segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A mão de Stálin está sobre nós Olavo de Carvalho



O Globo, 03 de agosto de 2002

Neste país há três e não mais de três correntes políticas organizadas: o socialismo fabiano que nos governa, o socialismo marxista e o velho nacional-esquerdismo janguista.
O socialismo fabiano distingue-se do marxista porque forma quadros de elite para influenciar as coisas desde cima em vez de organizar movimentos de massa. Seu momento de glória veio com a administração keynesiana de Roosevelt, que, a pretexto de salvar o capitalismo, estrangulou a liberdade de mercado e criou uma burocracia estatal infestada de comunistas, só sendo salva do desastre pela eclosão da guerra. O think tank mundial do fabianismo é a London School of Economics, parteira da “terceira via”, uma proposta da década de 20, periodicamente requentada quando o socialismo revolucionário entra em crise e é preciso passar o trabalho pesado, temporariamente, para a mão direita da esquerda. No poder, os fabianos dão uma maquiada na economia capitalista enquanto fomentam por canais aparentemente neutros a disseminação de idéias socialistas, promovem a intromissão da burocracia em todos os setores da vida (não necessariamente os econômicos) e subsidiam a recuperação do socialismo revolucionário. Quando este está de novo pronto para a briga, eles saem de cena envergando o rótulo de “direitistas”, que lhes permitirá um eventual retorno ao poder como salvadores da pátria se os capitalistas voltarem a achar que precisam deles para deter a ascensão do marxismo revolucionário. Então novamente eles fingirão salvar a pátria enquanto salvam, por baixo do pano, o socialismo.
Desde seus fundadores, Sidney e Beatrice Webb, o fabianismo nunca passou de um instrumento auxiliar da revolução marxista, incumbido de ganhar respeitabilidade nos círculos burgueses para destruir o capitalismo desde dentro. Os conservadores ingleses diziam isso e eram ridicularizados pela mídia, mas a abertura dos Arquivos de Moscou provou que o mais famoso livro do casal não foi escrito pelo marido nem pela esposa, mas veio pronto do governo soviético.
A articulação dos dois socialismos era chamada por Stalin de “estratégia das tesouras”: consiste em fazer com que a ala aparentemente inofensiva do movimento apareça como única alternativa à revolução marxista, ocupando o espaço da direita de modo que esta, picotada entre duas lâminas, acabe por desaparecer. A oposição tradicional de direita e esquerda é então substituída pela divisão interna da esquerda, de modo que a completa homogeneinização socialista da opinião pública é obtida sem nenhuma ruptura aparente da normalidade. A discussão da esquerda com a própria esquerda, sendo a única que resta, torna-se um simulacro verossímil da competição democrática e é exibida como prova de que tudo está na mais perfeita ordem.
No governo, nossos fabianos seguiram sua receita de praxe: administraram o capitalismo como se fossem capitalistas, ao mesmo tempo que espalhavam a doutrinação marxista nas escolas, demoliam as Forças Armadas, instituíam novas regras de moralidade pública inspiradas no marxismo cultural da Escola de Frankfurt, neutralizavam por meio da difamação midiática as lideranças direitistas, criavam um aparato de repressão fiscal destinado a colocar praticamente fora da lei a atividade capitalista e, last not least, subsidiavam com dinheiro público o crescimento do MST, a maior organização revolucionária que já existiu na América Latina. Em suma: fingiam cuidar da saúde do capitalismo enquanto destruíam suas bases políticas, ideológicas, culturais, morais, administrativas e militares, deixando o leito preparado para o advento do socialismo. Fizeram tudo isso sob o aplauso de uma classe capitalista idiota, incapaz de enxergar no capitalismo nada além da sua superfície econômica e ignorante de tudo o que é preciso para sustentá-la. Agora podem ir para casa, seguros de ter um lugar ao sol no socialismo, se ele vier amanhã, assim como no capitalismo, se ele durar mais um pouco.
Se o socialismo marxista tinha sua encarnação oficial no Estado soviético, enquanto o fabianismo era o braço “light” da estratégia stalinista, o nacional-esquerdismo que brotou na década de 30 também foi substancialmente uma invenção de Stalin. A grande especialidade de “tio Josef” era justamente o problema das nacionalidades, ao qual ele dedicou um livro que se tornou clássico. Foi ele que criou a estratégia de fomentar ambições nacionalistas, quando podia usá-las contra as potências ocidentais, ou freá-las, quando se opunham ao “internacionalismo proletário”. É verdade que falhou em aplicá-la com os nazistas, que se voltaram contra a URSS, mas obteve sucesso nas nações atrasadas, onde xenófobos de todos os naipes -- getulistas, nasseristas, peronistas, africanistas e aiatolás variados -- acabaram se integrando nas tropas da revolução mundial, varrendo suas divergências ideológicas para baixo do tapete e transmitindo uma impressão de unidade a seus adeptos nos países ricos (donde o milagre de feministas e gays marcharem contra os EUA ao lado de machistas islâmicos). A multidão dos nacionalistas revoltados dá um reforço externo à estratégia das tesouras, seja como massa de manobra ou, quando fardada, como arma de guerra.
Stalin foi o maior estrategista revolucionário de todos os tempos. Os efeitos de sua ação criadora chegaram às terras tupiniquins e ainda estão entre nós.Todo o panorama político nacional está hoje montado segundo o esquema delineado por ele nos anos 30. Mas, dos poucos que têm envergadura intelectual para enxergar isso, quantos têm interesse de discuti-lo em público?

A grandeza de Josef Stálin - Olavo de Carvalho



Folha de S.Paulo, 18 de dezembro de 2003

A Segunda Guerra Mundial foi preparada e provocada deliberadamente pelo governo soviético desde a década de 20, naquilo que constituiu talvez o mais ambicioso, complexo e bem-sucedido plano estratégico de toda a história humana. O próprio surgimento do nazismo foi uma etapa intermediária, não de todo prevista no esquema originário, mas rapidamente assimilada para dar mais solidez aos resultados finais.
Os documentos dos arquivos de Moscou reunidos pelos historiadores russos Yuri Dyakov e Tatyana Bushuyeva em "The Red Army and the Wehrmacht" (Prometheus Books, 1995) não permitem mais fugir a essa conclusão.
Reduzida à miséria por indenizações escorchantes e forçada pelo Tratado de Versalhes a se desarmar, a Alemanha sabia que, para ter seu Exército de volta, precisaria reconstruí-lo em segredo. Mas burlar a fiscalização das potências ocidentais era impossível. A ajuda só poderia vir da URSS.
Enquanto isso, Stálin, descrente dos movimentos revolucionários europeus, pensava em impor o comunismo ao Ocidente por meio da ocupação militar. Nessa perspectiva, a Alemanha surgia naturalmente como a ponta-de-lança ideal para debilitar o adversário antes de um ataque soviético. Foi para isso que Stálin investiu pesadamente no rearmamento secreto da Alemanha e cedeu parte do território soviético para que aí as tropas alemãs se reestruturassem, longe da vigilância franco-britânica. De 1922 até 1939, a URSS militarizou ilegalmente a Alemanha com o propósito consciente de desencadear uma guerra de dimensões continentais. A Segunda Guerra foi, de ponta a ponta, criação de Stálin.
O sucesso do nazismo não modificou o plano, antes o reforçou. Stálin via o nazismo como um movimento anárquico, bom para gerar confusão, mas incapaz de criar um poder estável. A ascensão de Hitler era um complemento político e publicitário perfeito para o papel destinado à Alemanha no campo militar. Se o Exército alemão iria arrombar as portas do Ocidente para o ingresso das tropas soviéticas, a agitação nazista constituiria, na expressão do próprio Stálin, "o navio quebra-gelo" da operação. Debilitando a confiança européia nas democracias, espalhando o caos e o pânico, o nazismo criaria as condições psicossociais necessárias para que o comunismo, trazido nas pontas das baionetas soviéticas com o apoio dos movimentos comunistas locais, aparecesse como um remédio salvador.
Para realizar o plano, Stálin tinha de agir com prudente e fino maquiavelismo. Precisava fortalecer a Alemanha no presente, para precipitá-la num desastre no futuro, e precisava cortejar o governo nazista ao mesmo tempo em que atiçava contra ele as potências ocidentais. Tarimbado na práxis dialética, ele conduziu com espantosa precisão essa política de mão dupla na qual reside a explicação lógica de certas contradições de superfície que na época desorientaram e escandalizaram os militantes mais ingênuos (como as sutilezas da estratégia do sr. José Dirceu escandalizam e desorientam a sra. Heloísa Helena).
Por exemplo, ele promovia uma intensa campanha antinazista na França, ao mesmo em tempo que ajudava a Alemanha a se militarizar, organizava o intercâmbio de informações e prisioneiros entre os serviços secretos da URSS e da Alemanha para liquidar as oposições internas nos dois países e recusava qualquer ajuda substantiva aos comunistas alemães, permitindo, com um sorriso cínico, que fossem esmagados pelas tropas de assalto nazistas. A conduta aparentemente paradoxal da URSS na Guerra Civil Espanhola também foi calculada dentro da mesma concepção estratégica.
Mobilizando batalhões de idiotas úteis nas classes intelectuais do Ocidente, a espetaculosa ostentação estalinista de antinazismo -cujos ecos ainda se ouvem nos discursos da esquerda brasileira, última crente fiel nos mitos dos anos 30- serviu para camuflar a militarização soviética da Alemanha, mas também para jogar o Ocidente contra um inimigo virtual que, ao mesmo tempo, estava sendo jogado contra o Ocidente.
Hitler, que até então era um peão no tabuleiro de Stálin, percebeu o ardil e decidiu virar a mesa, invadindo a URSS. Mas Stálin soube tirar proveito do imprevisto, mudando rapidamente a tônica da propaganda comunista mundial do pacifismo para o belicismo e antecipando a transformação, prevista para muito depois, do antinazismo de fachada em antinazismo armado. Malgrado o erro de cálculo logo corrigido, o plano deu certo: a Alemanha fez seu papel de navio quebra-gelo, foi a pique, e a URSS ascendeu à posição de segunda potência mundial dominante, ocupando militarmente metade da Europa e aí instalando o regime comunista.
Na escala da concepção estalinista, o que representam 40 milhões de mortos, o Holocausto, nações inteiras varridas do mapa, culturas destruídas, loucura e perdição por toda parte? Segundo Trótski, o carro da história esmaga as flores do caminho. Lênin ponderava que sem quebrar ovos não se pode fazer uma omelete. Flores ou ovos, o sr. Le Pen, mais sintético, resumiria o caso numa palavra: "Detalhes". Apenas detalhes. Nada que possa invalidar uma grandiosa obra de engenharia histórica, não é mesmo?
Por ter colaborado nesse empreendimento, o sr. Apolônio de Carvalho foi, no entender do ministro Márcio Thomaz Bastos, um grande herói. Mas, se o miúdo servo de Stálin tem as proporções majestosas de um herói, o que teria sido o próprio Stálin? Um deus?

