primeiro ano do ensino médio a atearem fogo em uma cortina e duas mesas. Quem socorreu foi o professor de história Vinícius Vasconcellos. “A inspetora saiu correndo pelos corredores gritando ‘fogo, fogo’. Eu perguntei sobre o extintor, mas não havia nenhum. Precisei usar uma vassoura.”
    Mas foi no dia seguinte que a confusão terminou no Boletim de Ocorrência (B.O) 1245/2013. “Por volta das 9h, fui para uma classe impedir que alunos deixassem a sala enquanto havia a troca de aula”, lembra a diretora. Depois de 20 minutos esperando pela professora, que não apareceu, os alunos começaram a insurgir contra H.R.S. “Dois deles conseguiram fugir. Fui atrás, mas, quando cheguei ao pátio, os outros alunos vieram atrás.” Diante do tumulto, mais estudantes deixaram suas salas e seguiram o grupo. “Quando dei por mim, estava cercada por uns 300.”
    Liberdade assistida
    A diretora, que já trabalhou em outras quatro escolas, estava havia uma semana no Righini. “Pedi para ser transferida para lá porque tinha pontuação alta. Jamais imaginei que iria lidar com violência. Esta é a primeira vez que algo assim me acontece.”
    A diretora e o professor Vasconcellos atribuem “a crescente violência” na escola aos garotos da Fundação Casa que estão em liberdade assistida, conhecidos como “L.A”: menores que cometeram infrações leves e que, ao invés de serem internados na antiga Febem, são encaminhados pela Justiça à supervisão e orientação de entidades sociais, que trabalham em parceria com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. Em alguns casos, a Justiça avalia o comportamento de internos e concedem o benefício nos moldes da liberdade assistida, utilizada no sistema prisional.
    “Eles são uma espécie de tutores do jovem”, explica o advogado especializado em políticas de segurança pública Ariel de Castro Alves. “Em tese”, toda semana o menor deve comparecer à entidade, que oferece psicólogo, assistente social e advogado a ele e à família. A instituição, então, repassa o relatório à Justiça.
    De acordo com a Fundação Casa, 9.016 adolescentes recebem atendimento no Estado. Esse número exclui os menores em liberdade assistida, sob responsabilidade dos municípios desde 2010. De acordo com o especialista, há “40 mil jovens em L.A. ou prestando serviço à comunidade em todo o País”.
    “A legislação é completa, o problema é o cumprimento dela. Falta supervisão, fiscalização e integração entre as escolas e os programas sociais”, acredita o advogado. “Nem todos sabem como agir.”
    O caso envolvendo a diretora reforça a impressão. Segundo H.R.S, além do B.O, ela e os professores do Righini recorreram à Diretoria de Ensino do centro da cidade. “Nós, professores, descrevemos o ocorrido em uma ata e entregamos à diretoria, que prometeu aumentar a ronda escolar”, conta Vinícius.
    “Eles deveriam ter nos procurado e formalizado a denúncia”, afirma a psicóloga Cristiane Rodrigues, do Serviço de Medida Sócio Educativa do bairro da Cachoeirinha, responsável pelas ocorrências envolvendo menores em liberdade assistida em três bairros da zona norte.
    Cristiane explica que, recebida a denúncia, o núcleo tenta mediar a relação entre escola e aluno, entrando em contato com a família do menor e com a entidade designada para orientá-lo. “Não recebemos nenhuma denúncia dessa escola.”
    De acordo com a psicóloga, nem todas as instituições de ensino estão dispostas a receber o Serviço de Medida. “No final do ano passado marcamos uma reunião com defensores públicos e entregamos o convite a todas as escolas com menores em liberdade assistida. Ninguém apareceu. Encontramos muita resistência das escolas, que às vezes são preconceituosas contra menores nessas condições.”
    Ex-conselheiro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Alves concorda: “Confusão envolvendo L.A é relatada com frequência. Algumas escolas sugerem a criação de instituições específicas, o que seria um crime de preconceito.”
    H.R.S relata outros casos de violência nos pouco mais de sete dias em que comandou o Righini. Em um deles, “um professor foi atacado no rosto com um livro pesado. Ele fez B.O e o menino retornou à Fundação Casa”.
    Ela mesma já vinha sendo ameaçada por um aluno de 16 anos. “Ele ficava me esperando no portão me ameaçando de morte”, lembra. Ao visitar a escola, a reportagem encontrou um garoto da mesma idade que pedia para ser filmado com seu pingente dourado em forma de revólver. “Sou do PCC”, divertia-se ele. Repreendido por uma professora, ele rebateu: “Eu tenho é orgulho!”


      quinta-feira, 21 de agosto de 2014

      O ovo e o pinto - ESCRITO POR OLAVO DE CARVALHO


      A mente comunista não funciona segundo os cânones da psicologia usual, mas segue uma lógica própria onde se misturam, em doses indistinguíveis, a habilidade dialética, o auto-engano histérico e a mendacidade psicopática.

      Meu artigo anterior suscitou uma pergunta interessante na área de comentários: Se há tanta gente nas altas esferas colaborando com o comunismo, como é que ele ainda não dominou o mundo?

