29/04/2012
às 18:02 \ Livros & FilmesA falta que faz um Paulo Francis
O livro Diário da Corte, que reúne colunas do mais beligerante e hábil polemista brasileiro, comprova que não há o que substitua alguém capaz de ver as coisas como as coisas são
(Publicado na edição de VEJA de 25 de abril de 2012 por Augusto Nunes)
O ator principiante não teria ido além da primeira peça caso houvesse recusado a sugestão do agitador teatral Paschoal Carlos Magno: que tal trocar o Franz Paulo Trannin da Matta Heilborn da certidão de nascimento por um nome artístico menos tonitruante?
E o sofrível coadjuvante seguiria vivendo papéis secundários se não tivesse criado um personagem condenado ao êxito no mundo real: o jornalista Paulo Francis, em tudo diferente do intérprete. O homem amável, de gestos suaves e maneiras gentis, era temporariamente exonerado entre um texto e outro.
Ironia desmoralizante, sarcasmo impiedoso
Na hora de lidar com palavras, materializava-se a entidade agressiva, de temperamento beligerante, extraordinariamente hábil no ataque frontal, na ironia desmoralizante, no humor ferino, no sarcasmo impiedoso.
O estilo claro e contundente na forma e no conteúdo, a abrangência temática, a independência intelectual e a disposição para a correção da rota fizeram desse Paulo Francis o maior polemista do jornalismo brasileiro moderno. Ele continua no topo do ranking, comprova a leitura de Diário da Corte (Três Estrelas; 408 páginas; 59,90 reais), coletânea de 76 colunas publicadas pela Folha de S.Paulo entre 1975 e 1990 que chega agora às livrarias.
O país da amnésia endêmica, que esquece a cada quinze anos o que aconteceu nos quinze anteriores, também condena os melhores e mais brilhantes a quinze anos de esquecimento — contados a partir da morte física. Francis não escapou dessa temporada no limbo.
Em 4 de fevereiro de 1997, quando um infarto o surpreendeu no apartamento em Nova York, milhares de leitores do colunista dos jornaisO Estado de S. Paulo e O Globo e milhões de espectadores do comentarista dos telejornais da Rede Globo e do programa Manhattan Connection haviam transformado o carioca de 66 anos em celebridade nacional. Pois mesmo o mais conhecido jornalista brasileiro teve de esperar até agora pela exumação parcial da obra escrita.
Textos que poderiam ser publicados agora, sem retoques
Pior para os jovens, que poderiam tê-lo encontrado mais cedo. As mais de setenta colunas reunidas no livro resistiram incólumes à passagem do tempo. Muitos textos parecem ter saído ontem da mente brilhante, e continuam de tal forma contemporâneos que poderiam ser publicados na edição de amanhã sem retoques ou atualizações. A leitura de Diário da Corte mostra com dolorosa nitidez a falta que um Francis faz.
“Se dei uma contribuição ao jornalismo brasileiro, foi a de desmistificar os Estados Unidos”, disse em 1983. Tal contribuição é confirmada por artigos sobre o império atarantado com os desdobramentos do caso Watergate e outras aulas de jornalismo analítico.
Mas ele fez muito mais que isso. Antes ou depois do correspondente internacional cinco-estrelas, existiram o crítico de teatro que achava Paulo Francis “nome de bailarino de teatro de revista”, o crítico de cinema que amava as ousadias de Glauber Rocha enquanto desancava unanimidades internacionais, o devorador de livros que se gabava de ter lido Guerra e Paz aos 15 anos de idade e parecia carregar na cabeça três bibliotecas.
Houve o resistente entrincheirado numa página do Pasquim. E houve, sobretudo, o jornalista político que, ao se livrar de cautelas e amarras impostas por patrulhas ideológicas, se tornou, como Nelson Rodrigues, um “ex-covarde”.