As simplificações de Umberto Eco - JOSÉ NIVALDO CORDEIRO



7 de outubro de 2001

A Folha de São Paulo de hoje (07/10) traz um ensaio do escritor italiano Umberto Eco. É um texto sofisticado e muito bem escrito e tem o grande mérito de não cair na esparrela marxista de tentar ver os acontecimentos históricos e os fatos do 11 de setembro sob o ângulo da luta de classes. Ele afirma: "Passemos agora ao confronto de civilizações, por que é essa a questão". Um intelectual aparentemente honesto, embora seu texto seja portador do mesmo veneno que outros escritores menos talentosos e menos cultivados destilaram igualmente: o relativismo cultural e moral.
Não é fácil fazer a exegese de um texto tão bem feito, tendo que explicitar o que há de errado com a sua forma engajada de fazer a defesa dos atacantes do Ocidente. É o que eu vou tentar fazer aqui.
Eco toma como mote e ponto de partida do seu ensaio a fala de Berlusconi, que afirmou a superioridade da cultura ocidental e cristã em relação à dos muçulmanos agressores e, como um intelectual engajado, compara-o a Bin Laden, "que talvez seja mais rico que o nosso primeiro-ministro". É claro que Eco vê na riqueza individual uma espécie de defeito congênito. Por isso que ele se preocupa "com os jovens porque a cabeça dos velhos não se muda mais". Implicitamente, é preciso torná-los semelhante aos Ecos espalhados pelos mundo.
Aqui, com mais elegância e arte, ele bate na mesma tecla em que bateram todos os ícones esquerdistas mundiais: que Bin Laden é rico, é reacionários e que, portanto, é equivalente aos seus iguais do Ocidente. Lá, como cá, tem seus fundamentalistas radicais. O que está errado com essa analogia? O fato de esconder que o Ocidente há muito renunciou à guerra de conquista, à evangelização dos povos não cristãos, que prega o ecumenismo e o Papa, possivelmente o maior símbolo da cristandade perante o mundo não cristão, tem pedido perdão e desculpas pelo passado de "erros" dos cristãos. Eco está errado também por não se lembrar que os muçulmanos simplesmente consideram um profanação que algum infiel pise no solo sagrado da Arábia Saudita, que não reconhecem o direito à existência dos diferentes, que o seu objetivo é construir um Estado teocrático mundial baseado no Corão, enquadrando todas as populações do planeta no obscurantismo em que estão mergulhados.
Dito de outra forma: o Ocidente cristão é tolerante com os diferentes, aceita-os, cultiva-os, recebe-os de braços abertos na sua terra, generosamente tenta lhe passar os seus conhecimentos e pratica a ajuda humanitária, indo as vezes à guerra contra cristãos que não respeitam esses valores, como no caso da Iugoslávia, defendendo os muçulmanos vítimas de genocídio. Alguns indivíduos ocidentais, movidos pela mais generosa das misericórdias, vão àqueles rincões distantes de populações muçulmanas para ajudar e acabam freqüentemente sendo mal tratados e até mortos pela ousadia de ir lá. Então não é possível comparar ambas as atitudes, que são diametralmente opostas. O Ocidente está no século XXI, os muçulmanos pararam no século VII.
Quando Eco afirma que "As guerras de religiões que ensangüentaram o mundo por séculos nasceram de adesões passionais a contraposições simplistas, como nós e os outros, bons e maus, negros e brancos" esqueceu-se de dizer que esse é um capítulo superado no Ocidente, mas é a alma viva do Islã, que se alimenta do ódio ao Ocidente, da mítica idade do ouro que teria havida no passado em que a fé islâmica dominava o mundo, na certeza escatológica de que o domínio político do mundo e a imposição, a ferro e fogo, dos preceitos do Islã, será a instalação do paraíso na terra. E não passa de mera figura de retórica tentar justificar as ações dos radicais islâmicos com os fatos históricos do passado, é a relativização da gravidade dos fatos e a ocultação da sua hedionda imoralidade. De uma vez por todas é preciso ter em conta que não é possível desfocá-los (os fatos históricos) do seu tempo e muito menos transportá-los para o momento atual. Do ponto de vista histórico, os fatos são o que são e não faz sentido enquadrá-los em um tribunal de inquisição. Nisso o Papa está redondamente errado. Não haveria do que pedir desculpas. Todos os agentes históricos possivelmente culpados estão mortos.
De forma correta Eco afirma que "A verdadeira lição que se deve tirar da antropologia cultural é que, para dizer que uma cultura é superior a outra, é preciso fixar parâmetros. Uma coisa é dizer o que é uma cultura, outra é dizer com base, em que parâmetros a julgamos". Só que a sua argumentação parte para campos passíveis de equalizar o Ocidente com o mundo muçulmano, fugindo dos pontos realmente fundamentais, que tornam o Ocidente positivamente superior. Ora, ir buscar na história os grandes feitos científicos e filosóficos do árabes de nada serve para explicar o atual atraso científico, filosófico e tecnológico dos mesmos. É um argumento mal intencionado, mentiroso. E aqui não se trata de discutir questões teológicas relativamente às questões ditas sagradas, mas como essas questões influem sobre o indivíduo, sua liberdade, sua criatividade, sua afirmação diante do mundo. "Os parâmetros de julgamento são outra coisa, depende de nossas raízes, de nossas preferências, de nossos hábitos, de nossas paixões, de um sistema de valores nosso". Exato. Então porque Humberto Eco não tocou na questão feminina, no sistema de Justiça, nas liberdades individuais, na separação entre o poder político e o poder religioso, no princípio da sacralidade da vida individual e dos limites em que o Estado deve atuar, respeitando a privacidade do cidadão? É isso o que verdadeiramente separa hoje ambas as culturas e o que torna o Ocidente muito superior ao mundo Islâmico e nisso qualquer pessoa sensata tem que concordar com Berlusconi. Se uma corrente migratória, por hipótese, se estabelecesse de um país europeu para o Oriente Médio nem seria recebida e mesmo nem seria estabelecida: os indivíduos seriam mortos em pouco tempo. O que dizer de uma Europa e uma América que não apenas recebem os muçulmanos, mas respeitam exaltadamente as diferenças e aceitam o cultivo de suas tradições, mesmo sabendo que eles consideram o mundo judaico-cristão o Grande Satã?
Eco usa de expediente retóricos insidiosos para relativizar e igualar ambos os pólos, especialmente quando afirma: "Bin Laden e Saddam Hussein são inimigos ferozes da civilização, tivemos senhores que se chamavam Hitler ou Stálin". Ora, esses dois últimos são a degeneração do Ocidente, a sua própria negação, enquanto os dois primeiros apenas são a encarnação na forma de poder político do que pensam as massas islâmicas. É inaceitável colocar Hitler e Stálin como exemplos do ser ocidental. Eles são o seu oposto.
"É muita confusão sob o céu", afirma Eco, pois "parece que a defesa dos valores do Ocidente se tornou uma bandeira da direita, enquanto a esquerda é, como sempre, simpatizante islâmica". Eis o ponto. A direita e as pessoas sensatas imediatamente perceberam a gravidade e a grandiosidade histórica dos acontecidos do 11 de setembro. Os esquerdistas continuaram a bater na mesma tecla, a de que o inimigo da civilização e deles próprios são as forças da ordem. Preocupados em tomar o poder político de assalto e enraivecidos por Bush ter vencido o seu candidato, perderam otiming e a capacidade analítica. Eco percebe isso e tenta chamar os seus companheiros ideológicos para a razão. Os esquerdistas não se aperceberam que as querelas políticas paroquiais perderam relevo diante de uma ameaça real à nossa forma de ser. Não falo aqui apenas da ameaça física daqueles infelizes que casualmente estavam onde fizeram cair os aviões e onde poderão estar quando explodir o próximo artefato de morte. Falo da perda, ainda que temporária, das liberdades civis, falo do alargamento das distâncias, falo do muro invisívelque foi instantaneamente construído entre nós e os outros e também entre nós mesmos.
"A defesa dos valores da ciência, do desenvolvimento tecnológico e da cultura ocidental moderna em geral foi sempre uma característica das alas laicas e progressistas" (ele quer dizer esquerdistas). "Contrário foi sempre o pensamento reacionário (no sentido mais nobre do termo – pelo menos começando com a negação da Revolução Francesa – que se opôs à ideologia laica do progresso afirmado que se deveria voltar aos valores da Tradição". Isso é uma inverdade. Ora, Eco deveria dizer que sem a Tradição os valores superiores do Ocidente jamais teriam germinado e a sociedade aberta que construímos não existiria. Sem cristianismo não haveria capitalismo, e sem este não existiriam as liberdades individuais e a exaltação do indivíduo que conseguimos, a duras penas, construir. A liberdade consiste precisamente nisso, na liberdade individual, diante do Estado, da Igreja e de qualquer poder que se opõe à afirmação individual. Eco esqueceu de dizer também que os intelectuais de esquerda perderam o bonde em 11 de setembro porque continuaram a ver fantasmas em lugar de fatos, a falar mal do capitalismo e da globalização, quando na verdade deveriam enxergar que o perigo estava chegando no lombo dos camelos.
O autor finaliza o texto com uma inversão total do que escreveu. O tempo todo ele mostra como os engajados quebraram a cara e perderam o timing. No final, todavia, afirma: "Os mais sérios pensadores da Tradição... sempre se voltaram, mais do que para ritos e mitos dos povos primitivos ou para a lição budista, para o próprio islã, como fonte ainda atual de espiritualidade alternativa. Sempre estiveram ali a nos lembrar que não somos superiores, mas, sim, diminuídos pela ideologia do progresso, e que devemos ir procurar a verdade entre os místicos sufis ou entre os devixes dançantes". Ora, a Tradição consiste precisamente na defesa da Tradição, contra as concorrentes alternativas. Quem tem cultivado o exótico são precisamente os esquerdistas, que fizeram de elementos religiosos estranhos e exóticos instrumentos de propaganda para destruir a moral vigente e enfraquecer as forças da ordem. Essa afirmação é absolutamente falsa, como também é falsa a conclusão que ele tirou:
"Nesse sentido, na direita está se abrindo uma curiosa rachadura"
Deus meu, rachada e desorientada está a esquerda em todo o mundo. É patético ver, por exemplo, Tony Blair como mensageiro da guerra, sabendo que ele tem como eleitores precisamente as hordas esquerdistas do lema paz e amor e todos os simpatizantes orientalistas, que acreditam que as grandes verdades reveladas estão nas civilizações atrasadas. A rachadura é na esquerda, que poderá inclusive encolher formidavelmente, até porque os tempos não serão tolerantes nem com a dubiedade, nem com a tibieza e nem com a mentira. É o tempo de afirmação da Verdade indelével e ela toda está contida em nosso Livro.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Cretinices gramscianas - POR OLAVO DE CARVALHO