      A primeira e mais óbvia resposta é que “o comunismo” como regime, como sistema de propriedade, é uma coisa, e o “movimento comunista” enquanto rede de organizações é outra. O primeiro é totalmente inviável, mas por isso mesmo o segundo pode crescer indefinidamente sem jamais ser obrigado a realizá-lo, limitando-se, em vez disso, a colher os lucros do que vai roubando, usurpando, prostituindo e destruindo pelo caminho.

      São duas faixas de realidade completamente distintas, que se mesclam numa confusão desnorteante sob a denominação de “comunismo”.

      Uma analogia tornará as coisas mais claras. Nenhum ser humano pode levar uma vida razoável com base numa loucura, mas, por isso mesmo, nada o impede de ficar cada vez mais louco: ele se estrepa, mas a loucura progride.  A força da loucura consiste precisamente em furtar-se ao teste de realidade. Os comunistas não podem realizar a economia comunista. Se têm uma imensa facilidade em arrebanhar pessoas para que lutem por esse fim irrealizável, é precisamente porque ele é irrealizável, o que é o mesmo que dizer: inacessível a  toda avaliação objetiva de resultados. Jamais existirá uma economia comunista da qual seus criadores digam: “Eis aqui o comunismo  realizado. Podem julgar-nos e dizer se cumprimos ou não as nossas promessas.” É da natureza mais íntima do ideal comunista ser uma promessa indefinidamente auto-adiável, imune, por isso, a todo julgamento humano. Seu prestígio quase religioso vem exatamente disso: o comunismo traz o Juízo Final do céu para a Terra, mas também sem data marcada.

      Daí o aparente paradoxo de um movimento que, quanto mais cresce e mais poderoso se torna, mais se afasta dos seus fins proclamados. A esse paradoxo acrescenta-se um segundo: quanto mais se afasta desses fins, mais o movimento está livre para alegar que foi traído e que tem direito a uma nova oportunidade, com meios mais “puros”. Mas o paradoxo dos paradoxos reside numa faixa ainda mais profunda. Se alguém diz que vai fazer o impossível, com certeza não fará nada ou fará outra coisa. Se fizer, poderá ao mesmo tempo dar a essa coisa o nome daquilo que pretendia e alegar que ela ainda não é, ou que não é de maneira alguma, aquilo que pretendia. Daí a ambigüidade permanente do discurso comunista, que pode sempre se alardear um movimento poderoso destinado a uma vitória inevitável, e ao mesmo tempo minimizar ou negar a sua própria existência, jurando que ela não passa de uma “teoria da conspiração”, de uma invencionice de lacaios do capital.

      É alucinante, mas é o que acontece todos os dias. Definitivamente, a mente comunista não funciona segundo os cânones da psicologia usual, mas segue uma lógica própria onde se misturam, em doses indistinguíveis, a habilidade dialética, o auto-engano histérico e a mendacidade psicopática.

      Por isso mesmo é que o crescimento vertiginoso do movimento comunista acompanha, pari passu, não a decadência do capitalismo, mas a escalada do seu sucesso. O comunismo como regime, como sistema econômico, não existe nem existirá nunca. O comunismo só pode existir como movimento político que vive de parasitar o capitalismo e, por isso mesmo, cresce com ele.

      Mas, por mais que sobreviva e se fortaleça, o corpo parasitado não sai ileso da parasitagem: limitado cada vez mais à função de fornecedor de recursos e pretextos para o parasita, ele vai perdendo todos os valores morais, religiosos e culturais que originalmente o inspiraram e reduzindo-se à mecanicidade do puro jogo econômico, cada vez mais fácil de criticar, enquanto o parasita se adorna de todo o prestígio da moral e da cultura.

      modus operandi dessa parasitagem é duplo: de um lado, as economias comunistas só sobrevivem graças à ajuda capitalista vinda do exterior. De outro lado, em cada nação, o crescimento da economia capitalista alimenta cada vez mais generosamente a cultura comunista.

      Na mesma medida em que a mais absoluta inviabilidade impede a construção da economia comunista, o comunismo militante alcança vitória atrás de vitória no seu empenho de transformar o capitalismo numa geringonça infernal e sem sentido.

      Toda a lógica do comunismo, em última análise, deriva da idéia hegeliana do “trabalho do negativo”, ou destruição criativa. Mas “destruição criativa” é apenas uma figura de linguagem, uma metonímia. A destruição de uma coisa só pode dar lugar ao crescimento de outra se esta for movida desde dentro por uma força criativa própria, que nada deve à destruição.  Esperar que a destruição, por si, crie alguma coisa, é como querer que nasça um pinto de um ovo frito.



      Publicado no Diário do Comércio.

      terça-feira, 19 de agosto de 2014

      Utopia no condomínio - LUIZ FELIPE PONDÉ


      Utopia no condomínio - LUIZ FELIPE PONDÉ

      FOLHA DE SP - 18/08


      Imagine que você tem alguns vizinhos inadimplentes. Como ser 'legal' com eles?


      Todo mundo sabe como reunião de condomínio é um saco. Castigo pra uma noite depois do trabalho. Não é ótimo quando alguém resolve que uma "churrasqueira" (aquilo que faz fumaça e deixa tudo com cheiro de gordura) é um gênero de primeira necessidade?

