segunda-feira, 26 de novembro de 2018

"Mais médicos, menos fantasia", por Fernando Gabeira

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Os cubanos foram embora. O Programa Mais Médicos não existe mais, tal como foi criado no governo Dilma. Sou otimista quanto ao futuro do programa. Talvez possa ser feito de uma forma melhor.

Breve, a discussão ideológica ficará para trás, e então poderemos nos concentrar no que realmente interessa: a saúde de milhões de brasileiros.

A grande oportunidade que está diante de nós é a ida de milhares de jovens médicos brasileiros para o interior. As condições salariais são atraentes. O dinheiro ficaria no Brasil. 

Mas não é esse o principal ganho. O encontro de milhares de jovens da classe média urbana com os rincões do Brasil pode representar para eles um grande aprendizado.

Já houve grandes momentos históricos em que esse encontro se deu. Na Rússia, no século XIX, quando milhares de estudantes foram compartilhar o cotidiano dos camponeses. Havia muito romantismo, ideias revolucionárias, uma visão idealizada dos pobres do campo. Embora o resultado tenha sido revoluções esmagadas, foi um período rico para a própria cultura russa.

Aqui, no Brasil, as idealizações não são as mesmas. Minha impressão é que os brasileiros vão encontrar no interior surpresas positivas sobre as pessoas que vivem lá. Os russos se decepcionaram porque esperavam ver nos camponeses um reflexo de suas fantasias urbanas.

A ida dos médicos brasileiros teria o mesmo valor pedagógico que a carreira oferece aos militares: percorrer diferentes pontos do país, sentir a diversidade, acreditar mais ainda no potencial do Brasil.

Não há contraindicação ideológica. Ouso dizer mesmo para uma juventude de esquerda dos grandes centros: o choque cultural seria benéfico. Certamente, sairia mais realista.

Meu primeiro trabalho na TV, creio em 2014, foi sobre uma cidade do Maranhão chamada Buriti Bravo. Já era uma aproximação com o Programa Mais Médicos. Uma visita às cidades mais desamparadas, no Maranhão e no Amapá.

Semana passada, procurei algumas pessoas como o escritor Antonio Lino, que fez uma dezena de viagens para escrever sobre o Mais Médicos. E também o sanitarista Hermano Castro, da Fiocruz.

Minhas primeiras conclusões: o programa é essencial para as cidades cobertas; ele pode ser feito majoritariamente por brasileiros, o que não significa que alguns estrangeiros não possam participar, dentro das regras do jogo. Constatei também que o gargalo é a formação desse tipo de médico. Isto estava previsto no programa de Dilma, mas não foi bem desenvolvido.

É preciso ser realista. Apesar dos salários, ainda é muito difícil fixar um jovem médico no interior. A realidade me leva de novo ao mundo das ideias.

A única maneira de atenuar realmente o problema é uma valorização simbólica desse tipo de trabalho. Transmitir um pouco, por exemplo, a chama que ilumina um grupo como o Médicos Sem Fronteiras, que leva ajuda a pessoas em grandes dificuldades. No caso, o governo comprar essa ideia talvez não ajude tanto quanto se fosse aceita pelo mundo cultural. Não proponho heróis positivos, são pessoas de carne e osso que merecem um reconhecimento maior.

Tanto os cubanos quanto a esquerda encaram esse trabalho como o produto de uma visão socialista, e desafiamos a verem na medicina um mercado, e não adotarem suas teses.

Esquecem que a exportação de serviços médicos é um importante item no comércio exterior cubano. É um negócio de Estado. Não só o Médicos Sem Fronteiras, mas inúmeras organizações humanitárias no mundo demonstram que essa presença ao lado dos mais fracos não é, unicamente, uma consequência da visão socialista.

Para completar a semana, ouvi uma conferência do ministro alemão Cristoph Bundscherer num painel sobre indústria 4.0. Paradoxalmente, ele falava de um futuro tecnológico com diagnósticos à distância, portanto, com menos médicos.

Se combinarmos a formação dos novos médicos com uma abertura para o mundo tecnológico, é possível atenuar esse grande problema brasileiro.

