domingo, 26 de janeiro de 2014

NÃO PERCAM ESTE VÍDEO - O homem que viu Zé Limeira

Tejo e Zé Limeira - BRÁULIO TAVARES

Tejo e Zé Limeira

Está disponível no YouTube (http://bit.ly/IFR927) o documentário da TV Senado, dirigido por Maurício Melo Jr., “O Homem Que Viu Zé Limeira”, sobre o poeta Orlando Tejo e o seu famoso personagem. Zé Limeira é um personagem épico, no sentido de ser alguém que provavelmente teve existência física mas acabou recebendo uma estatura mitológica. Virou um agregador de lendas, um atrator da imaginação alheia. O cantador de Tauá tornou-se assim por obra e graça de Orlando Tejo e seu livro “Zé Limeira, o Poeta do Absurdo”, um dos livros clássicos sobre a Cantoria de Viola, além de sobre Campina Grande e a Paraíba inteira.
Em princípios dos anos 1970, mais ou menos, Orlando Tejo decidiu-se a colocar no papel as histórias que sabia sobre Zé Limeira, que era um negro alto, de voz poderosa, e tinha um carisma peculiar onde se misturavam a simpatia, uma certa ingenuidade ou primitivismo (consta que ele tinha medo de trem de ferro) e uma capacidade inesgotável para fazer versos sem pé nem cabeça.
Toda cultura tem seu capítulo de nonsense, e muita gente já registrou, aqui mesmo no Nordeste, a presença de poetas que dão 100% de atenção ao som e zero ao sentido. Poetas que vivem para a métrica e a rima, sem dar a menor bola para o que estão dizendo. Zé Limeira tornou-se tão famoso, devido ao livro de Tejo, que hoje certamente muitos versos absurdos de outros poetas são transferidos para ele. Isso sem falar nos versos (esta questão é debatida no filme) que teriam sido escritos por Otacílio Batista e outros amigos de Tejo, depois que este se preocupou com a pequena quantidade de versos autênticos que teria recolhido.
Poeta contando história, os versos que achou são poucos? Não tem problema, qualquer um faz mais. Não é tão difícil, havendo um tal precedente. Quando eu fazia parte da Comissão de Seleção do Congresso Nacional de Violeiros, em Campina, incluí o mote “Se eu quiser eu também faço / igualzinho a Zé Limeira”, que é glosado até hoje, e aparece também no filme. Limeira virou um estilo, pouco importa a pessoa.
O filme entrevista inúmeros poetas e fãs da cantoria (eu inclusive), mas devemos tirar um chapéu especial para Vladimir Carvalho. Deve-se a ele, e a sua mania de filmar tudo, a presença viva de Orlando Tejo neste documentário: falando, rindo, recitando, descrevendo Zé Limeira em detalhes, cantando sambas. (Eu conheço Tejo há quase 50 anos e nunca o tinha visto tocando violão.) Boêmio, gozador, improvisador fino, gente boa até a medula, Orlando Tejo deveria ter sua obra poética esparsa reunida em livro, e se isto acontecer um dia talvez ele acabe se tornando mais famoso do que sua mais famosa criação.

Brincando com luz - FERREIRA GULLAR FOLHA DE SP - 26/01

Brincando com luz - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 26/01

Ver arte hoje tem um preço, que tanto pode ser um barulho ensurdecedor como sentir-se ameaçado


Os movimentos de vanguarda do começo do século 20, ao romperem os vínculos que tradicionalmente, na arte ocidental, ligavam a linguagem artística à representação da realidade, abriram caminho para as mais diversas experiências no campo da expressão artística.

Alguns quadros cubistas são exemplos notórios disso: ao colar, na tela, recortes de jornal em vez de representá-los pictoricamente, fizeram dela um espaço expressivo que tudo aceitava, desde papéis colados até areia, arame, barbante ou o que fosse.

Estava aberto o caminho para toda e qualquer maneira de criar a obra de arte, fora de todo princípio estético a priori e de qualquer linguagem existente. O urinol de Marcel Duchamp é exemplo marcante dessa ruptura e de suas consequências futuras. Ele mesmo é o autor da frase que define a nova situação: "Será arte tudo o que eu disser que é arte".