      Muita gente suspeita de que, quando alguém quer ser síndico, é porque gosta de mandar ou tem muito tempo livre ou é muito limpinho ou, pior, está faltando ação na cama. Aliás, quem é muito limpinho é porque não tem mesmo uma boa cama suja.

      Penso nesse roteiro abaixo com intenções experimentais. Sempre que ouço pessoas "de boa vontade" (recentemente uma leitora me lembrou esta excelente frase, "desconfiar da bondade dos bons"!) falarem sobre como o mundo seria melhor se fizéssemos o que elas acham que deveríamos fazer, me lembro de reuniões de condomínio --principalmente quando se enfrenta o velho problema da inadimplência.

      Todo adulto sabe que o órgão mais sensível do homem é o bolso (menos os mentirosos). Pesquisas recentes mostram que casais toleram mais facilmente adultérios sexuais do que financeiros. Ele até pode comer a secretária, mas se der um apartamento pra ela, é demais. Ela até pode dar pro professor de tênis, mas se ganhar mais do que diz que ganha, aí ele não suporta. O adultério financeiro é mais intolerável do que o sexual, portanto. Que vá o corpo, mas que fiquem os anéis.

      Sigamos em nossa proposta de pôr as utopias no laboratório. Como eu dizia, o convívio em condomínios é a prova cabal de que qualquer utopia política é coisa de mau caráter ou iniciante em filosofia. Vejamos.

      Imagine que você tem alguns vizinhos inadimplentes. Agora pense, como ser "legal" com os inadimplentes? Alguém na reunião conta que o cara do 41 está com câncer. Como ele nunca vem às reuniões, por razões óbvias, como vocês poderão checar? Pedirão exames via oficial de Justiça? E se for verdade? Dividirão a dívida do condomínio entre vocês? Todo doente terá desconto? Mas a separada do 61, que cuida sozinha de três filhos porque o marido era um traste, pergunta: "Eu já acordo às seis todo dia pra trabalhar e levar meus filhos na escola (a perua escolar está um absurdo!), por que devo arcar com a inadimplência dos outros? E se eu ficar doente? Vocês vão cuidar de mim e meus três filhos?".

      Outro devedor, do 11, só sai de casa ao meio-dia. Dizem que é artista, por isso é difícil pagar as contas. Entretanto, trocou de carro recentemente, e você continua com aquele coreano que comprou em quatro anos de parcelamento, cinco anos atrás. Como proceder? Invadir a casa pra ver se ele de fato tem essa "atividade nobre que não vale pelo que se ganha mas pelo serviço que se presta à cultura"? E se for? Vão bancá-lo?

      E a família do 52? O marido perdeu o emprego, apesar de a esposa (que já está com aquele rosto opaco de mulher que não bebe há muito tempo) trabalhar como uma louca. Perdoamos a dívida deles? Ou instituímos que todos devem dar uma contribuição para o caixa da família do 52?

      Mas o pior mesmo foi a experiência do último inadimplente em questão. A síndica anterior, que era muito magra e silenciosa (vivia com gatos pela casa), conseguiu leiloar o apartamento 43, por que a dívida estava muito alta. No dia do despejo, o zelador conta pelos cantos que a filhinha do casal chorava perguntando porque aqueles homens estavam tirando-a do quarto dela. Dizem as más (ou boas?) línguas que fotos nas redes sociais apareceram com dizeres do tipo: "Parem com a violência nos condomínios!".

      Pra completar a pauta da reunião, havia a suspeita de que a moradora do 72, uma gostosa de uns 40 anos, estava dando em cima dos caras do prédio (mesmo os casados!). Como agir sem confessar que você tem preconceitos com mulheres separadas no elevador com seu marido ou que você é um invejoso porque a tal gostosa nunca olhou pra você?

      Enfim, imagino que a turma do "vamos fazer um mundo melhor" devia se concentrar em resolver os dramas dos condomínios antes de "fait la morale" (em francês é mais chique) pra cima de nós, que pagamos a conta.