No momento, temos um pepino. No futuro, talvez nos lembremos da passagem dos cubanos apenas como um doloroso aprendizado. É raro um contrato ser rompido assim, numa área tão sensível, sem que tenhamos salvaguardas. Isso faz parte do legado. Ideologias se interessam pelas ideias, não pelas pessoas.

"O novo governo", por Denis Lerrer Rosenfield


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UMA SÍNTESE DE VALORES CONSERVADORES

E LIBERAIS, DEMOCRACIA E EXERCÍCIO DA 

AUTORIDADE



O governo de Jair Bolsonaro começa sob a égide do novo. O novo a ser entendido não como uma mudança qualquer de governo, mas como uma diferente forma de exercício do poder, fundamentado no exercício da autoridade. Novo também no que diz respeito a uma recuperação das ideias de direita, seja em sua vertente liberal ou conservadora, relegando a segundo plano a oposição direita/esquerda.
Nos últimos anos, o petismo e sua herança consistiram numa dança à beira do precipício. A inflação estourou, o desemprego atingiu mais de 12 milhões de trabalhadores, o PIB afundou, os juros ganharam as alturas, a criminalidade tomou conta das cidades e do campo e a insegurança, em todos os sentidos, se generalizou. Neste último ano eleitoral, Lula ainda tentou, mesmo condenado e preso, ser candidato a presidente da República, utilizando-se da mentira como forma de conquista do poder. Uma séria crise institucional esteve muito próxima.
Nas peripécias dos últimos meses, constatou-se que a democracia terminou por adotar a forma de uma defesa de privilégios, cujo melhor exemplo talvez seja a resistência dos estamentos estatais à reforma da Previdência, como se o jogo político devesse ficar à mercê do arbítrio dos que têm mais condições de exercer influência e pressão. A população de baixa renda e os desempregados carecem desses instrumentos de pressão.
A criminalidade, em expansão, mostrou igualmente as dificuldades de exercício da autoridade, como se combater a bandidagem fosse uma questão de direitos humanos. Da mesma maneira, questões educacionais foram fortemente submetidas ao politicamente correto, como se toda a sociedade devesse submeter-se ao que intelectuais esquerdistas apresentavam como “progressista”, seja lá o que isso signifique.
A autoridade estatal foi substancialmente enfraquecida, com o sociedade clamando por seu restabelecimento, sem que isso signifique autoritarismo, que desconhece limites institucionais e constitucionais.
Logo, é nesse contexto que se deve compreender o novo governo, nas figuras do presidente eleito, Jair Bolsonaro, e de seu vice, general Hamilton Mourão.
Primeiro, o núcleo militar. Ele representa o compromisso com a autoridade estatal, cuja preocupação central consiste em que o Brasil não caia na anomia, que poderia comprometer o futuro da democracia. Tanto o general Mourão quanto o general Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, são pessoas altamente qualificadas, comprometidas com a existência do Estado e a luta contra a corrupção. Ambos terão papel importante na orientação do novo governo, agindo dentro do próprio Palácio do Planalto. Se o vice-presidente vier, por delegação do presidente, a exercer a coordenação dos ministros, o ganho do novo governo será enorme na implementação das novas políticas e no restabelecimento hierárquico da administração.
Segundo, a Lava Jato. A nomeação do juiz Sergio Moro para o Ministério da Justiça segue outra linha de campanha do presidente eleito, a do compromisso com a honestidade no tratamento da coisa pública e do comprometimento no combate à corrupção. Responde igualmente a um clamor da sociedade por mudanças na condução dos negócios públicos. O então juiz, no exercício de suas funções, deu provas cabais de seu comprometimento com a verdade, não se submetendo a pressões ideológicas e partidárias.
Terceiro, a política econômica. O novo ministro da Economia representa um inequívoco compromisso com a economia de mercado, o direito de propriedade e a redução do poder de intervenção do Estado. Ao escolhê-lo e dar-lhe plenos poderes, o novo presidente assumiu um compromisso com o liberalismo, vital para o ajuste fiscal e o equilíbrio das finanças públicas, bases do crescimento econômico e do distributivismo social. A nova equipe, muito qualificada, está seguindo os passos da política econômica do presidente Michel Temer, ampliando-a.
Quarto, as frentes parlamentares. O sucesso do governo depende em grande medida de sua capacidade de aprovação de leis e, sobretudo, de emendas constitucionais na Câmara dos Deputados e no Senado. De nada adiantam belos planos de reformas se eles não conseguirem a aprovação no Legislativo. Seria um enorme impasse. O novo presidente aposta suas fichas no novo ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, deputado que conhece bem o Congresso, e na escolha de ministros que representem frentes parlamentares importantes, como as da agricultura e pecuária, da saúde, da segurança pública, da construção civil e material de construção e dos evangélicos. Há aqui uma mudança relevante em relação ao governo Temer, que atuou com os partidos políticos e os líderes partidários. O desafio é interessante, porém não isento de riscos. Resta saber se conseguirá, com ela, alcançar os seus objetivos. A escolha para a pasta da Agricultura da deputada Tereza Cristina, pessoa competente, sinaliza para essa política de frentes parlamentares, assim como a do novo responsável pela Saúde.
Quinto, a concepção conservadora. A escolha dos novos ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, e das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, indicam, por sua vez, outro ponto de campanha, assentado nos valores conservadores, de compromisso com a família, a pátria e a religião. Coloca-se aqui uma questão espinhosa, a de saber se esses valores são de natureza a orientar a relação entre Estados, baseada nos interesses particulares de cada um, segundo seus objetivos geopolíticos. No que toca à educação, o novo ministro é um intelectual respeitado, com livros importantes de filosofia e de história das ideias no País. A caricatura que dele foi feita em alguns jornais não guarda correspondência com a verdade.
Por último, assinale-se que o novo governo está se organizando de forma coerente, fiel a suas ideias eleitorais, numa síntese de valores conservadores e liberais, democracia e exercício da autoridade. Eis a aposta.
*PROFESSOR DE FILOSOFIANA UFRGS.