 (II)

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A teoria da hegemonia ultrapassa os últimos limites da vigarice razoável e tenta nos fazer engolir como realidade universal e constante algo que é uma impossibilidade material pura e simples
A teoria embutida no espaço entre o fato e a generalização que Gramsci dela extrai é a própria teoria gramsciana da hegemonia, segundo a qual a cultura reinante em qualquer época ou lugar é o instrumento pelo qual a classe dominante impõe sua ditadura mental a toda a população.
Interpor uma teoria entre os fatos e a conclusão, em vez de esperar que a própria acumulação de fatos sugira a conclusão, já é trapaça suficiente para desmoralizar qualquer teorizador.
Mas a teoria da hegemonia ultrapassa os últimos limites da vigarice razoável e tenta nos fazer engolir como realidade universal e constante algo que é uma impossibilidade material pura e simples.
Essa impossibilidade já estava presente na teoria marxista da “ideologia de classe”, da qual a “hegemonia” gramsciana é um prolongamento.
Se cada classe tem uma ideologia que é a expressão idealizada dos seus interesses materiais, então, das duas uma: ou cada um dos seus membros está atrelado de uma vez para sempre à ideologia da sua classe como se fosse uma segunda natureza; ou, ao contrário, pode abjurar dela e aderir à ideologia de outra classe, como fez, ou acreditava fazer, o próprio Karl Marx. 
Só que neste caso não há mais conexão orgânica entre classe e ideologia; tudo se torna uma questão de livre escolha e não há mais “ideologia de classe” nenhuma, só a ideologia que cada indivíduo, livremente, atribui à sua classe ou a uma outra qualquer, conforme a interpretação que faça dos interesses desta ou daquela. 
Gramsci agrava formidavelmente a situação ao declarar que quem produz a ideologia não são propriamente os membros de cada classe, mas sim os “intelectuais” que a representam sem ter de pertencer necessariamente a ela.
Esses representantes são “intelectuais orgânicos” da burguesia e do proletariado. Mas, se o são sem precisar ser eles próprios burgueses ou proletários, a conexão entre eles e a classe que representam não pode ser “orgânica” de maneira nenhuma e sim matéria de livre escolha, nada impedindo que um intelectual passe, ideologicamente, da “burguesia” para o “proletariado” (como Georg Lukács) ou vice-versa (Eric Hoffer, por exemplo).
Ademais, quem infunde nos intelectuais a “ideologia de classe”? Para que o burguês adestrasse intelectuais na ideologia burguesa seria preciso que ele, na condição de mestre, a dominasse melhor que os discípulos: esse burguês seria, então, um superintelectual, um intelectual dos intelectuais, o maître à penser da intelectualidade, reduzindo-a à condição de mera repetidora do discurso aprendido.
Mutatis mutandis, e piorando ainda mais as coisas, os “intelectuais orgânicos” do proletariado se tornariam meninos de escola operária, tomando lições de dialética hegeliana e materialismo histórico com professores pedreiros e ferramenteiros.
Essas situações caricaturais não existem na realidade, no mínimo porque o próprio Gramsci nos assegura que quem cria as ideologias das classes não são as próprias classes, e sim os intelectuais.
Nem poderia ser de outra forma. No mínimo a transposição de interesses materiais numa linguagem de valores, ideias e teorias requer um considerável treinamento especializado nas áreas de filosofia e ciências humanas, que nem um capitalista nem um operário poderiam adquirir nas horas vagas. (Sob esse aspecto é interessante comparar o gramscismo com a teoria da “violência simbólica” de Pierre Bourdieu, outro ídolo, ainda que menorzinho, da intelectualidade esquerdista; (leia aqui e aqui).
Mas, então, nem a ideologia proletária é proletária nem a burguesa é burguesa: são ambas puras criações de intelectuais, que as atribuem a esta ou àquela classe, sem precisar consultá-las, conforme interpretem livremente os “interesses” de cada uma. Não é coincidência, pois, que Karl Marx já tivesse descrito a “ideologia proletária” inteira antes de ter visto de perto um único proletário.
Na melhor das hipóteses, o burguês e o proletário se tornam “tipos ideais” que existem apenas na cabeça do intelectual para fins de comparação com personagens reais que só se parecem com eles de maneira longínqua e esquemática.
Gramsci não admite explicitamente essa conclusão inevitável da sua teoria, mas, como quem não quer nada, extrai dela uma consequência prática que, para o bom entendedor, já denuncia a falácia da construção inteira.
Quem cria as ideologias de classe? Os intelectuais. Quem, com base nela, cria a hegemonia, o controle geral do pensável e do impensável? Os intelectuais. Quem lidera a revolução? Os intelectuais. Quem assume o poder por meio da revolução? Os intelectuais.
Burgueses e proletários são, no fim das contas, apenas os emblemas dos times em jogo. É de espantar que no paraíso burguês os burgueses sejam esfolados com impostos, induzidos a financiar filmes e shows que os demonizam e a contribuir com rios de dinheiro para organizações esquerdistas que prometem matá-los?
É de espantar que no paraíso proletário os proletários sejam submetidos a condições de trabalho escravo, privados do direito de greve, removidos de um lugar para outro sem poder reclamar, policiados vinte e quatro horas por dia e obrigados a entoar cânticos de glória ao Supremo Intelectual e Guia dos Povos?
Tudo não passa, então, de uma disputa de poder entre dois grupos de intelectuais, cada um defendendo os interesses que atribui a uma classe à qual não tem de pertencer e que na maior parte dos casos não foi consultada a respeito.
O que é líquido e certo, embora Gramsci não o diga, é que os intelectuais orgânicos “da burguesia” não pretendem tomar o lugar dela; quem o pretende são os outros, os “intelectuais proletários”.
Nunca se viu um escritor apologista do capitalismo ansioso para deixar de lado seus afazeres intelectuais e tornar-se industrial ou especulador da bolsa. Em contrapartida, nenhum, absolutamente nenhum “intelectual proletário” que eu conheça planeja fazer a revolução proletária para depois continuar vivendo modestamente das suas funções de professor, jornalista ou pesquisador científico.
Tomar o poder e exercê-lo na máxima medida das suas possibilidades é a essência e missão da intelectualidade revolucionária. O que ela quer não é assumir o lugar da intelectualidade direitista, mas o da burguesia.
Isso torna evidente que, na maior parte dos casos, ela disputa o poder com um grupo que não o detém nem o deseja. Basta isso para explicar a inermidade estrutural da intelectualidade conservadora e liberal ante o avanço esquerdista.
É algo que não tem nada a ver com superioridade ou inferioridade intelectuais, mas com desejo ou falta de desejo de poder. Quando o sr. Lula sentenciou que seus inimigos “não tinham perspectiva de poder”, acertou na mosca.
Para completar a fantasia com um toque de alucinação, Gramsci admite que nem todos os intelectuais participam conscientemente da “luta de classes”. Alguns – em geral a maioria deles – são indiferentes à política e se satisfazem com suas ocupações filosóficas, científicas ou artísticas, sem se preocupar em saber quem isso vai favorecer nas próximas eleições.
A esse grupo Gramsci denomina “intelectuais tradicionais”, acrescentando que são neutros e apolíticos só em imaginação, por falsa consciência; na verdade são servos inconscientes do status quotanto quanto os intelectuais orgânicos “burgueses”.
Ou seja: os “intelectuais proletários” estão em perpétua disputa de poder não somente com intelectuais orgânicos burgueses que não aspiram ao poder, mas com toda uma comunidade intelectual que não quer nem saber da existência dessa disputa.
A consequência disso, do ponto de vista cognitivo, é devastadora: o intelectual esquerdista explica toda a sociedade como uma projeção inversa dos seus próprios valores e metas, pouco lhe importando a auto explicação que os demais grupos e indivíduos tenham a apresentar.
Para ele, a sociedade, a história, a existência humana inteira giram em torno do seu objetivo grupal, da sua luta pelo poder, que no seu entender move todo o restante como o cão abana a cauda. Ele, em suma, é o fator ativo, o criador da História, a única realidade efetiva: todo o resto da humanidade são sombras que se mexem à sua voz de comando.
É uma visão horrivelmente autocêntrica, solipsista, psicótica mesmo, que se espalha com facilidade entre estudantes universitários pelo simples fato de que é a mais reconfortante compensação neurótica do seu justo sentimento de inutilidade social.