Essa é a manifestação mais radical daquele momento de questionamento das linguagens estéticas consagradas. Mas foram feitas outras experiências, especialmente pelos dadaístas, sem o mesmo radicalismo de Duchamp.

Dentre essas novas tentativas estão o "Merzbau", de Kurt Schwitters, e o Clavilux, de Thomas Wilfred. São experiências muito diversas, pois, enquanto Schwitters montava a sua obra com o que trazia da rua e acrescentava a ela, Wilfred construiu um piano que em vez de sons produzia formas coloridas numa tela em frente. Ele foi o precursor da arte que usa como linguagem a cor-luz em movimento.

É, portanto, no Clavilux, que está a origem das obras que Julio Le Parc expõe atualmente na Casa Daros, no Rio.

A primeira vez que vi obras de Le Parc foi em começos da década de 1960 e eram muito diferentes destas que hoje expõe.

Aquelas eram telas com formas abstratas pintadas e outras recortadas em placas coloridas que se moviam. Confesso que não me causaram maior impressão, entre outras razões pelo fato de que o movimento das formas se repetia seguidamente.

Aliás, esse é o problema que enfrenta quem tenta introduzir o movimento real na linguagem pictórica. Foi enfrentado por Abraham Palatnik quando criou seus aparelhos cinecromáticos e por Thomas Wilfred com seu Clavilux. Está presente em alguns dos trabalhos mostrados agora por Le Parc, muito embora em alguns deles isso não ocorra. Mas não é esse o principal problema, uma vez que essa exposição do artista argentino compreende mais de dez salas totalmente às escuras.

Ao entrar na exposição, muito embora tenha sido avisado pela funcionária, senti-me totalmente perdido na treva de uma sala de que não vi as paredes e, por isso, não sabia se ia esbarrar em alguma delas ou tropeçar em algum degrau. Mantive-me parado, tenso, sem saber o que fazer. Percebi outras pessoas a meu redor mas tampouco as via. Depois dei alguns passos e pude vislumbrar, adiante, numa parede, um fervilhar de luzes. Tateando, passo a passo, fui me deslocando em direção àquelas luzes, já mais confiante.

Mas, o que fazer? Ver arte hoje tem um preço, que tanto pode ser um barulho ensurdecedor como sentir-se ameaçado ou perdido.

Nesse caso, tem sentido estarem as salas às escuras, uma vez que os trabalhos expostos são basicamente projeções luminosas. Não resta dúvida de que cada uma delas resulta das possibilidades de criar efeitos luminosos muitas vezes surpreendentes.

Outras vezes, porém, isso não ocorre; a própria presença dos equipamentos usados para provocar aqueles efeitos já retira deles o mistério que deveria envolver a relação entre a obra e o espectador.

Isso à parte, percebo que quase nenhuma daquelas obras suscita no espectador maior emoção. Antes, provoca o prazer próprio ao entretenimento, o que não desmerece a competência com que são realizadas. Le Parc consegue o resultado oposto ao das obras de Wilfred, em que o movimento das formas luminosas, lento e denso, leva-nos a um estado de descoberta e reflexão.

Saí da exposição de Le Parc como se nada de importante houvesse visto. São trabalhos elaborados e inventivos, mas não chegam a ser arte maior, no sentido pleno da palavra

domingo, 19 de janeiro de 2014

Gélidas lembranças - FERREIRA GULLAR


domingo, janeiro 19, 2014


Gélidas lembranças - FERREIRA GULLAR

FOLHA DE SP - 19/01

Quem está com a razão, os que dizem que o planeta está esquentando ou os que dizem que está esfriando?

Eu, que nasci numa cidade tropical, que ali me criei a uma temperatura média de 27 a 30 graus Celsius --isso nos períodos mais amenos--, não é que um dia me encontrei na cidade de Moscou enfrentando uma temperatura de dez graus abaixo de zero? Avalia só como me sentia ali eu que, no inverno carioca, se o frio chegasse a 16 graus, pensava que ia virar picolé. É nisso que dá se meter em política.