      domingo, 17 de agosto de 2014

      Vocações e equívocos - Olavo de Carvalho

      Vocações e equívocos
      Olavo de Carvalho

      Bravo!, fevereiro de 2000

      Se você escreve, ou pinta, ou faz sermões na igreja, ou toca música, ou monta a cavalo, ou tira fotos, ou faz qualquer outra coisa que pareça interessante, já deve ter ouvido mil vezes a pergunta: "Você faz isso por dinheiro ou por prazer?" Tão infinitamente repetível é essa fórmula, que ela deve revelar algum traço profundo e permanente do modo brasileiro de ver as coisas – um lugar-comum ou topos da nossa retórica diária.
      Ora, todo lugar-comum é um recorte que enfatiza certos aspectos da realidade para momentaneamente dar a impressão de que os outros não existem. Logo, para compreendê-lo é preciso perguntar, antes de tudo, o que é que ele omite.
      O que está omitido na pergunta acima é a possibilidade de que alguém se dedique de todo o coração a alguma coisa sem ser por necessidade econômica nem por prazer – ou, pior ainda, que continue se dedicando a ela como se fosse a coisa mais importante do mundo mesmo quando ela só dá prejuízo e dor de cabeça. O que está omitido nessa pergunta — e no modo brasileiro de ver as coisas — é aquilo que se chama vocação.
      Vocação vem do verbo latino vocovocare, que quer dizer "chamar". Quem faz algo por vocação sente que é chamado a isso pela voz de uma entidade superior — Deus, a humanidade, a História, ou, como diria Viktor Frankl, o sentido da vida.
      Considerações de lucro ou prazer ficam fora ou só entram como elementos subordinados, que por si não determinam decisões nem fundamentam avaliações.
      No mundo protestante, germânico, há toda uma cultura e uma mística da vocação, e a busca da vocação autêntica é mesmo o tema do principal romance alemão, o Wilhelm Meister de Goethe. Nos países católicos a importância religiosa da vocação, consolidada na ética escolástica do "dever de estado" (por exemplo, o dever dos pais de família, dos comerciantes, dos militares etc.), foi perdendo relevo depois do Renascimento, cavando-se um abismo cada vez mais fundo entre o sacerdócio e as atividades "mundanas", esvaziadas de sentido na medida em que só o primeiro é considerado vocacional em sentido eminente. No Brasil, para agravar as coisas, a população foi constituída sobretudo de três espécies de pessoas: portugueses que vinham na esperança de enriquecer e não conseguiam voltar, negros apanhados à força e índios que não tinham nada a ver com a história e de repente se viam mal integrados numa sociedade que não compreendiam. É fácil perceber daí o imediatismo materialista dos primeiros (o qual, quando frustrado, se transforma em inveja e azedume que tudo deprecia, e que com tanta facilidade se disfarça em indignação moralista contra a corrupção e as "injustiças sociais"), e mais ainda a total desorientação vocacional do segundo e do terceiro grupos, brutalmente amputados do sentido da vida e por isto mesmo facilmente inclinados a sentir-se marginalizados mesmo quando já não o são mais.
      Um pouco da ética da vocação existe ainda entre nós graças à influência dos imigrantes, especialmente alemães, árabes e judeus, mas existe de modo tácito, implícito, jamais consagrado como valor consciente da nossa cultura e muito menos valorizado pelas escolas e pelos governos.
      A realização superior do homem na vocação é então substituída pela mera busca do emprego, visto apenas como meio de subsistência e sem nenhuma importância própria no que diz respeito ao conteúdo. A adaptação conformista a um emprego medíocre e sem futuro é considerado o máximo do realismo, a perfeição da maturidade humana. Tudo o mais é depreciado (e por isto mesmo hipervalorizado e ansiosamente desejado) como "diversão". Assim, entre o trabalho forçado e a diversão obsessiva (da qual o Carnaval é a amostra mais significativa), acumula-se na alma do brasileiro a inveja e uma surda revolta contra todos os que levem uma vida grande, brilhante e significativa, sobre os quais, mesmo quando são pobres, paira a suspeita de serem usurpadores e ladrões, pelo menos ladrões da sorte. Daí a famosa observação de Tom Jobim: "No Brasil, o sucesso é um insulto pessoal." Sim, nesse meio não se compreende outra lealdade senão o companheirismo dos fracassados, em torno de uma mesa de bar, despejando cerveja na goela e maledicência no mundo. Este é um país de gente que está no caminho errado, fazendo o que não quer, buscando alívio em entrenenimentos pueris e desprezíveis, quando não francamente deprimentes.
      Nossa ciência social, atada com cabresto maxista e cega às realidades psicológicas mais óbvias da nossa vida diária, jamais se deu conta da imensa tragédia vocacional brasileira que condena milhões de pessoas a viver presas como animaizinhos, entre a dor inevitável e o prazer impossível.
      É que a explosiva acumulação de paixões infames, inevitável nessa situação, é o caldo de cultura ideal para a germinação dos ressentimentos políticos. E uma ciência social rebaixada a instrumento auxiliar da demagogia não há de querer lançar luz justamente sobre aquela treva confusa da qual a demagogia se alimenta.

      Redescobrindo o sentido da vida - Olavo de Carvalho



      Redescobrindo o sentido da vida
      Olavo de CarvalhoPrimeira Leitura, novembro de 2005