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Não é só na esquerda militante que o pensamento de Gramsci inocula o seu veneno alienador e estupidificante. Chego a pensar que basta admirá-lo um pouquinho, suspender o juízo crítico por uns instantes, para que algo do besteirol gramsciano entre e permaneça para sempre.
Por ocasião de um de seus últimos chiliques anti-olavéticos, cuja razão de ser escapa ao entendimento humano, o sr. Marco Antônio Villa, na ânsia doida de exaltar tudo o que critico, chegou a proclamar que a subsistência da democracia na Itália do pós-guerra foi obra do gramscismo imperante no Partido Comunista Italiano.
É com certeza a coisa mais burra que já saiu da boca de um pretenso historiador. Raiva descontrolada é vexame na certa. O regime democrático só sobreviveu na Itália graças à derrota acachapante que, contra todas as previsões iluminadas, a Democracia Cristã de Alcide De Gasperi, mobilizando o apoio de toda a população católica na primeira eleição geral realizada após a queda do fascismo, impôs em 18 de abril de 1948 ao Front Popular comunista, que desde então foi saindo do cenário político, por etapas sucessivas, para a lata de lixo da História.
Se o sr. Villa quiser alguma bibliografia sobre o assunto, posso lhe fornecer, mas só se ele pedir com jeito.

Um guru da educação brasileira Olavo de Carvalho



Diário do Comércio, 4 de fevereiro de 2009
Uma das idéias mais influentes e respeitadas na educação brasileira é a teoria da “violência simbólica”, criada por Pierre Bourdieu (v. Pierre Bourdieu e Jacques Passeron, A Reprodução. Elementos para uma Teoria do Sistema de Ensino, trad. Reynaldo Bayrão, 3ª. ed., Rio, Francisco Alves, 1992). Por esse termo ele entende “a violência que extorque submissão não percebida como tal, baseada em ‘expectativas coletivas’ ou crenças socialmente inculcadas”. Violência simbólica é toda forma de dominação mediante impregnação inconsciente de hábitos, símbolos e valores que ao mesmo tempo impõem essa dominação e a encobrem aos olhos dos dominados, de modo que a violência é tanto mais efetiva quanto menos reconhecida.
Todo sistema educacional, desta ou de outras épocas, constitui-se, segundo Bourdieu, de “atos pedagógicos” destinados a impor um conjunto de valores culturais, sempre arbitrários e injustificáveis, por meio de “violência simbólica”. As noções de “violência” e “arbitrário” estão interligadas: “A seleção de significações que define objetivamente a cultura de um grupo ou de uma classe como sistema simbólico é arbitrária na medida em que a estrutura e as funções dessa cultura não podem ser deduzidas de nenhum princípio universal, físico, biológico ou espiritual, não estando unidas por nenhuma espécie de relação interna à ‘natureza das coisas’ ou a uma ‘natureza humana’.”
A premissa aí oculta é que, se o sistema simbólico refletisse princípios universais, a ação pedagógica não seria violência simbólica e sim persuasão racional . Mas isso, segundo Bourdieu, jamais acontece: “Toda ação pedagógica é objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural.”
Mas, se a cultura não tem fundamento, nem por isso deixa de ter utilidade – para alguns, é claro: “A seleção de significações que constitui objetivamente a cultura de um grupo ou classe como sistema simbólico é sociologicamente necessária na medida em que essa cultura deve sua existência às condições sociais das quais ela é o produto.” O esquema dominante (as “condições sociais”) não se limita a “produzir” o sistema simbólico – ele se serve dele para seus próprios fins: “...O arbitrário cultural que as relações de força entre os grupos ou classes... colocam em posição dominante... é aquele que exprime o mais completamente, ainda que sempre de maneira mediata, os interesses objetivos (materiais e simbólicos) dos grupos ou classes dominantes.”
Bourdieu apresenta esses parágrafos como uma lição de sociologia, isto é, uma descrição de como as coisas funcionam nas sociedades existentes, inclusive e primordialmente, é claro, a sociedade burguesa. Ele pretende, portanto, que a classe burguesa, na busca de seus próprios interesses, criou um sistema de significações a ser inculcado por meio de atos pedagógicos de violência simbólica nas mentes dos dominados, de tal modo que não só essas significações, mas também aqueles interesses, e a relação de poder que os atende, permaneçam invisíveis. É, convenhamos, uma operação de engenharia psicológica das mais complexas. Para realizá-la, é preciso, primeiro, agentes humanos qualificados. Uma “classe”, afinal, abrange milhões de pessoas e não é possível que todas elas participem do empreendimento. É preciso que, dentre elas, se destaquem uns quantos especialistas, os “educadores”, que estes sejam aceitos como legítimos representantes da classe, que entrem num consenso ao menos aproximado quanto aos interesses da classe que representam; é preciso ainda que esse consenso corresponda de fato aos tais interesses e obtenha, uma vez formulado, a aprovação da classe que nomeou os educadores. Partindo, pois, dessa representação meramente esquemática da situação social, eles teriam de selecionar e organizar os símbolos, estratégias e esquemas mentais mais propícios não só a produzir obediência nos dominados, mas também a manipulá-los e ludibriá-los de tal modo que não percebessem estar obedecendo a uma classe dominante, e nem mesmo a seres humanos, mas acreditassem seguir espontaneamente a natureza das coisas ou a vontade divina.
Vocês conseguem imaginar quantas assembléias, quantos grupos de trabalho, quantas pesquisas científicas, quantos projetos técnicos, quantas tentativas e erros seriam necessários para um plano dessa envergadura? Já imaginaram a imensa capacidade organizativa, os incalculáveis recursos orçamentários e, no topo da hierarquia, a mão de ferro necessária para manter a ordem, controlar o fluxo de trabalho e assegurar a produtividade num empreendimento todo feito de sutilezas psicológicas infinitamente evanescentes? Se algo dessa natureza tivesse um dia sido concebido, os trabalhos preparatórios deveriam ter deixado uma multidão de rastros: monografias acadêmicas, atas, publicações periódicas, regulamentos, ordens de serviço, etc, etc. O problema é o seguinte: nada disso existe, nada disso existiu jamais.
Se vasculharmos todas as bibliotecas, todos os registros, todos os arquivos sobre a história da educação burguesa, não encontraremos um só documento, um só memorando, uma só ata onde apareça, mesmo indiretamente, uma discussão nestes termos: “Os interesses objetivos da nossa classe são tais e quais, os meios de forçar as pessoas a trabalharem para nós são estes e aqueles, e os meios de camuflar toda a operação são xy.” Nenhum educador, ministro da educação, professor ou inspetor do ensino primário, médio ou superior jamais disse uma coisa dessas, ou pelo menos não há documento que o registre.
Eles falam, sim, de valores, de fins da educação, de aprimoramento da inteligência humana, de virtudes cívicas, etc., mas nunca, jamais, de uma operação para forçar invisivelmente os dominados a uma conduta que, alertados, eles poderiam não aprovar. Como é possível que uma operação tão delicada não deixasse o menor rastro, senão numa linguagem tão desligada, aparentemente, de qualquer intenção manipulatória, de qualquer imposição camuflada, de qualquer “violência simbólica”? Se admitimos que essa intenção existiu, então só há, para explicar a inexistência de registros, as seguintes hipóteses:
Hipótese 1. Além de conceber um sistema de camuflagens para ludibriar os dominados, os malditos educadores burgueses ainda criaram, em cima dele, uma segunda rede de disfarces verbais para enganar os observadores futuros, isto é, nós. Mas esta segunda operação, sendo ainda mais complexa e trabalhosa do que a primeira, e só podendo ser levada a cabo depois que esta estivesse pronta, pela simples razão de que não se pode camuflar o que não existe, também não deixou para os historiadores o menor registro, o que supõe que, além da primeira camuflagem e da segunda, houve em seguida uma operação-sumiço ainda mais gigantesca do que as outras duas.
Hipótese 2. Ao planejar a manipulação dos dominados, os educadores burgueses não tinham conscientemente essa intenção, mas, enquanto serviam aos interesses objetivos da burguesia, acreditavam piamente trabalhar por valores culturais sublimes, pelo aprimoramento da inteligência etc. Isolados da realidade pelo seu próprio véu ideológico que encobria os verdadeiros interesses em jogo, planejaram inconscientemente a manipulação do inconsciente alheio e, embora trabalhassem totalmente às cegas, produziram um sistema tão organizado, racional e eficiente que conseguiram realmente fazer-se obedecer por milhões de paspalhos ainda mais inconscientes que eles – a multidão dos “dominados”. Não me perguntem como é possível uma operação tão vasta e complexa atingir miraculosamente os fins desconhecidos que, por vias ignoradas e inapreensíveis, atendem aos interesses de classe postulados, também inconscientemente, no início do processo.
Quando vemos o gênero de tolice em que os responsáveis pelas nossas escolas públicas devotamente acreditam, torna-se bem fácil explicar por que os alunos dessas escolas tiram sempre os últimos lugares nos testes internacionais.