Confesso que quase pensei isso, quando me vi metido em ceroulas de lã, calças, suéter, cachecol, paletó e capote, que pesavam muitos quilos. Isso sem falar na "chapka" --aquela touca de lã que desabotoa e protege o rosto quando o vento frio se torna insuportável. E os lábios? Se você os deixar expostos, racham.

Lembrei disso na semana passada, quando vi na televisão as cidades norte-americanas soterradas sob a neve. A televisão mostrou cidadãos apreensivos, temendo que a temperatura baixasse ainda mais. Já estava, em alguns lugares, por volta de 50 graus abaixo de zero. É temperatura da Sibéria, pensei comigo.

Enquanto isso, no Brasil, estávamos sobrevivendo a uma sensação térmica de 50 graus acima de zero. É impossível não perguntar o que ocorre com o nosso planeta. No final das contas, quem está com a razão, os que dizem que o planeta está esquentando ou os que dizem que ele está esfriando? Quero achar que está esfriando, mas, tendo que tomar um banho a cada meia hora, fica difícil acreditar nisso. A verdade é que nesse assunto particular nem os cientistas se entendem.

Querendo ou não, a memória insistia em me levar para Moscou, onde, naquele ano de 1970, o inverno chegava. Minha preocupação diminuiu quando o chefe de nosso coletivo informou que íamos receber roupas especiais para enfrentar o frio do inverno russo.

Mas minha tranquilidade durou pouco. Antes de dormir, imaginava o futuro que me esperava naquela cidade que nada tinha a ver com minha origem tropical.

Quando o inverno chegou para valer, encontrou-me metido nas ceroulas de lã, na camiseta de lã, nas calças de lã, no suéter, no paletó, no capote grosso e pesado, tão pesado que, se tivesse que andar mais de uma quadra, morreria de cansaço. De qualquer modo, antes cansado do que morto.

A sorte é que passava o dia todo na escola do partido, escutando a lição dos professores ou conversando com os companheiros na lanchonete. A última coisa que eu queria era sair à rua, a não ser quando as aulas terminavam e era já noite, porque, no inverno, ali, anoitece às três da tarde.

No percurso da escola à "abchejite" (uma espécie de pensão de estudantes), se estivesse ventando então, era barra pesada. Meu nariz esfriava tanto que tinha a impressão de que, se desse um peteleco nele, quebrava, caía no chão. Claro que um comunista está no mundo para o que der e vier, razão pela qual evitava formular a pergunta que de vez em quando assomava à mente: que diabo vim eu fazer nesta cidade gelada? Só parei de perguntar quando conheci uma russa de olhos azul-violeta, linda como um sonho, e que só nasce em cidades geladas como Moscou.

Pois bem, e não é que inventaram de nos levar a um passeio em Leningrado, ainda mais frio que Moscou?

Ali topamos com uma temperatura de 30 graus abaixo de zero, o que nos foi anunciado quando o trem se aproximava da cidade, ao amanhecer. À noite, iríamos ao teatro Bolshoi para assistir ao balé famoso no mundo inteiro.

Ao sairmos do hotel, fomos advertidos de que não devíamos fumar na rua. Estranhei, mas a tradutora explicou: "Com 39 graus abaixo de zero, se você puxa o ar frio pela boca, ganha uma pneumonia". Apaguei o cigarro.

Mas ao chegarmos ao teatro, não havia onde estacionar, tivemos que sair do carro e correr uns 50 metros até a entrada, o suficiente para nos congelarmos. Quando entrei no hall, meu paletó parecia uma placa de gelo; se batesse nele, partiria em pedaços, escrevo eu, agora, no Rio de Janeiro, suando em bicas

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Tudo lixo — e uma pérola - CORA RÓNAI


quinta-feira, janeiro 16, 2014

Tudo lixo — e uma pérola - CORA RÓNAI

O GLOBO - 16/01

A poda ao estilo Comlurb não favorece nada, nem as plantas, nem o prazer de quem se encanta com elas


Uma noite dessas, quando cheguei em casa, abri a mailbox e encontrei duas mensagens desesperadas de uma amiga, enviadas à tarde e acompanhadas de fotos, em que ela me pedia socorro: havia uma equipe da Comlurb em frente à sua casa, “podando” uma árvore que, via-se pelo que ainda não havia sido destroçado, costumava ser linda e frondosa. O “podando” vai entre aspas, é óbvio, porque se pode chamar o que a Comlurb faz de qualquer coisa, menos de poda — algo que, segundo dicionários e botânicos, favorece as plantas.