      Freud assegurava que, reduzido à privação extrema, o ser humano perderia sua casca de espiritualidade e poria à mostra sua verdadeira natureza, comportando-se como um bicho. Victor Emil Frankl, psiquiatra, judeu e austríaco como Freud, não acreditava nisso, mas não teve de inventar uma resposta ao colega: encontrou-a pronta no campo de concentração de Theresienstadt durante a II Guerra Mundial. Ali, reduzidos a condições de miséria e pavor que no conforto do seu gabinete vienense o pai da psicanálise nem teria podido imaginar, homens e mulheres habitualmente medíocres elevavam-se à dimensão de santos e heróis, mostrando-se capazes de extremos de generosidade e auto-sacrifício sem a esperança de outra recompensa senão a convicção de fazer o que era certo. A privação despia-os da máscara de egoísmo biológico de que os revestira uma moda cultural leviana, e trazia à tona a verdadeira natureza do ser humano: a capacidade de autotranscendência, o poder inesgotável de ir além do círculo de seus interesses vitais em busca de um sentido, de uma justificação moral da existência.
      Uma recente viagem a Filadélfia, onde a Universidade da Pennsylvania comemorava com um ciclo de conferências o centenário de nascimento do criador da Logoterapia, trouxe-me a lembrança animadora de que na história das idéias tudo se dá como na vida dos indivíduos: mesmo a extrema indigência espiritual consolidada por séculos de idéias deprimentes não impede que, de repente, a consciência do sentido da vida ressurja com uma força e um brilho que pareciam perdidos para sempre. A evolução do pensamento moderno, de Maquiavel ao desconstrucionismo, é marcada pela presença crescente do fenômeno que denomino "paralaxe cognitiva": o hiato entre o eixo da experiência pessoal e o da construção teórica. Cada novo "maître à penser" esmera-se em criar teorias cada vez mais sofisticadas que sua própria vida de todos os dias desmente de maneira flagrante. A "análise existencial" de Frankl, a contrapelo do "existencialismo" de Heidegger e Sartre que é uma apoteose da paralaxe, recupera o dom de raciocinar desde a experiência direta, que ao longo da modernidade foi renegada pelos filósofos e só encontrou refúgio entre os poetas e romancistas.
      O que Frankl descobriu em Thesienstadt foi que além do desejo de prazer e da vontade de poder existe no homem uma força motivadora ainda mais intensa, a "vontade de sentido": a alma humana pode suportar tudo, exceto a falta de um significado para a vida. Ao contrário, dizia Frankl, "se você tem um porquê, então pode suportar todos os comos ". A privação de sentido origina um tipo de neurose que Freud e Adler não haviam identificado, e que é a forma de sofrimento psíquico mais disseminada no mundo de hoje: a neurose noogênica , isto é, de causa espiritual, marcada pelo sentimento de absurdo e vacuidade. A análise existencial é a redescoberta da lógica por trás do absurdo, a reconquista do estatuto espiritual humano que torna a vida digna de ser vivida. A logoterapia é a técnica psicoterápica que faz da análise existencial uma ferramenta prática para a cura das neuroses noogênicas.
      Uma pesquisa da Biblioteca do Congresso mostrou que "Man's Search for Meaning", a mistura de autobiografia, análise filosófica e tratado psicoterápico em que Frankl expõe as conclusões da sua experiência no campo de concentração, é um dos dez livros que mais influenciaram o povo americano. Se, a despeito disso, a obra de Frankl ainda não alcançou o lugar merecido nas atenções do establishment acadêmico, é simplesmente porque este é o templo da paralaxe cognitiva.
      * * *
      Livros de Victor Frankl no Brasil:
      Em Busca de Sentido (Vozes-Sinodal)
      Psicoterapia Para Todos (Vozes)
      A Questão do Sentido em Psicoterapia (Papirus)
      Um Sentido para a Vida (Santuário)
      Sede de Sentido (Quadrante)
      Psicoterapia e Sentido da Vida (Quadrante)
      A Presença Ignorada de Deus (Vozes-Sinodal)