Paranóia sociológica Olavo de Carvalho



Diário do Comércio, 12 de fevereiro de 2009
Terminei o antigo anterior dizendo que a teoria da “violência simbólica” pressupunha ou uma megaconspiração cujos traços documentais desapareceram para sempre, ou o milagre de uma intenção inconsciente ser capaz de manipular o inconsciente alheio com a precisão de um cálculo matemático. Se as duas hipóteses são francamente dadaístas, à segunda vem acrescentar-se ainda mais um fator complicante. Para que os educadores fossem induzidos a trabalhar inconscientemente para os interesses da burguesia, teria sido preciso que a burguesia os manipulasse para esse fim, o que supõe que os capitalistas fossem educadores ainda mais hábeis do que os educadores profissionais, impondo a estes, por meio de “violência simbólica”, as normas e padrões de uma violência simbólica de segundo grau que, inconscientemente, eles deveriam repassar à multidão dos dominados. Também não há registro histórico de que isso jamais tivesse acontecido, é claro.
Ora, se a teoria da educação como “violência simbólica” não corresponde a nenhum fato objetivo, a nada que tenha acontecido historicamente, de onde é que ela extrai sua força de persuasão, a aparência de verossimilhança que a torna aceita, de umas décadas para cá, como uma grande verdade sociológica?
A resposta é escandalosamente simples. Toda a documentação que não existe sobre o planejamento da manipulação psicológica burguesa existe, em abundância, sobre a manipulação educacional revolucionária e socialista. Milhares, centenas de milhares de livros, artigos acadêmicos, atas de assembléias de professores e estudantes, revistas educacionais, circulares de sindicatos, filmes, vídeos etc., sem contar as obras completas de Antonio Gramsci e do próprio Pierre Bourdieu, atestam a existência de enormes trabalhos empreendidos para implantar na cabeça das crianças os valores e condutas que os revolucionários julgam convenientes para transformar os estudantes em massa de militantes ou simpatizantes da causa revolucionária, bem como para fazer com que os agentes desse empreendimento passem despercebidos e os efeitos de suas ações sejam vivenciados como transformações espontâneas do processo histórico. E isto não é uma interpretação que eu esteja fazendo. Os próprios revolucionários declaram que esse trabalho tem de ser feito e explicam como ele deve ser feito. A frase de Antônio Gramsci citada no artigo anterior é o resumo da coisa toda. A “revolução cultural” opera-se por meio de mudanças sutis e quase imperceptíveis do imaginário popular – do “senso comum” como o chama Gramsci –, de tal modo que tudo pareça espontâneo e que a vontade do Partido não se imponha como ditado autoritário de uma organização política em particular, mas como decorrência involuntária e anônima da natureza das coisas, como “autoridade onipresente e invisível de um imperativo categórico, de um mandamento divino”.
Mais do que pôr em prática a máxima leninista “acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é”, Bourdieu inventa seu inimigo à imagem e semelhança do que ele próprio está fazendo. A famosa “violência simbólica” da cultura burguesa, não existe senão como projeção invertida da educação revolucionária. Ela é, em toda a linha, uma criatura do imaginário militante. É precisamente por só existir como fantasma na alma doente dos revolucionários que a pedagogia burguesa não apenas deixa de oferecer qualquer resistência visível ao avanço da educação revolucionária, mas ainda a protege e fomenta, oferecendo ao educador antiburguês todos os meios de ação disponíveis, acompanhados de honrarias e recompensas. Não há establishment educacional no mundo burguês que não tenha em Pierre Bourdieu o seu queridinho, o seu enfant gâté, infinitamente badalado e paparicado. Na verdade, a maioria dos educadores de grande sucesso no mundo burguês são todos revolucionários – John Dewey, Celestin Freinet, Paulo Freire, Jean Piaget, Emilia Ferrero e tutti quanti –, e é inconcebível que a astúcia maquiavélica dos burgueses que montaram a operação de manipulação invisível descrita por Pierre Bourdieu não tivesse percebido isso e, como uma sonsa, consentisse em promover seus inimigos em vez de seus porta-vozes fiéis.
A “sociologia da educação” de Pierre Bourdieu é não somente uma idiotice: é uma projeção psicótica das ações do próprio Bourdieu e de seus correligionários sobre uma realidade inexistente. É uma doença mental, e seu sucesso se deve precisamente a isso: é mais fácil transmitir o vírus de uma moléstia incapacitante do que algum conhecimento da realidade.

Dez grandes derrotados da nossa história (ou, como o Brasil poderia ter dado certo, mas não deu) - PAULO ROBERTO DE ALMEIDA


**Paulo Roberto de Almeida é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas. Foi ministro-conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington (1999-2003). Trabalhou entre 2003 e 2007 como Assessor Especial no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
O Brasil, já disse alguém, não é para principiantes. Vamos admitir que a frase expresse a realidade, ainda que ela seja uma mera banalidade conceitual. A verdade é que nenhuma sociedade urbanizada, industrializada, conectada, ou seja, complexa, como são quase todas as nações contemporâneas, é de fácil manejo para amadores da vida política ou para iniciantes no campo da gestão econômica. Não deveria haver nada de surpreendente, portanto, em que o Brasil, de fato, não seja para principiantes, como dito nesse slogan tão folcloricamente simpático quanto sociologicamente inócuo.
Mas atenção: a frase é, sim, relevante pelo lado do seu exato contrário. O mais surpreendente, no caso do Brasil, está em que o país não é de rápida explicação ou de fácil interpretação nem mesmo para pensadores distinguidos e intelectuais de primeira linha (eles o são, de verdade?). Ele tampouco parece ser de simples manejo mesmo para estadistas da velha guarda (nós os temos?), para políticos experientes (parece que ainda existem), sem esquecer os empresários inovadores (quantos são, alguém sabe dizer?) ou para economistas sensatos (seria uma espécie rara?). O Brasil já destruiu mais de uma reputação política, como continua desafiando as melhores vocações de “explicadores sociais” (inclusive brasilianistas), com o seu jeito sui-generis de ser. Existe, por exemplo, alguma explicação sensata para o fato de que “o país do futuro”, o “gigante inzoneiro”, a terra dos recursos infinitos, seja ainda uma sociedade desigual, ricamente dotada pela natureza, mas com muitos pobres, milhões deles, uma nação até materialmente avançada, mas (aparentemente, pelo menos) mentalmente atrasada? O que é que nos retém na rota do desenvolvimento social integrado? Quais são os formidáveis obstáculos, quantas e quais são as barreiras intransponíveis?
Não foram poucos os espíritos corajosos que tentaram vencer essas dificuldades e nos colocar num itinerário de progresso sustentado. A maior parte acabou derrotada por um conjunto variado de circunstâncias cuja identificação exata requereria um batalhão de sociólogos, dos melhores. Vamos repassar, ainda que brevemente, o itinerário de dez grandes personalidades que, em momentos decisivos da história do Brasil, viram seus projetos e propostas de reformas ou de melhorias para o país totalmente frustrados em função das condições ambientes, por força da oposição de outros personagens ou de grupos poderosos, ou pelo fato de que eles mesmos não souberam, ou não puderam, obter apoios suficientes para que suas propostas de políticas públicas fossem, em primeiro lugar, aceitas por outros dirigentes, ou pela opinião pública, depois seguidas pela coalizão dominante a cada momento e, finalmente, implementadas na forma por eles concebida inicialmente. A maior parte desses homens não foi sequer consolada, em vida, por aquele famoso dístico de bandeira estadual: “ainda que tardia”.