A poda ao estilo Comlurb não favorece nada, nem as plantas, nem o prazer de quem se encanta com elas. A ferocidade e a inconsequência com que a empresa ataca as árvores é comparável ao ímpeto assassino de um serial killer que mata a esmo, sem ao menos saber quem está atingindo — vide o caso do açacu da Pompeu Loureiro, uma das árvores notáveis da cidade, que só não veio inteiramente abaixo porque alguns vizinhos, alarmados, impediram o crime. O coitado está se recuperando, e até ganhou nota festiva com direito a foto na coluna do querido Ancelmo, mas sabe-se lá quantas décadas ainda serão necessárias até que volte a ser o que era.

A Comlurb não age sozinha. Ela é o braço armado, por assim dizer, da Fundação Parques e Jardins, a verdadeira culpada, em última instância, pela poda calamitosa das árvores do Rio.

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Para saber como a prefeitura cuida dos nossos parques e jardins, aliás, recomendo uma visita ao Campo de Santana, onde funciona a sede da fundação. Tomado por pivetes, drogados, mendigos, assaltantes e catadores de lixo, o campo tem um policiamento tão ineficaz que não consegue conter sequer o abandono rotineiro de animais.

Escrevi uma crônica sobre o estado lastimável do campo em junho de 2011. Mais ou menos pela mesma época me encontrei, por acaso, com o prefeito, e aproveitei para reforçar as queixas que havia feito aqui no jornal. Ele me ouviu com atenção e chegou a tomar notas num Blackberry. Quem visse a cena de fora poderia até imaginar que alguma providência seria afinal tomada. Pois sim! Passados quase quatro anos, tudo continua na mesma.

O mais triste é que o Campo de Santana é um dos jardins mais bonitos do país. Em qualquer cidade mais ou menos civilizada, seria tratado como a joia que é, com suas árvores centenárias e seu sofisticado paisagismo do século XIX. Ele tem esculturas, grutas e lagos, fontes francesas de ferro fundido, elevações gramadas e pequenas pontes, mas é impossível curtir qualquer dessas belezas.

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E o Aterro? Lá a destruição sistemática dos jardins conta com o beneplácito e a colaboração ativa das autoridades, que permitem Bailinhos nos jardins tombados do MAM, estacionamento de bicicletas de aluguel em áreas onde já nem cresce a grama (em contraste com outras onde a grama sequer é cortada) e a realização de toda a sorte de eventos de massa para os quais não foi projetado. Os jardins estão detonados — e, como os do Campo de Santana, entregues a assaltantes e moradores de rua.

Ao contrário do Campo de Santana, porém, o Aterro tem, pelo menos, uma vaga esperança: é o grupo Aterro Vivo, organizado por aguerridos moradores da vizinhança. Cansados de serem assaltados na sua área de lazer e de vê-la entregue a todo tipo de baratas, metafóricas ou não, eles têm se mobilizado para chamar as autoridades às falas. Tomara que sejam ouvidos.

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Sinceramente? Eu adoro o Rio e não conseguiria viver em outro lugar, mas, a contragosto, começo a reconhecer que a nossa cidade anda muito difícil. Salvo poucas e honrosas exceções, para onde quer que se olhe está tudo feio, tudo mal conservado, tudo um lixo. E a tal da “paisagem humana” vai pelo mesmo caminho. Os serviços nunca estiveram tão caros, tão ruins, tão desaforados. Já temos até restaurante a quilo cobrando dez por cento!

Tenho muita pena dos turistas mal aconselhados que, com tantos destinos amáveis, escolhem vir logo para cá. Tenho também muita vergonha de ver a minha cidade tratar tão mal os seus visitantes. Tudo o que eu queria é que as pessoas saíssem daqui maravilhadas, tristes de ir embora e certas de que passaram as férias num dos melhores lugares do mundo.