      A mensagem de Viktor Frankl - Olavo de Carvalho



      A mensagem de Viktor Frankl
      Olavo de Carvalho
      Bravo!, novembro de 1997
      No dia 2 de setembro [de 1997] morreu, aos 92 anos, um dos homens realmente grandes deste século. Acabo de escrever isto e já tenho uma dúvida: não sei se o médico judeu austríaco Viktor Frankl pertenceu mesmo a este século. Pois ele só viveu para devolver aos homens o que o século XX lhes havia tomado - e não poderia fazê-lo se não fosse, numa época em que todos se orgulham de ser "homens do seu tempo", alguém muito maior do que o século.
      Viktor Emil Frankl, nascido em Viena em 26 de março de 1905, foi grande nas três dimensões em que se pode medir um homem por outro homem: a inteligência, a coragem, o amor ao próximo. Mas foi maior ainda naquela dimensão que só Deus pode medir: na fidelidade ao sentido da existência, à missão do ser humano sobre a Terra.
      Homem de ciência, neurologista e psiquiatra, não foi o estudo que lhe revelou esse sentido. Foi a temível experiência do campo de concentração. Milhões passaram por essa experiência, mas Frankl não emergiu dela carregado de rancor e amargura. Saiu do inferno de Theresienstadt levando consigo a mais bela mensagem de esperança que a ciência da alma deu aos homens deste século.
      O que possibilitou esse milagre singular foi a confluência oportuna de uma decisão pessoal e dos fatos em torno. A decisão pessoal: Frankl entrou no campo firmemente determinado a conservar a integridade da sua alma, a não deixar que seu espírito fosse abatido pelos carrascos do seu corpo. Os fatos em torno: Frankl observou que, de todos os prisioneiros, os que melhor conservavam o autodomínio e a sanidade eram aqueles que tinham um forte senso de dever, de missão, de obrigação. A obrigação podia ser para com uma fé religiosa: o prisioneiro crente, com os olhos voltados para o julgamento divino, passava por cima das misérias do momento. Podia ser para com uma causa política, social, cultural: as humilhações e tormentos tornavam-se etapas no caminho da vitória. Podia ser, sobretudo, para com um ser humano individual, objeto de amor e cuidados: os que tinham parentes fora do campo eram mantidos vivos pela esperança do reencontro. Qualquer que fosse a missão a ser cumprida, ela transfigurava a situação, infundindo um sentido ao nonsense do presente. Esse senso de dever era a manifestação concreta do amor - o amor pelo qual um homem se liberta da sua prisão externa e interna, indo em direção àquilo que o torna maior que ele mesmo.
      O sentido da vida, concluiu Frankl, era o segredo da força de alguns homens, enquanto outros, privados de uma razão para suportar o sofrimento exterior, eram acossados desde dentro por um tirano ainda mais pérfido que Hitler - o sentimento de viver uma futilidade absurda.
      Frankl tinha três razões para viver: sua fé, sua vocação e a esperança de reencontrar a esposa. Ali onde tantos perderam tudo, Frankl reconquistou não somente a vida, mas algo maior que a vida. Após a libertação, reencontrou também a esposa e a profissão, como diretor do Hospital Policlínico de Viena.
      Assim ele registra, no seu livro Man's Search for Meaning, uma das experiências interiores que o levaram à descoberta do sentido da vida:
      "Um pensamento me traspassou: pela primeira vez em minha vida enxerguei a verdade tal como fora cantada por tantos poetas, proclamada como verdade derradeira por tantos pensadores. A verdade de que o amor é o derradeiro e mais alto objetivo a que o homem pode aspirar. Então captei o sentido do maior segredo que a poesia humana e o pensamento humano têm a transmitir: a salvação do homem é através do amor e no amor. Compreendi como um homem a quem nada foi deixado neste mundo pode ainda conhecer a bem-aventurança, ainda que seja apenas por um breve momento, na contemplação da sua bem-amada. Numa condição de profunda desolação, quando um homem não pode mais se expressar em ação positiva, quando sua única realização pode consistir em suportar seus sofrimentos da maneira correta - de uma maneira honrada -, em tal condição o homem pode, através da contemplação amorosa da imagem que ele traz de sua bem-amada, encontrar a plenitude. Pela primeira vez em minha vida, eu era capaz de compreender as palavras: 'Os anjos estão imersos na perpétua contemplação de uma glória infinita'."
      Frankl transformou essa descoberta num conceito científico: o de doenças noogênicas. Noogênico quer dizer "proveniente do espírito". Além das causas somáticas e psíquicas do sofrimento humano, era preciso reconhecer um sofrimento de origem propriamente espiritual, nascido da experiência do absurdo, da perda do sentido da vida: "O homem, dizia ele, pode suportar tudo, menos a falta de sentido."
      Das reflexões de Frankl sobre a experiência do absurdo nasceu um dos mais impressionantes sistemas de terapia criados no século dos psicólogos: a logoterapia, ou terapia do discurso - um conjunto de esquemas lógicos usados para desmontar os subterfúgios com que a mente doentia procura eludir a questão decisiva: a busca do sentido.
      Mas o sentido não teria o menor poder curativo se fosse apenas uma esperança inventada. A mente não poderia encontrar dentro de si a solução de seus males, pela simples razão de que o seu mal consiste em estar fechada dentro de si, sem abertura para o que lhe é superior. Em vez de criar um sentido, a mente tem de submeter-se a ele, uma vez encontrado. O sentido não tem de ser moldado pela mente, mas a mente pelo sentido. O sentido da vida, enfatiza Frankl, é uma realidade ontológica, não uma criação cultural. Frankl não dá nenhuma prova filosófica desta afirmativa, mas o caminho mesmo da cura logoterapêutica fornece a cada paciente uma evidência inequívoca da objetividade do sentido da sua vida. O sentido da vida simplesmente existe: trata-se apenas de encontrá-lo.
      Universal no seu valor, individual no seu conteúdo, o sentido da vida é encontrado mediante uma tenaz investigação na qual o paciente, com a ajuda do terapeuta, busca uma resposta à seguinte pergunta: Que é que eu devo fazer e que não pode ser feito por ninguém, absolutamente ninguém exceto eu mesmo? O dever imanente a cada vida surge então como uma imposição da estrutura mesma da existência humana. Nenhum homem inventa o sentido da sua vida: cada um é, por assim dizer, cercado e encurralado pelo sentido da própria vida. Este demarca e fixa num ponto determinado do espaço e do tempo o centro da sua realidade pessoal, de cuja visão emerge, límpido e inexorável, mas só visível desde dentro, o dever a cumprir.
      Em vez de dissolver a individualidade humana nos seus elementos, mediante análises tediosas que arriscam perder-se em detalhes irrelevantes, a logoterapia busca consolidar e fixar o paciente, de imediato, no ponto central do seu ser, que é, e não por coincidência, também o ponto mais alto. Eis aí por que é inútil buscar provas teóricas do sentido da vida: ele não é uma máxima uniforme, válida para todos - é a obrigação imanente que cada um tem de transcender-se. Discutir o sentido da vida sem realizá-lo seria negá-lo; e, uma vez que começamos a realizá-lo, já não é preciso discuti-lo, porque ele se impõe com uma evidência que até a mente mais cínica se envergonharia de negar.
      A logoterapia tem uma imponente folha de sucessos clínicos. Porém mais significativa do que suas aplicações médicas talvez seja a função que ela desempenhou e desempenha - a missão que ela cumpre - no panorama da cultura moderna. Num século que tudo fez para deprimir o valor da consciência humana, para reduzi-la a um epifenômeno de causas sociais, biológicas, lingüisticas, etc., Frankl nadou na contracorrente e ninguém conseguiu detê-lo. Ninguém: nem os guardas do campo nem as hostes inumeráveis de seus antípodas intelectuais - os inimigos da consciência. Frankl apostou no sentido da vida e na força cognoscitiva da mente individual. Apostou nos dois azarões do páreo filosófico do século XX, desprezados por psicanalistas, marxistas, pragmatistas, semióticos, estruturalistas, desconstrucionistas - por todo o pomposo cortejo de cegos que guiam outros cegos para o abismo. Apostou e venceu. A teoria da logoterapia resistiu bravamente a todas as objeções, sua prática se impôs em inúmeros países como o único tratamento admissível para os casos numerosos em que a alma humana não é oprimida por fantasias infantis mas pela realidade da vida. Por isto mesmo a crítica cultural de Frankl, parte integrante de uma obra onde o médico e o pensador não se separam um momento sequer, tem um alcance mais profundo do que todas as suas concorrentes. Desde seu posto de observação privilegiado, ele pôde enxergar o que nenhum intelectual deste século quis ver: a aliança secreta entre a cultura materialista, progressista, democrática, cientificista, e a barbárie nazista. Aliança, sim: seria apenas uma coincidência que o século mais empenhado em negar nas teorias a autonomia e o valor da consciência também fosse o mais empenhado em criar mecanismos para dirigi-la, oprimi-la e aniquilá-la na prática? Dirigindo-se a um público universitário norte-americano, Viktor Frankl pronunciou estas palavras onde a lucidez se alia a uma coragem intelectual fora do comum:
      "Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-saxônicos laureados com o Prêmio Nobel. É que, se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de umas moléculas de proteína, pouco importa que um psicopata seja eliminado como inútil e que ao psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores: tudo isto não é senão raciocínio lógico e conseqüente." (Sêde de Sentido, trad. Henrique Elfes, São Paulo, Quadrante, 1989, p. 45.)
      Com declarações desse tipo, ele pegava pela goela os orgulhosos intelectuais denunciadores da barbárie e lhes devolvia seu discurso de acusação, desmascarando a futilidade suicida de teorias que não assumem a responsabilidade de suas conseqüências históricas. Pois o mal do mundo não vem só de baixo, das causas econômicas, políticas e militares que a aliança acadêmica do pedantismo com o simplismo consagrou como explicações de tudo. Vem de cima, vem do espírito humano que aceita ou rejeita o sentido da vida e assim determina, às vezes com trágica inconseqüencia, o destino das gerações futuras.
      Frankl era judeu, como foram judeus alguns dos criadores daquelas doutrinas materialistas e desumanizantes que prepararam, involuntariamente, o caminho para Auschwitz e Treblinka. Se ele pôde ver o que eles não viram, foi porque permaneceu fiel à liberdade interior que é a velha mensagem do Sentido em busca do homem: "SE ME ACEITAS, Israel, Eu sou o Teu Deus."
      (Publicado na revista Bravo! de novembro de 1997, e reproduzido em "O Imbecil Coletivo II") 
      Esta postagem é direcionada a meu querido sobrinho, Matheus Souto Maior Barros. Rafael Brasil.