1) HIPÓLITO JOSÉ DA COSTA

HipolitoJoseCostaRetrato
Nascido na Colônia do Sacramento, criado em Rio Grande, espírito iluminista, liberal econômico, assessor, durante algum tempo, do grande estadista português da passagem do século 19, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, o conde de Linhares, para quem investigou as inovações econômicas e melhoramentos agrícolas da jovem República americana nos anos finais do século 18, e por quem foi enviado à Inglaterra para adquirir equipamentos gráficos, para modernizar a imprensa do Reino, e onde se tornou maçom, foi preso e torturado pela Inquisição ao retornar a Portugal, tendo conseguido fugir após alguns anos de cárcere. Estabelecido na Inglaterra desde então, Hipólito deu início ao primeiro jornal independente brasileiro, o Correio Braziliense, que editou sozinho em Londres desde a transmigração da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, até que fosse confirmada a independência e a separação do, até então, Reino Unido, no final de 1822. Nomeado cônsul do Brasil em Londres, por José Bonifácio, Hipólito ainda teve tempo de enviar-lhe, em fevereiro de 1823, um ofício propondo reformas nos correios, nos transportes e na colonização, mas não para tomar posse do cargo para o qual estava preparado como nenhum outro brasileiro.
Seu Correio Braziliense forneceu, durante exatos quatorze anos e sete meses ininterruptos, material de informação, de reflexão e de críticas a todos os dirigentes portugueses (que o liam à sorrelfa) e aos brasileiros ilustrados, constituindo o maior repositório de dados e análises fiáveis sobre o estado do reino de Portugal, sobre a situação da Europa napoleônica e pós-napoleônica, sobre as Américas em geral e sobre o Brasil em particular. Seu “armazém literário” constitui o mais completo manual de políticas públicas e de economia política – no sentido de estadismo para a prosperidade dos povos, como a definia Adam Smith – cujo grande objetivo era o de ajudar o Brasil e os “brazilienses” a enriquecer rapidamente, como ocorria então na Inglaterra. Muitos ministros do reino, em Portugal e no Brasil, concordavam com ele, mas às escondidas, pois não o podiam revelar, ainda que um ou outro mais ousado tentasse convencer o príncipe regente, depois D. João VI, do acertado daqueles críticas e propostas de políticas, inclusive no que se referia aos tratados desiguais com a própria Inglaterra. Infelizmente seus conselhos foram raramente seguidos e ele veio a morrer antes de poder servir de forma mais efetiva ao país que era o seu, mas que tinha abandonado ainda muito jovem para nunca mais voltar.

2) JOSÉ BONIFÁCIO DE ANDRADA E SILVA

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As mesmas ideias defendidas por Hipólito, de monarquia constitucional e de fim da escravidão, foram esposadas por José Bonifácio, grande intelectual nascido em Santos, SP, homem de ciência e de grandes luzes, membro de diversas academias europeias, combatente contra as tropas napoleônicas em Portugal, antes de retornar ao Brasil para servir ao Reino Unido e se converter no verdadeiro artífice da independência do Brasil. Proclamada esta, ele pretendia, já na Assembleia Constituinte, libertar o Brasil da mácula do tráfico escravo e, assim que possível, da nódoa da escravidão, conseguindo braços para a lavoura e para a formação de uma sólida economia agrícola entre camponeses imigrados europeus. Como Hipólito, e como tantos outros abolicionistas, José Bonifácio foi derrotado pela coalizão de mercadores de escravos e de grandes proprietários de terras, abandonado, aliás, pelo próprio Imperador, que aproveitou-se do recrudescer das turbulências políticas na Assembleia Constituinte e das divisões políticas entre os maçons para decretar o encerramento do breve exercício de ordenamento constitucional, “cassar” os seus membros e exilar ou prender toda a família dos Andradas. Bonifácio foi mais uma vez para a Europa, e só retornou ao Brasil para ser preceptor, por breve tempo, do menino Pedro de Alcântara, mas já sem condições de influenciar a política no período regencial. Foi um dos grandes derrotados de nossa lista de estadistas-idealistas.

3) IRINEU EVANGELISTA DE SOUZA

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O gaúcho de nascimento e self-made man só adquiriu o título nobiliárquico de Barão de Mauá (depois Visconde, em 1875) na data da inauguração, em 1854, do primeiro trecho da ferrovia Rio-Petrópolis, entre o porto de Mauá, na baia da Guanabara, e o pé da serra de Petrópolis. Antes disso ele já tinha amealhado fortuna com seus empreendimentos industriais (sobretudo estaleiros) e comerciais (em especial seus bancos, no Brasil e em diversas capitais estrangeiras). Homem possuidor do mesmo espírito empreendedor e liberal de seus tutores ingleses (primeiro numa casa de importação no Rio, depois mediante viagem à Inglaterra, em 1840), ele enfrentou inúmeras dificuldades num país escravocrata e caracterizado pela mão pesada do Estado em todo e qualquer setor da economia (o governo tinha de autorizar qualquer novo empreendimento que ele desejasse fazer), e teve vários atritos com ministros de sucessivos gabinetes do Segundo Império; essas desavenças o levaram à ruina comercial e financeira, e obstaram a que suas ideias progressistas pudessem ser reconhecidas como válidas e implementadas num país em que o status de senhor de escravos ainda era sinal de distinção.
O historiador Nathaniel Leff, heterodoxo entre os intérpretes de nossa história econômica, afirma que o atraso do Brasil não se situa tanto na colônia, como afirmam vários historiadores consagrados, mesmo os da vertente marxista, mas precisamente no período do Segundo Império, quando o Brasil perde a oportunidade de implementar as reformas preconizadas por Mauá, seja no terreno da força-de-trabalho, seja na política monetária, ou no ambiente de negócios e no da infraestrutura. Não há nenhuma dúvida que, ao final do Império, o Brasil teria sido um país muito diferente se as ideias (não só econômicas) de Mauá tivessem sido implementadas como políticas públicas. Ele foi, provavelmente, o primeiro empresário derrotado de nossa história.

4) JOAQUIM NABUCO

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O “aristocrata” da zona da mata de Pernambuco é mais um derrotado de nossa lista, não exatamente enquanto publicista – terreno no qual ele foi brilhante – ou como diplomata do Império e da República, mas enquanto abolicionista, a despeito de suas raízes nos engenhos de açúcar do Nordeste. Intelectualblasé, ele bateu-se com denodo pela causa da emancipação, e seu livro sobre o abolicionismo (publicado em Londres em 1883) foi decisivo na intensificação da campanha, nessa mesma década. Mas ele já tinha sido derrotado antes, pois que não conseguiu reeleger-se para sua primeira cadeira de deputado, conquistada em 1878, assim como viu frustrada sua campanha pela laicização do Estado Imperial, que tinha a religião católica como oficial. Mesmo quando da abolição, por decreto imperial, suas propostas para que a emancipação dos escravos fosse acompanhada de um grande programa de reforma agrária e da universalização da educação pública, compulsória e gratuita, com vistas à elevação do padrão educacional de milhões de brasileiros pobres, e não apenas dos negros libertos, jamais foram seriamente consideradas pela República oligárquica.
Ele afastou-se da política, como monarquista que era, e dedicou-se aos livros e à história. Só retornou à vida pública para novamente dedicar-se à diplomacia, não para defender o regime, mas para servir ao país. O retorno lhe deu ainda mais desgosto, no caso da arbitragem italiana sobre a questão da Guiana, fronteira com a colônia britânica: a Grã-Bretanha abocanhou quase 50% a mais do território disputado do que foi concedido ao Brasil, nascendo aí seu acentuado monroismo, ou americanismo, ao considerar que das potências europeias o Brasil não deveria esperar nada. Do nosso ponto de vista, entretanto, o Nabuco “derrotado” que interessa registrar é o das nunca implementadas propostas de reforma agrária e de educação pública em favor de negros libertos e dos brancos pobres, na verdade para todos.
O Brasil republicano, desde o início, e provavelmente até hoje, continua a pagar muito caro pela ausência de medidas desse tipo, para elevar a capacidade produtiva do seu povo. A reforma agrária, na verdade, na prática se tornou inócua pela modernização capitalista da economia rural, mas no campo da educação continuamos a exibir atrasos, se não quantitativamente (a taxa de escolarização, no início do primário, alcançou, por fim, a dos países avançados, mas 150 anos depois), certamente em qualidade do ensino.