É que conheço bem a amargura de ser maltratada como turista. Em que pese a beleza da cidade, nunca mais ponho os pés em Praga, onde fui tão sistematicamente roubada em táxis, hotéis e restaurantes que por pouco não desisti do resto da viagem. A lembrança daqueles dias miseráveis contaminou, para sempre, todo o carinho que eu tinha pela cultura tcheca.

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Mas nunca consigo ficar de mal com o Rio por muito tempo. Fiz as pazes com a minha cidade na segunda-feira, assistindo à estreia do novo espetáculo da imbatível dupla Charles Möeller e Claudio Botelho, “Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos” — a história de uma trupe mambembe costurada por canções que fazem parte da história de todos nós.

Esse musical nascido de outros musicais é denso, engraçado, comovente — numa palavra, imperdível. Gostei de tudo: da luz linda, do cenário que não pesa, dos figurinos quase irônicos. O elenco é ótimo e afinadíssimo em todos os sentidos, mas eu nem esperava outra coisa de um autêntico Möeller & Botelho, ainda mais com a diva Soraya Ravenle na escalação. Mas gostei, sobretudo, de ver Claudio Botelho em cena, provando que ninguém precisa ter um vozeirão quando tem tanto carisma e inteligência.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

MARCO ANTONIO VILLA - RETROSPECTIVA 2013 - PARTE 2

Retrospectiva 2013 - Parte 2
Programa traz os principais fatos do ano em diversos assuntos como economia, política, saúde, esporte e outros.

MARCO ANTONIO VILLA - RETROSPECTIVA 2013

Retrospectiva 2013 - Parte 1
Programa traz os principais fatos do ano em diversos assuntos como economia, política, saúde, esporte e outros.

CACHORRO E MENINO

Um comentário e dois fatos - ROBERTO DA MATTA


quarta-feira, janeiro 15, 2014


O GLOBO - 15/01

Nenhuma pessoa pode ser presa duas vezes: uma pelo sistema legal e outra pelos poderes que agem dentro dos presídios



Na medida em que fico mais velho e, como o diabo, vou conhecendo melhor a ingratidão e a maldade humanas, observo que os jornais — que a cada semana noticiam cada vez mais infâmias e desgraças — comprovam meus piores palpites.

Como entender a rede simultânea de negócios pessoais e de estado da governadora do Maranhão, por exemplo, cujas prisões são explodidas à barbárie, forçando uma intervenção branca de Brasília numa medida tomada a pulso, pois que ela indicia o sistema prisional brasileiro como um todo?

Como ter prisões padrão Fifa para os mensaleiros e padrão nacional para os criminosos comuns? Esses presos que não são ninguém, porque a eles faltam advogados sofisticados, amigos poderosos e compadres no governo? Ou, eis o ponto cego do sistema, sem filiação a alguma “facção” que controla por dentro e por fora o estabelecimento? E como ficar surpreso com a ausência de prisão e com a tal impunidade que queremos liquidar se o nosso sistema legal é explicitamente desenhado para impedir que um alguém — um famoso — seja preso?

Como prender se as prisões continuam a ser lugares para “indivíduos” — para os sem laços com o mundo? Não há como ter um sistema democrático sem uma polícia e prisões decentes. Nenhuma pessoa pode ser presa duas vezes: uma pelo sistema legal e outra pelos poderes que agem dentro dos presídios.

Eu fazia esse comentário quando o professor Richard Moneygrand me interrompeu e perguntou:

— Você viu as duas notícias mais intrigantes da semana?

— Sem dúvida. Elas não falam do que acabo de dizer?

— Sim e não — respondeu Moneygrand, que, se hospedando comigo em Niterói, abandonara a sua amada Zona Sul carioca, onde tem tantos amigos famosos e importantes. — A primeira grande notícia é a do fugitivo americano que preferiu voltar às grades a enfrentar em liberdade o frio extremado que varre o meu país. Coisa que nenhum de vocês, brasileiros sem advogado, bons amigos e padrinhos no governo, seriam capazes de fazer. Aliás, o calor de certo modo impede algo semelhante porque seria impensável para o espirito reacionário brasileiro ter celas com ar-condicionado.