O Estado de São Paulo

"Pequenos gestos insignificantes", por- Gustavo Pacheco “As únicas derrotas e as únicas vitórias que decidem a vida são as que você perde ou ganha sozinho, perante si mesmo”


"Pequenos gestos insignificantes", por Gustavo Pacheco

“As únicas derrotas e as únicas vitórias que decidem a vida são as que você perde ou ganha sozinho, perante si mesmo”

“É difícil acompanhar dia após dia o aumento progressivo das hostilidades. De repente você está cercado de todos os lados, sem saber como nem quando. Pequenos fatos isolados, pequenos gestos insignificantes, pequenas ameaças jogadas ao vento. Hoje uma briga no bonde, amanhã um artigo no jornal, depois de amanhã uma janela quebrada. Tudo parece casual, sem conexões, meio de brincadeira. Até que um certo dia você percebe que não consegue mais respirar.”

Essas palavras saíram de um romance, mas poderiam ter saído de um diário. O romance se chama Por dois mil anos e nele o narrador sem nome, um jovem estudante judeu, descreve a ascensão do antissemitismo na Romênia do entreguerras. Lançado em 1934, causou muitos problemas para seu autor, o escritor, dramaturgo e jornalista Mihail Sebastian.

Embora se apresente como ficção, Por dois mil anos, publicado no Brasil no ano passado, é um livro profundamente autobiográfico. Sua epígrafe é a célebre frase de Montaigne: 

“Ouso não somente falar de mim, mas falar somente de mim”. Sebastian era judeu e foi testemunha e alvo da onda de violência que, anos mais tarde, desaguaria na destruição de mais da metade da população judaica da Romênia, estimada em cerca de 750 mil pessoas antes da Segunda Guerra Mundial.

Por dois mil anos é um livro desconcertante, em grande medida por causa do tom contido e equilibrado do narrador, que presencia e sofre barbaridades sem deixar que afetem sua sanidade e sua integridade de caráter: “Por enquanto, recebi dois socos durante a aula de hoje e escrevi oito páginas de anotações. Por dois socos, foi uma pechincha.”