      O invariável - MARTHA MEDEIROS

      O invariável - MARTHA MEDEIROS

      ZERO HORA - 17/08


      Outro dia escutei uma mulher separada decretar o fim da mesmice: resolveu se esbaldar na vida. Disse ela que não queria mais saber de relação fixa e que saía quase todas as noites a fim de se divertir apenas. Tem conhecido muitos caras diferentes, com alguns chega às vias de fato, e é isso aí, adeus à monotonia.

      Mas o olhar dela não soltava faíscas, ao contrário, parecia bem opaco.

      Naquele momento, lembrei uma frase do blog de um amigo paulista, o Eduardo Haak. Ele recentemente escreveu: “Nada é mais invariável do que as supostas variedades”. De primeira, quando li, me bateu uma estranheza, fiquei na dúvida se ele estava sendo irônico ou o quê, até que, ouvindo a moça baladeira contar de seus recordes de revezamento, me dei conta de que a situação dela era ilustrativa: toda variação que se torna sistemática também é mais do mesmo.

      Ou seja, nada impede que a busca de um amor a cada sexta-feira se torne uma situação igualmente sujeita ao tédio. Virar refém da variedade pode ser uma atitude tão rotineira quanto dedicar-se a uma única pessoa por anos – arrisco até dizer que, ao dedicar-se a uma única pessoa, a chance de se ter uma vida mais dinâmica dispara.

      Por quantas fases passa uma relação? O frio na barriga inicial, a paixão febril, as surpresas a cada nova revelação, as descobertas feitas a dois, a aproximação dos corpos, a intimidade cada vez maior, os amigos e a família agregando-se, cada viagem uma lua de mel, a troca de confidências, as diferenças aparecendo, os acordos feitos para manter a coisa funcionando, ajustes necessários, a paixão virando amor, a segurança da companhia um do outro, as fotografias se acumulando, planos sendo feitos a longo prazo, a primeira briga, as saudades, a consciência de que aquela pessoa é essencial, o reatamento, as juras, os cuidados para que não desande nunca mais, todos os cinemas, cafés da manhã, leituras compartilhadas, risadas, os comentários de fim de festa, as piadas internas, a confiança, os cafunés, os pedidos de conselho, a hora de ser amigo, a hora de ser bandido, o sexo evoluindo, o amor se fortalecendo, a passagem do tempo trazendo novos desafios, o orgulho pelo que está sendo construído, os estouros, os gritos, os beijos de novo... ufa, alguém aí me alcança um copo d’água?