— E a segunda novidade? — questionei um tanto irritado com meu amigo.

— Bem — disse ele, segurando com carinho a mão de sua sétima ou oitava esposa, a Jean Morris, uma ruiva alta e arredondada, especialista em genocídio e holocausto, de mais ou menos 35 anos.

Dick Moneygrand, amigos, passou dos 80 e tantos, mas insiste em dizer que namora, fica apaixonado e escreve poesias para as suas Julietas, como ele diz em tom cretino. Afinal, inteligência nem sempre corresponde a bom discernimento.

— A segunda novidade — continuou meu amigo. — é que Lady Gaga salvou do suicídio um jovem gay brasileiro falando pessoalmente com ele pela internet. Esses novidades libertam-me das infâmias políticas do vosso nobre país, obrigando-me a refletir sobre a arte e a vida.

— Devo continuar? — indagou meu velho mentor com aquele seu jeitão tranquilo e superior que eu tanto invejo.

— Claro! — respondi, aproveitando para renovar a dose do meu calado e invencível faixa-preta escocês.

Quando eu leio que um prisioneiro se entrega para fugir do frio eu entendo que não há nenhuma brecha entre vida e arte. A vida nos engloba; a ficção é apenas uma outra faceta da própria vida. O fato a ser visto é que nós acabamos para a vida, enquanto a vida, quando narrada num conto, romance ou filme, faz o oposto: é ela que acaba para nós como uma história, um livro a ser posto numa estante. Por isso, precisamos tão desesperadamente das narrativas. Elas, como os rituais, têm principio, meio e fim. A vida não tem. E nós, um dia, viramos histórias ou simples notícia, como dizia aquele poema do vosso Drummond.

— O escritor americano O. Henry — prosseguiu Moneygrand. — que foi por alguns anos presidiário em Ohio, escreveu um conto chamado “O policial e o hino” (publicado em 1904) no qual (veja como o mundo se repete) um vagabundo tenta ser preso (como sempre fazia) para escapar do inverno de Manhattan. Na prisão, como também mostra Chaplin, inspirado nas mesmas contradições da democracia igualitária e do capitalismo industrial, em “Tempos modernos” (exibido em 1936), o vagabundo consciente, cínico e profissional de O. Henry transforma-se num involuntário desempregado e teria cama, comida e agasalho. Melhor a prisão do que o inverno num parque.

Parece fácil ir para prisão, mas O. Henry mostra que não é. Seu herói malandro tenta um bocado de truques para ser enjaulado. Do rotineiro comer e não pagar num restaurante; de bancar o maluco, gritando e pulando na rua, até o gesto violento de atirar uma pedra na vitrine de uma loja de luxo. No truque de comer sem pagar ele é impedido pelos garçons; no fingimento da loucura, o policial pensa que ele é um estudante comemorando a vitória do time da sua universidade; nem quando é mais violento ele é preso, pois quem jogaria uma pedra numa vitrine e ficaria esperando pela polícia? O guarda vai atrás de um sujeito que corria atrás de um táxi. Ele tenta, então, roubar sem disfarce o guarda-chuva de um homem no balcão de um bar. Discutem, um policial se aproxima, o vagabundo profissional pensa que vai conseguir, mas o homem confessa que ele próprio havia encontrado o guarda-chuva por engano e concorda em deixá-lo com o nosso herói. Desesperado porque não conseguia ser preso, o malandro decide assediar uma jovem mulher. Mas logo descobre que a jovem é uma prostituta que lhe oferece um programa. (Continua na próxima quarta-feira)

domingo, 12 de janeiro de 2014

A beleza importa. Ou: Para o inferno com Duchamp!

11/01/2014
 às 11:20 \ Cultura

A beleza importa. Ou: Para o inferno com Duchamp!