Os momentos mais contundentes do livro são os diálogos do narrador com seus amigos, que pouco a pouco o abandonam e passam a apoiar sem ressalvas a violência antissemita. Ainda assim, ele não rompe relações, nem expressa raiva ou amargura, mantendo sua dignidade estoica: “As únicas derrotas e as únicas vitórias que decidem a vida são as que você perde ou ganha sozinho, perante si mesmo.”

Entre os amigos de Sebastian, estavam alguns dos mais importantes artistas e intelectuais romenos do século XX, como Eugène Ionesco, Mircea Eliade e Emil Cioran – alguns deles reconhecíveis em personagens de Por dois mil anos. Quando o livro estava para sair, Sebastian pediu que seu amigo e mentor, o professor de lógica Nae Ionescu, escrevesse o prefácio. Ionescu, que serviu de inspiração para o personagem Ghiţă Blidaru, era uma figura carismática que exerceu grande influência sobre Sebastian e muitos outros escritores de sua geração. Quando o prefácio chegou, Sebastian ficou perplexo: era um texto violentíssimo, que atacava os judeus e dizia que eles nunca seriam realmente romenos – nem mesmo o autor do livro.

Numa decisão que até hoje é motivo de debate, Sebastian decidiu incluir o prefácio no livro, o que gerou um escândalo: Por dois mil anos foi atacado por comunistas e fascistas, judeus e cristãos, liberais e extremistas. Por que Sebastian se sujeitou a isso? Alguns dizem que, mesmo magoado, ele continuava prezando a amizade com Ionescu; outros dizem que o prefácio é a ilustração perfeita do processo de ascensão do antissemitismo, que é o tema central do livro.

Em 1935, pouco depois de o livro ser publicado, Mihail Sebastian começou a escrever um diário. As semelhanças entre os dois são notáveis: como disse o escritor inglês John Banville, Por dois mil anos é um romance escrito como se fosse um diário, enquanto o diário de Sebastian foi escrito como se fosse um romance. Ainda inédito em português, o diário é um registro ímpar de um ser humano que insiste em manter sua humanidade enquanto, à sua volta, o mundo se decompõe.

A primeira anotação no diário, em 12 de fevereiro de 1935, diz o seguinte: “O rádio está sintonizado em Praga. Estou escutando um concerto de J. S. Bach em sol maior, para trompete, oboé, cravo e orquestra.” A partir daí, os comentários de Sebastian sobre Mozart e Debussy, Shakespeare e Proust, se misturam a seu testemunho da escalada do fascismo, da perseguição aos judeus, do caos instaurado pela guerra e das cautelosas esperanças depois que a Romênia muda de lado e passa a apoiar os Aliados. A última anotação é de 31 de dezembro de 1944: “É o último dia do ano. Tenho vergonha de estar triste. No fim das contas, foi o ano que trouxe de volta a minha liberdade. Mesmo com toda a amargura e todo o sofrimento, mesmo com todas as decepções, esse fato básico permanece.”

Mihail Sebastian sobreviveu à Segunda Guerra Mundial e ao Holocausto. Morreu em 29 de maio de 1945, aos trinta e oito anos de idade, atropelado por um caminhão quando atravessava a rua.



O romancista romeno Mihail Sebastian (1907-1945) - Divulgação


Gustavo Pacheco é diplomata e antropólogo.