5) RUI BARBOSA

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Conselheiro do Império, primeiro ministro da Fazenda do novo regime, no governo provisório de Deodoro, quando empreendeu algumas boas reformas e outras menos boas, o homem mais inteligente do Brasil (segundo os baianos), foi, antes de tudo, um pensador, um doutrinário e um publicista (e um dos mais prolíficos do Brasil, que nunca publicou um livro sequer, mas que tem obras completas em dezenas de volumes). Ele é usualmente definido como um polímata, pois suas atividades e escritos abrangiam os mais diversos domínios do conhecimento humano, com especial predileção pelo direito. Logrou sucesso em muitos dos empreendimentos que lhe foram oferecidos ou para os quais ele se voluntariou, em virtude de seus vastos conhecimentos jurídicos; voltou da Segunda Conferência Internacional da Paz da Haia, em 1907, como um herói, o “Águia de Haia”, como exageradamente seus conterrâneos chamaram-no.
Mas também acumulou vários insucessos, entre eles a mal concebida reforma bancária do início da República, que acabou resultando numa violenta especulação, o chamado Encilhamento. Opôs-se a Rio Branco na compra do Acre à Bolívia, e saiu ruidosamente da delegação negociadora. Sua maior derrota, porém, não para ele, mas para o Brasil, foi ter perdido o pleito presidencial de 1910 para o Marechal Hermes da Fonseca, militarista como seria de se esperar, mas sobretudo prepotente, mandando submeter a golpes de canhão os governadores recalcitrantes dos estados que não o obedeciam. Por isso mesmo, o chanceler Rio Branco, angustiado, pensou em se demitir do seu cargo, sucessivamente renovado em quatro governos: coitado, morreu logo após.
A derrota para Hermes da Fonseca foi uma derrota para o Brasil, no sentido em que representou a consolidação do arbítrio como norma de governo, um golpe de Estado permanente contra vários princípios constitucionais, a ofensa aos adversários políticos (considerados inimigos) como coisa corriqueira, o despotismo do Executivo sobre os demais poderes. Rui se exasperava em face do desprezo que o governo exibia contra os mais comezinhos valores da democracia, entre eles as liberdades individuais e o pleno vigor do Estado de direito. Seus artigos, conferências e palestras dos últimos anos revelam justamente sua revolta contra o desrespeito demonstrado pela maior parte dos políticos – e dos militares – às normas mais elementares do sistema democrático. Como seu amigo Nabuco, ele faria um excelente ministro – talvez até primeiro – de um sistema parlamentar ao estilo inglês (se possível de uma monarquia constitucional, pois a despeito do seu republicanismo, Rui, a exemplo de Oliveira Lima, se decepcionou rapidamente com aquela república), ou de um governo congressual ao estilo americano, como preconizado pelo professor de Princeton Woodrow Wilson, mais tarde presidente. Como os anteriores, Rui também foi um derrotado, não apenas nos seus princípios e convicções, mas também em suas tentativas práticas de democratizar plenamente e de enquadrar o Brasil num Estado de direito efetivo.

6) MONTEIRO LOBATO

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O filho de fazendeiros do Vale do Paraíba se espantou desde cedo com a inacreditável miséria dos caboclos do interior, que ele imortalizou na figura emblemática do Jeca Tatu. Ele constatou as condições sanitárias abomináveis dos matutos do interior e, sobretudo, a ignorância abismal desses homens que sequer tinham consciência de sua condição ou da existência de um país chamado Brasil. Seus muitos artigos de imprensa, sua atividade de editor, seus diálogos imaginários sobre nossos problemas com um inglês da Tijuca – Mister Slang e o Brasil –, todos eles batem na mesma tecla: o Brasil é um país profundamente atrasado, tão arcaico a ponto de ser derrotado pelas saúvas e por endemias eternas, e só teria salvação se empreendesse um vigoroso esforço de modernização, de preferência modelado no exemplo americano.
O fordismo lhe parecia a solução ideal para nossa débil industrialização, e o petróleo seria o combustível indispensável à redenção da nação. Lobato está na origem do “petróleo é nosso”, mas ele não era um chauvinista, um patriota rústico que queria afastar o capital estrangeiro do esforço de capacitação industrial e tecnológica. Ele se batia contra os “trustes estrangeiros” não porque fossem estrangeiros, mas porque via neles uma conspiração contra a prospecção de poços no Brasil, ao preferirem as jazidas mais fáceis do Oriente Médio. Achava que o governo não fazia esforços suficientes nessa direção, e denunciou o “entreguismo” da ditadura Vargas: por isso foi processado e preso. Mas a sua concepção de progresso era indiscutivelmente americana: ele foi mais um derrotado pelo nacionalismo rastaquera e pelo estatismo arraigado nos corações e mentes das elites políticas e industriais. Só o fato de proclamar o valor dos livros na construção da nação já lhe valeria a entrada num panteão da pátria. Pena…

7) OSWALDO ARANHA

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Paradoxalmente, só foi derrotado quando finalmente chegou ao momento de maior glória, e pelo próprio homem que ajudou a colocar no poder. A “estrela da revolução liberal” de 1930, foi de fato o homem que “liquidou” a República Velha, ante as hesitações e dúvidas de Getúlio Vargas quanto às chances de vitória do movimento contra Washington Luís e seu presidente eleito do bolso do colete. Não fossem os esforços decididos de Aranha, no sentido de unir gaúchos e mineiros, e de aliciar forças decisivas no Exército e nas tropas estaduais militarizadas, a revolução de 1930 não seria o marco da modernização do Brasil e da construção de um Estado moderno, não mais a “República carcomida” das oligarquias do café-com-leite. Sucessivamente ministro da Justiça, da Fazenda (quando ele encaminha os problemas da dívida externa e dos estoques de café) e embaixador em Washington, Aranha estava no auge de sua glória quando decide abandonar, por desgosto, seu posto diplomático, na sequência do Estado Novo, em novembro de 1937, que repudiou imediatamente.
Foi apenas sua amizade com Vargas, e a necessidade que este tinha de manter as melhores relações possíveis com os americanos – a despeito de suas notórias simpatias pelos regimes fascistas da Europa – que explicam seu retorno à política, como chanceler do Estado Novo, de março de 1938 a agosto de 1944. Sua ação à frente do Itamaraty foi decisiva para conter a inclinação de muitos dos expoentes do regime por uma aliança com as potências nazifascistas, aparentemente invencíveis no início dos anos 1940, e para ancorar vigorosamente o Brasil no grupo das Nações Aliadas.
Aranha sempre foi um candidato natural das forças democráticas à presidência da República: hipoteticamente em 1934, numa eventual escolha alternativa pela Constituinte (e provavelmente por isso, Vargas decidiu manda-lo para Washington); talvez em 1938, se as eleições previstas não tivessem sido cortadas pelo golpe de Estado; possivelmente ao final do Estado Novo, quando Vargas ainda manobrava para continuar, depois indicando um sucessor de sua escolha; em 1950, quando foi sondado, mas preferiu deixar o terreno livre para o ex-ditador; ou ainda, e finalmente, à morte deste, nas eleições de 1955, disputadas por muitos candidatos bem menos qualificados do que ele. Foi uma pena que sua falta de ambição, e sua fidelidade irrestrita ao “irmão maior” que era Vargas, obstaram que ele galgasse o posto mais alto da República.
Para se ter uma ideia de como o Brasil poderia ter sido diferente, se ele tivesse ascendido ao comando da nação, basta ler a carta que Aranha enviou a Vargas para que este discutisse os assuntos da guerra e da paz no encontro que o ditador teria em Natal com Franklin Roosevelt, em janeiro de 1943. O maquiavélico ditador não só o afastou traiçoeiramente dessas conversações, mas também impediu um encontro especial que se realizaria em Washington com o presidente americano no mesmo mês em que Aranha foi humilhado pela polícia política do regime, no triste episódio da Sociedade das Américas, em agosto de 1944, o que acabou determinando sua saída da chancelaria.
Naquela carta, Aranha delineou não apenas um esquema de aliança com os EUA, para ganhar a guerra, mas também uma estreita cooperação para participar da nova ordem mundial a partir da restauração da paz; ele incluiu, sobretudo, um programa inteiro de modernização industrial e de capacitação do Brasil, com ajuda americana, de molde a realmente impulsionar o grande deslanche do país à condição de potência regional (num esquema não muito diferente da aliança não escrita defendida por Rio Branco, e mais enfaticamente por Nabuco, no começo do século). O Brasil teria sido um país muito diferente do que foi o caso, e certamente melhor, se Oswaldo Aranha tivesse ascendido à presidência e imprimido um estilo de governança e de políticas econômicas bem mais abertas e propensas à integração na política e na economia mundiais.