Poucas coisas me tiram mais do sério do que o relativismo estético (e moral) da atualidade, onde “tudo é arte”, ou seja, nada o é. Igualitários invejosos que lutam contra a “ditadura” da beleza representam o câncer da pós-modernidade. Ao destruírem valores estéticos que sempre foram enaltecidos na civilização, essa gente pretende destruir a civilização em si. São “desconstrutivistas” pois não sabem construir nada, apenas chacoalhar o que existe de melhor no mundo.
Muito dessa baboseira toda começou ou ganhou força com as “obras de arte” de Duchamp. Passou a ser “cool” elogiar qualquer porcaria, só por ofender, chocar, ridiculizar a verdadeira arte. O belo não existe! Tudo é subjetivo! Tudo é relativo! Cada um chama de arte o que quiser! E com tal mentalidade obtusa, eis o que foi parido, literalmente no banheiro:
O local de obrar parece adequado para certos “artistas” e suas “obras”. Só tenho uma coisa a dizer: para o inferno com Duchamp! Ou melhor: para a privada com ele! Sua obra merece nada mais do que o aperto de uma descarga, para ir ao destino adequado, que é o esgoto.
Com essa revolta que sinto contra os detratores da beleza, adorei a imagem que o colega da Veja, Jerônimo Teixeira (que, aliás, traz ótima entrevista nas páginas amarelas dessa semana com o rabino e filósofo inglês Jonathan Sacks, justamente sobre o relativismo moral do nosso tempo), postou hoje em sua página do Facebook:
Burguer beauty
Nada como a ironia para ridicularizar essa turma mesmo. A pergunta: “Desde quando isso é mais atraente que isso?” Em seguida, a mensagem: “Acabem com os impossíveis padrões definidos pela mídia. Todos os hambúrgueres são bonitos”. Agora pergunto ao leitor: alguém realmente seria indiferente em relação aos dois sanduíches da foto? Alguém acha que não tem a menor importância a apresentação, a imagem, o aspecto? Responda depois, em silêncio, diante do espelho.
Para ajudar nas reflexões, segue o conhecido documentário com Roger Scruton, um dos pensadores mais sofisticados da atualidade, sobre a importância da beleza para a humanidade. É longo, mas vale muito a pena. Está legendado:

domingo, janeiro 12, 2014


Programação intensa - JOÃO UBALDO RIBEIRO

O GLOBO - 12/01

Somos viciados em fazer uma porção de coisas e, mesmo quando se chega a uma altura da vida em que elas se mostram inúteis e trabalhosas, continuamos sem deixar de fazê-las



Como de costume, vou deixar em paz o generoso leitor e a amável leitora por quatro domingos, neste começo de ano, a partir de hoje. Se não erro aqui nas minhas contas, devo estar de volta em 16 de fevereiro. Também como de costume, vou passar o tempo que puder na minha terra, com os amigos de infância, que vêm escasseando num ritmo alarmante, o que os torna cada vez mais preciosos. Lá se foi, faz poucos meses, Ary de Almiro, que jogou bola comigo e, quando rapazinho, era discípulo de meu primo Walter Ubaldo, na Escola Filosófica do Sorriso de Desdém. “Mais eloquente que a pena do escritor, mais poderosa que a espada do soldado, a maior arma que o homem tem é o sorriso de desdém” — era o moto da escola e eles saíam pela rua, tacando o sorriso de desdém a torto e a direito.

Uma vez ficaram filosofando e bebendo cerveja no bar que hoje é de Espanha, mas na época era de Waldemar e, quando Waldemar trouxe a conta, todos lhe deram um sorriso de desdém como resposta e ninguém se coçou para pagar. Rendeu um certo bode, porque Waldemar não apreciou essa forma de pagamento e foi queixar-se ao coronel Ubaldo, avô de Walter (e meu). O coronel pagou, mas decretou a extinção da escola filosófica e disse que mandava cobrir de porrada o primeiro filósofo, desdenhoso ou não, que aparecesse em sua frente, com isso quase ferindo de morte o sempre fértil pensamento filosófico na ilha. Na última vez em que conversei com Ary, lembramos isto entre risos. Pois agora ele se foi, menos uma testemunha e participante de meu tempo e de minha história pessoal — e é por isso que se diz, com plena razão, que, quando morre um amigo, também nós morremos um pouco, é como se a vida não fosse mais inteira. Um por um, vão desaparecendo os que conheceram os filósofos do sorriso de desdém e daqui a pouco talvez também desapareça para sempre a sua lembrança.