sábado, 24 de novembro de 2018

"Bolsonaro e o baixo clero", por Ruy Fabiano


O núcleo político original de Bolsonaro surgiu no chamado baixo clero da Câmara, onde o hoje presidente eleito pontificou por quase três décadas. Ocorre que sua candidatura cresceu, transcendeu aquele círculo estreito inicial e agregou gente bem mais graduada.
Ele tornou-se a bandeira do antipetismo, reunindo em torno de si a elite militar (que, a princípio, o via com reservas e hoje investe e aposta no seu governo), a elite do mercado e a porção liberal-conservadora da academia. O nível, não há dúvida, subiu.
Isso lhe criou um problema que não está sendo fácil de administrar: o contraste, inclusive (e sobretudo) intelectual, entre os aliados de primeira hora e os que agora se agregam a seu governo.
Como conciliar o sentimento de lealdade àqueles que apostaram na sua candidatura e as exigências de qualificação técnica que, à medida em que monta sua equipe, se impõem naturalmente?
Em outras palavras, como incluir políticos como Magno Malta (que não se reelegeu ao Senado) e Alberto Fraga (derrotado ao governo do DF), amigos do peito, num primeiro escalão bem mais sofisticado? Simplesmente, não há como fazê-lo.
O próprio Onyx Lorenzoni, já destacado para a chefia da Casa Civil, tornou-se menor que as exigências do cargo, cujas atribuições serão reduzidas e restritas à articulação com o Congresso.
O general Hamilton Mourão, vice-presidente, absorverá a parte mais substantiva do que cabia à Casa Civil, funcionando como um coordenador do Ministério. É um militar intelectualmente preparado, que passou por diversos cursos de aperfeiçoamento, inclusive no exterior, e já exerceu cargos administrativos e de comando no Exército. Tecnicamente, está a léguas de Lorenzoni e do baixo clero.
Idem o general Augusto Heleno, que ocupará a chefia do Gabinete de Segurança Institucional, encarregado da Inteligência do governo e de assessoramento direto ao presidente.
Na área econômica, a cargo de Paulo Guedes, os nomes até aqui escolhidos primam pelo apuro técnico. No Ministério da Justiça, Sérgio Moro forma sua equipe com gente que sustentou a Lava Jato.
Mesmo em áreas delicadas, como Relações Exteriores e Educação, os nomes escolhidos – respectivamente, Ernesto Araújo e Ricardo Velez Rodriguez – são, independentemente das restrições de cunho ideológico que se lhes façam, reconhecidos por seu valor intelectual e títulos acadêmicos. Não são baixo clero.
O presidente, no entanto, irá governar com o baixo clero. Ele compõe sua base parlamentar e entre eles não pode haver ressentimentos. O grande desafio do político Bolsonaro – e sua experiência como deputado lhe garante o título – será o de conciliar as exigências do cardinalato que o cerca com as demandas das bancadas temáticas (evangélicos, ruralistas, segurança etc.).
Eles estão sendo ouvidos na formação do ministério, mas nenhum está capacitado a integrá-lo.
Não passariam no Enem ministerial, cujo padrão, no fim das contas, distancia o presidente de seus aliados iniciais e o compromete com um projeto bem além de seu ponto de partida.