      Amar não é para amadores, e quando a relação é honesta, sólida e os protagonistas têm algum tutano, duvido que o enfado dê as caras.

      É a variedade de parceiros que evita o aborrecimento? Nunca funcionou comigo. Nem no amor, nem fora dele. A alucinada atualização de notícias, a velocidade das redes sociais, os dias pulsando em ritmo supersônico, tudo o que não permite foco e entrega, hoje em dia, só me causa bocejos. Aprofundar-se é que é a verdadeira vertigem.

      quinta-feira, 14 de agosto de 2014

      Os pais e a escola - CONTARDO CALLIGARIS


      Os pais e a escola - CONTARDO CALLIGARIS

      FOLHA DE SP - 14/08


      Quase todo envolvimento dos pais na vida escolar dos filhos não tem efeito --ou tem efeito negativo


      Alguém, na burocracia da Educação Nacional francesa, já atribuiu notas boas a meus desenhos, tanto de tema livre (mais "artísticos") como figurativos (uma banana, uma laranja, uma maçã ou, mais difícil, uma alcachofra).

      De qualquer jeito, não tenho do que me gabar. As notas foram decididas pensando que o autor dos desenhos fosse meu filho, que na época tinha dez anos.

      Não havia outro jeito. A mãe de meu filho, de quem eu tinha me separado, aceitara que ele morasse um ano no Brasil comigo, mas à condição que ele não interrompesse sua escolaridade francesa. Em Porto Alegre, onde eu morava, isso só era possível se ele fosse escolarizado por correspondência.

      A cada sexta-feira, chegava da França um temível envelope da Educação Nacional, com todo o necessário para cumprir o programa escolar da semana. A dose de lições de casa era assustadora e inesgotável.

      Durante um ano, fiz lição de casa com meu filho. No domingo acontecia a arrancada final, pois o envelope das lições feitas devia imperativamente sair pelo correio na segunda: a gente trabalhava até as primeiras horas da madrugada, quando eu me encarregava dos desenhos de artes, enquanto ele completava o resto.

      1) A quantidade de lições era insensata; 2) Estudar por correspondência era insensato, porque a escola deveria servir para estudar, mas também para socializar as crianças; 3) Eu fazer parte das lições dele (não só de artes) era insensato.

      Apesar disso, num tributo ao espírito da pedagogia contemporânea, pela qual é bom que os pais se envolvam quanto mais possível na escolaridade dos filhos, eu imaginava que nossa "colaboração" criaria uma grande motivação futura.

      Hoje, enfim, dá para afirmar que eu estava errado. Foi publicado em 2013 "The Broken Compass: Parental Involvement with Children Education" (a bússola quebrada: envolvimento dos pais na educação das crianças - Harvard University Press), em que os autores, K. Robinson e A. L. Harris, sociólogos, verificaram a eficácia (ou não) do envolvimento dos pais nos estudos dos filhos.

      Eles estabeleceram 63 critérios para medir o envolvimento dos pais na vida escolar dos filhos e procuraram os efeitos desse envolvimento ao longo de três décadas. Pois bem, eles chegaram à conclusão que quase todo envolvimento dos pais na vida escolar dos filhos é sem efeito, quando não tem efeito negativo.

      Se você ajuda as crianças a fazer a lição de casa, isso vai melhorar temporariamente as notas, mas, a médio e longo prazo, isso não melhorará a performance escolar dos seus rebentos. Apenas satisfaremos nossa vontade imediata de ver notas melhores nos cadernos de nossos filhos.

      Se você sacrifica seu fim de semana para estar na escola, vendendo cupcakes na festa junina porque ouviu dizer que o envolvimento dos pais na vida da escola é um grande motivador para as crianças, saiba que, realmente, não é preciso.

      Claro, sou parcial (não gosto de cupcakes e não gosto de festa junina), mas está provado que esse tipo de envolvimento dos pais não tem efeito constatável.

      Diga-se o mesmo para as reuniões trimestrais com cada professor de nossas crianças, matéria por matéria: você pode ir, mas quando der, ok?

      Robinson e Harris, em suma, sugerem que voltemos à antiga separação de casa e escola, as quais não precisam compartilhar problemas num excesso de fala sobre a criança.

      Desde os anos 1970, acreditamos que uma aliança escola-família seja boa para a performance escolar dos nossos filhos. Descobre-se que, às vezes, é bom que a criança possa descansar dos pais quando está na escola --e descansar da escola quando está em casa.

      O que se salva da ideologia da aliança casa-escola? Robinson e Harris acham que três coisas, principalmente, têm efeito positivo: 1) o valor que os pais atribuem à educação, 2) sua capacidade de conversar com os filhos sobre o futuro deles, 3) a leitura em voz alta com os pequenos.

      O engraçado é que são coisas que os pais fazem em casa, com filhos e filhas --coisas, em suma, que não pedem nenhuma aliança especial entre a casa e a escola.