A coragem de ser estigmatizado como “reacionário”
É preciso coragem para arriscar-se a ser estigmatizado como “direitista”, “reacionário” ou “conservador”. Mas só quem não teme tal perigo conseguirá enxergar o Brasil como efetivamente é.
Diário da Corte permite a contemplação de um largo trecho dessa caminhada em direção à liberdade que Francis definia com uma citação de Rosa Luxemburgo: “A liberdade é quase sempre, exclusivamente, a liberdade de quem discorda de nós”. Ele exercitou plenamente o direito de discordar de meio mundo — e de manifestar a discordância sem ambiguidades. Duelou furiosamente com José Guilherme Merquior e Antonio Candido, brigou feio com Chico Buarque e Caetano Veloso.
Não poupou sequer parceiros dos tempos do Pasquim. “Jaguar é um idiota de gênio”, resumiu ao comentar a subordinação do jornal aos interesses eleitorais de Leonel Brizola — a quem se aliara no início dos anos 60.
Foi uma das incontáveis mudanças de opinião embutidas na metamorfose maior. Numa delas, lamentou a rejeição sistemática dos acenos feitos a grupos de esquerda pelo general Golbery do Couto e Silva, ideólogo dos militares moderados e defensor de algum tipo de entendimento com a oposição democrática.
Roberto Campos, ex-embaixador de João Goulart e ex-ministro do regime autoritário, foi redimido depois de figurar por dez anos entre os alvos preferenciais da ferocidade de Francis. “Escrevi coisas brutais sobre Campos”, penitenciou-se. “São erradas. Retiro-as.” Em 1993, num jantar em Porto Alegre, dividiu uma mesa com o ex-inimigo. Depois de cumprimentar o homem à sua esquerda, virou-se para o amigo ao lado e murmurou: “Quem diria, hein? Agora estou à direita até do Roberto Campos”.
A disposição para mudar de ideia tinha limites. José Sarney, por exemplo, nunca deixou de ser o símbolo da jequice brasileira, filha da esperteza dos que mandam e da ignorância dos que obedecem.
“Um amigo me disse que tubarões andaram à caça de Sarney”, escreveu em 2 de janeiro de 1988. “Já comecei a babar diante dessa possibilidade. Aí está uma solução.”
A argúcia excepcional e o pessimismo crônico somaram-se para apressar a decepção com Luiz Inácio Lula da Silva, justificada na coluna de 16 de agosto de 1985. “Admirei Lula quando apareceu. Enfim, um líder sindical que cuidava do pão e manteiga dos trabalhadores, o que é essencial à modernização capitalista do Brasil. Durou pouco. Lula me parece ter sido envolvido pela grã-finagem esquerdista do Morumbi e adjacências (…) Hoje, repete as mesmas sandices populistas que ouvimos desde os tempos de Jango Goulart.”
Francis antecipou em mais de vinte anos o cenário deste 2012
Nas eleições de 1989, apoiou Fernando Collor — que reduziria a pó depois das bandalheiras que resultaram no impeachment — para exorcizar dois fantasmas muito apreciados pelo PT: a interferência excessiva do estado e o aparelhamento da máquina pública.
Francis antecipou em mais de vinte anos o cenário deste 2012. O que diria o polemista sem medos se sobrevivesse para saber a que ponto pode chegar um país em adiantada decomposição moral? Como trataria os ministros que perderam o emprego por safadeza explícita mas seguem impunes?
O que faria depois de confrontado com o primeiro presidente da República que nunca leu um livro? A tensão provocada pela ação indenizatória movida pela Petrobras precipitou o amargo desfecho, e as perguntas ficarão sem resposta.
Pena. A jornalista Sonia Nolasco, mulher de Francis, decidiu que o marido seria enterrado com o par de óculos de lentes grossas sobre a testa. Ele partiu com cara de quem continuaria enxergando as coisas como as coisas são.
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Na próxima semana lhe entregarei este livro em mãos, professor!
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