Ruy Fabiano é jornalista

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

"As políticas públicas assumidas por Bolsonaro", por Modesto Carvalhosa


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O discurso formal proferido pelo presidente eleito na noite de 28 de outubro promete um governo decente e assume uma série de compromissos institucionais, revelando algumas nítidas linhas de melhoria das estruturas do Estado. Suas palavras trazem uma profissão de fé neoliberal, reafirmando a liberdade de empreender, para cujo melhor desempenho Jair Bolsonaro promete a redução da burocracia paralisante.
Fala também da supressão de privilégios. Invoca a participação efetiva da sociedade na implementação de políticas públicas. Aponta para o equilíbrio fiscal por meio de uma política de juros mais baixos. Toca nas inadiáveis reformas da previdenciária e tributária. E no setor externo propugna por uma diplomacia pragmática, e não ideológica. Bolsonaro culmina a sua fala com a declaração de que vai governar para as futuras gerações, e não para as próximas eleições.
Esses compromissos demandam medidas efetivas para dar concretude aos salutares princípios de governança pública. Algumas providências acarretam profunda alteração constitucional, Outras, apenas leis ou simples decretos administrativos. Mas todas devem visar à eliminação de privilégios, mediante a igualdade de direitos, obrigações e responsabilidades entre o setor público e o privado.
Comecemos pela proposta de um governo decente, que deve ser entendido como um combate permanente à corrupção sistêmica e aos privilégios que corroem o Estado. A proibição de despesas tributárias, representadas pelas exonerações fiscais e trabalhistas a setores privilegiados, é indispensável para a restauração do equilíbrio fiscal, assim como a eliminação das verbas indenizatórias para a elite dos servidores públicos.
No combate efetivo à corrupção, impõe-se o regime de performance bonds - obrigatório nos EUA desde 1894 - nas obras públicas e contratadas pelas estatais, o qual incluiu uma seguradora nos contratos de empreitada, tornando possível quebrar a interlocução entre a construtora e os agentes públicos, garantindo para o Estado o preço, o prazo e a qualidade da obra. No caso de inadimplemento da empreiteira, a seguradora indica outra, ou assume a obra, ou ainda financia a primeira para que prossiga.
Na esfera dos congressistas e de seus partidos, impõe-se a extinção das emendas parlamentares ao Orçamento, assim como a eliminação do Fundo Partidário e do fundo eleitoral, que são todos focos estruturais de corrupção.
Quanto ao compromisso de governar para as futuras gerações, e não para as próximas eleições, impõe-se a não reeleição ou a eleição para cargo ou mandato na legislatura seguinte, bem como instituir o voto distrital, de preferência puro ou misto, para que os eleitores fiscalizem os seus mandatários e possam, se for o caso, destituí-los, mediante recall.
Também devem ser reconhecidas as candidaturas independentes, como existem nas demais democracias, a fim de que se restabeleça o princípio constitucional de que todo o poder emana do povo, e não dos partidos políticos.
Quanto à participação da sociedade, precisa ser exponencialmente melhorado o vigente regime legal de transparência, adotando-se o sistema de open government, mediante a robotização e a aplicação interativa da inteligência artificial, possibilitando a leitura dos dados integrados em tempo real, em linguagem e gráficos comparativos compreensíveis.
Devem também ser adotados o referendo e o plebiscito bienais, em eleições gerais e municipais, para a aprovação de medidas relevantes e leis, como ocorre nos EUA e na Europa democrática. Igualmente precisa ser construída uma ação integrada e compartilhada entre a sociedade e o Estado nas áreas da educação, da cultura, da saúde, da habitação e da melhoria da vida urbana.
Quanto à redução da estrutura do Estado, pela eliminação de uma dezena de ministérios, requer-se a nomeação, como ministros, de técnicos e especialistas de cada área.
Por fim, é necessário quebrar a mais nefasta das estruturas, que é a estabilidade generalizada dos servidores públicos, extinguindo esse fator originário da ineficiência, improdutividade, privilégios e corrupção.
Deve o Estado extinguir os cargos em comissão e de confiança, contratando no mercado de trabalho um mínimo de especialistas e técnicos que possam auxiliar os ministros nas suas tarefas de desburocratização, combate ao corporativismo e implantação de políticas públicas.
Também é crucial a não aplicação do instituto do direito adquirido aos titulares de cargos públicos. O Banco Mundial, em relatório de 2017, aponta o uso abusivo desse preceito, pelo qual os servidores do Estado consolidam e expandem todos os seus privilégios.
Quanto à redução da burocracia, cabe investir fortemente na automação dos serviços públicos, por meio da robotização e da inteligência artificial, no conceito open data, eliminar centenas de órgãos e entes públicos inúteis e dispendiosos e, principalmente, adotar o regime de declaração, no lugar do atual sistema de autorização, para a maior parte das atividades empresariais e civis, hoje emperradas e sujeitas às delongas autorizatórias que proporcionam a corrupção e bloqueiam os direitos comuns dos cidadãos de exercício da atividade produtiva.
No tocante à Federação, é preciso, de um lado, extinguir a guerra fiscal e, de outro, instituir a autonomia legislativa dos Estados em matéria de processo civil, penal e trabalhista. Os prefeitos devem retornar à sua função histórica de gestores, e não mais de “chefes do Poder Executivo municipal”. Os vereadores não devem receber remuneração e os municípios devem instituir a democracia participativa, e não apenas representativa, com uma atuação e fiscalização dos seus habitantes, como nos países democraticamente avançados.
São esses alguns pontos de ruptura, que dariam efetiva consistência ao discurso do presidente eleito no tocante à estrutura do Estado e suas relações com a Nação.
*MODESTO CARVALHOSA É ADVOGADO

O Estado de São Paulo