Por essas e outras e cada vez mais ciente de que meu futuro é agora mesmo, vou cumprir uma extensa agenda itaparicana, para aproveitar de tudo o que posso, não só da companhia dos amigos, como das experiências que somente agora começo a valorizar direito. Não organizei nada, nem sequer mentalmente, resolvi deixar que as coisas ocorram de forma espontânea, ao acaso. Até porque um dos meus projetos mais importantes, talvez o mais importante, pode vir a anular todos os demais. Já falei aqui em Vavá Major, renomado peixeiro aposentado, amigo meu de longa data, que hoje não faz nada, nem de dia nem de noite. Pergunta-se: como assim, não faz nada? É isso mesmo, não faz nada, não joga dominó, não joga carteado, não discute futebol, não comenta mulher, não carrega nem pacote nem embrulho, não canta, não toca violão, não passeia, não cria nem galo nem passarinho, não joga no bicho, não faz absolutamente nada.

Quem nunca experimentou não fazer nada, não sabe a dificuldade. Somos viciados em fazer uma porção de coisas e, mesmo quando se chega a uma altura da vida em que elas se mostram inúteis e trabalhosas, continuamos sem deixar de fazê-las. Vavá me disse que exageram um pouco, nesse negócio de ele não fazer nada. Claro que faz, tem muitos pensamentos e faz outras coisas, de que assim no momento não recorda. Só não quer saber de nada que dê labuta e certos pensamentos dão labuta, de forma que estes ele evita, nada de contas, adivinhações e perguntas que puxem demais pela ideia. Por exemplo, aprecia uma bela história bem contada, mas, se puxar pela ideia, não tem negócio, assim como, se não tiver quem explique a novela tintim por tintim, ele é que não vai fazer força para compreender, cansa muito, quem quiser que goste de viver na canseira, ele não.

Já fiz algumas tentativas de aprender pelo menos um pouco da técnica de Vavá, porque da outra vez subestimei as dificuldades. Agora, em lugar de simplesmente ouvir conselhos e lições, vou pleitear um estágio, com o cuidado de que não renda nenhuma labuta para ele. Vou simplesmente acompanhá-lo e imitá-lo na medida do possível. Pretendo também conversar um pouco, mas tenho que caprichar numa conversa que tampouco renda labuta. Acho que, num mês de estágio, dá para pegar o fundamental.

E há outras opções, além do estágio com Vavá Major. Xepa diz que o amigo dele que fisga tatus na vara de pescar está disposto a pescar mais dois para eu ver, é só esperar uma maré boa para tatu, que deve ser depois dessa lua nova. Mas agora ele exige que passe tudo no Fantástico. Isto eu não posso prometer, mas vou levar uma câmera para filmar não somente este evento, como outros acontecimentos biológicos, quais sejam uma jararaca cruzando com um caramuru, que Sete Ratos me garantiu ter visto mais de uma vez e um galo de briga raceado com urubu, que meu primo Zé de Neco também me garantiu ter visto.

Finalmente, o setor social está mais que assegurado. Reabriu em alto estilo o Grande Hotel, todo reformado e cheio de estrelas. Aproveitando o ensejo, Gugu Galo Ruço, rico milionário que não tem mais onde socar dinheiro e dizem que outro dia, por causa de um aborrecimento no aeroporto, quis comprar La Paz à vista, arrendou o hotel para hospedar os convidados de uma festa de arromba que vai dar. Eu não devia contar, mas o primeiro dever do jornalista é para com a verdade e a verdade parece ser é que vão instalar um cassino durante os sete dias de festa, com Zecamunista jogando pôquer pela casa. E, se vocês aparecerem durante as festividades e quiserem me ver, eu sou aquele nativo de bermuda e chinelo, junto de uma barraquinha, trocando livros por fichas de roleta — o Brasil é um país de todos.