8) EUGÊNIO GUDIN

gudin
Um personagem nascido no século 19, que quase atravessou todo o século 20, pregando sempre as mesmas ideias liberais em economia e de simples sensatez na gestão pública. Formado em engenharia, mas economista por gosto, Gudin foi um aderente da escola neoclássica, mas de fato um eclético, e o responsável pela institucionalização dos cursos de economia nas faculdades brasileiras de humanidades e de ciências sociais em 1944. No mesmo ano, e no seguinte, foi protagonista do mais importante debate jamais ocorrido na história intelectual do Brasil; este representou, na verdade, um anticlímax, no sentido em que sua importância tanto teórica quanto prática foi deixada de lado pelo “curso natural das coisas”, ou seja, pela continuidade, em nossa governança, das mesmas inclinações e tendências estatizantes e intervencionistas que caracterizam o universo conceitual das lideranças políticas e empresariais do país.
O debate ocorreu quando se discutia abandonar os mecanismos intervencionistas em vigor durante o período bélico para adotar novos instrumentos capazes de guiar a ação do Estado no apoio ao processo de industrialização (sinônimo de desenvolvimento na concepção da época). Gudin, que naturalmente defendia princípios liberais e mecanismos de mercado para guiar a ação do Estado no fomento desse processo, teve como contendor no debate o industrial e intelectual – professor na Escola Paulista de Sociologia e Política – Roberto Simonsen. Em 1930, fez traduzir e publicar pelo CIESP, o Centro da Indústria do Estado de São Paulo, que ele tinha criado em oposição à FIESP, o livro do economista romeno Mihail Manoilescu, Teoria do Intercâmbio Desigual e do Protecionismo, uma atualização “científica” das ideias de Friedrich List. Simonsen, obviamente, se bateu pelo planejamento estatal, pelo protecionismo tarifário e pelos subsídios oficiais à “indústria infante”, enfim, todo o contrário do que pensava e preconizava Gudin, que era pela adesão do Brasil aos princípios das vantagens comparativas, que recomendavam incrementar o esforço de modernização agrícola, melhorar a infraestrutura e o capital humano, e manter uma governança econômica em bases sólidas e fiscalmente equilibradas.
O resultado do debate foi mais uma vez paradoxal: Gudin saiu-se como o seu vencedor teórico, ao demonstrar a inconsistência lógica e a escassa solidez prática dos argumentos de Simonsen. Mas este foi, ao fim e ao cabo, o vencedor efetivo do debate, uma vez que, no decurso das décadas seguintes, todos os governos, apoiados pelos industriais e pelos empresários em geral, seguiram as recomendações dos estatizantes, dos nacionalistas primários, dos protecionistas declarados, que sempre foram legião em todas as esferas da administração pública e na vida civil do país. Mais uma vez, o derrotado foi o Brasil, único país no mundo a ter conhecido oito (OITO) moedas sucessivas no espaço de pouco mais de meio século: mil-réis, cruzeiro, cruzeiro novo, cruzado, cruzado novo, cruzeiro, cruzeiro real, real. Não é preciso referir-se aos números astronômicos dos nossos processos inflacionários para constatar os desastres criados pelos êmulos de Roberto Simonsen, que eliminaram na prática as receitas mais equilibradas e ponderadas do longevo Gudin. Ele continuou, até o final de sua vida secular, a preconizar as mesmas receitas, sempre para ser derrotado pela realidade.

9) ROBERTO CAMPOS

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O ex-seminarista que se fez diplomata às vésperas da Segunda Guerra, teve a chance de servir em Washington quando se realizou a célebre conferência de Bretton Woods, em 1944, na qual ele era um simples assessor, e não um delegado. O mesmo ocorreu na conferência de Havana, sobre comércio e emprego, em 1947-48, quando ele continuou a aperfeiçoar seu conhecimento prático de economia, ao mesmo tempo em que fazia um mestrado nessa área na George Washington University, quando defendeu uma tese sobre os ciclos econômicos, de tinturas tanto neoclássicas quanto precocemente keynesianas. Ele ainda era um partidário do Estado promotor do desenvolvimento econômico, quando exerceu o cargo de diretor no BNDE, nos anos 1950, quando colaborou na arrancada dos “cinquenta anos em cinco” do governo JK, que também elevou a inflação a patamares nunca antes vistos no Brasil, inclusive com a construção de Brasília (que foi feita sem orçamento, à margem do orçamento e contra o orçamento, à razão de 1,5% de déficit fiscal durante quatro anos).
Não surpreende, assim, que o Brasil fosse levado a uma situação de grave desequilíbrio orçamentário e de enormes problemas de balanço de pagamentos no início dos anos 1960, quando ele foi, durante três anos, embaixador em Washington. Ele se demitiu do posto, exasperado com a inépcia de Jango, três meses antes do golpe de 31 de março de 1964, cujos líderes o guindaram à função de ministro do planejamento, em dobradinha com o ministro da Fazenda Leopoldo Gouveia de Bulhões. Ambos, entre 1964 e 1967, conduziram o mais importante processo de reformas econômicas e administrativas jamais empreendido no Brasil, um conjunto ambicioso de mudanças constitucionais e de medidas infraconstitucionais que abriram o caminho para o mais vigoroso ciclo de crescimento de nossa história econômica.
Paradoxalmente, porém, os dois, ainda que liberais em espírito e em intenção, foram também os responsáveis pelo início da mais imponente escalada econômica estatal jamais vista nessa mesma história. Não só eles, pois que seus sucessores, em especial os acadêmicos Delfim Netto e Mário Henrique Simonsen, impulsionaram, com o apoio entusiasta dos militares reformistas, esse engrandecimento inédito do ogro estatal, elevando enormemente a carga fiscal – a pretexto de aumentar o investimento público –, criando dezenas de estatais em todos os setores considerados “estratégicos”, não apenas para a economia, mas também para a “segurança nacional”. De certa forma, o Brasil do regime militar conduziu uma espécie de “stalinismo para os ricos”, uma industrialização “num só país” que respeitava inteiramente o vezo nacionalista rústico dos militares e sua preferência pela mais acabada autarquia produtiva, essa introversão míope que tinha sido a marca dos regimes fascistas da Europa dos anos 1930 (por acaso, um período no qual muitos dos líderes da “revolução de 1964” estavam estudando nas academias militares e aprendendo rudimentos econômicos de “independência e de soberania nacional”).
Roberto Campos detectou desde muito cedo essa deriva do Estado reformista-modernizador dos militares para um “complexo industrial-militar” orientado mais pelos princípios da “segurança nacional” do que pelos saudáveis valores da economia de mercado; passou o resto de sua vida tentando reverter o intervencionismo exacerbado do regime militar e o nacionalismo tosco dos políticos da redemocratização. Sem sucesso, porém: como Raymond Aron, na França, que durante anos lutou contra os instintos socialistas da intelectualidade parisiense, Campos lutou contra a indigência mental de nossos políticos e a ignorância econômica da maior parte da intelligentsia nacional (que Millor Fernandes chamava de “burritsia” acadêmica). Como Aron, igualmente, só foi reconhecido como visionário ao final da vida, e ainda assim, nem um, nem outro, conseguiu recolocar os respectivos países no caminho das reformas liberais e pró-mercado. A despeito de ter acertado em praticamente 90% do que escreveu durante toda a sua vida, Campos foi ironicamente derrotado por uma de suas mais conhecidas ironias: “o Brasil é um país que não perde oportunidade de perder oportunidades”.

10) GUSTAVO FRANCO

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Um dos mais jovens expoentes da equipe que idealizou, montou e administrou o lançamento do Plano Real, o mais bem sucedido esforço de estabilização macroeconômica conhecido em nossa história econômica – hoje, infelizmente, ameaçado pela Grande Destruição lulopetista –, que exibe a distinção adicional de ter concebido o regime de transição da antiga e desvalorizada sétima moeda de nossa história monetária para o Real, mediante a indexação monetária via URV, cuja inspiração lhe tinha sido dada ao estudar a experiência alemã de saída da inflação, em 1923. Ele também foi o defensor de uma política de capitais e de câmbio bem mais livre do que o normalmente admitido tradicionalmente, não apenas nas faculdades de economia, mas sobretudo nos escalões governamentais, não obtendo inteiro sucesso nessa área, em razão, como sempre, dos azares da política.
A primeira versão do Plano Real previa um esforço de ajuste fiscal bem mais severo do que o efetivamente realizado, não implementado porque o presidente Itamar Franco queria uma “estabilização sem recessão”. Foi preciso, assim, manter os juros num patamar bem mais elevado do que o adequado, pois que a âncora fiscal, que deveria ter sido implantada, foi substituída por uma âncora cambial, que redundou, contra a vontade de muitos economistas, numa excessiva valorização do Real (daí os desequilíbrios de transações correntes acumulados na segunda metade dos anos 1990). O resultado foi a crise de 1998-99, ainda assim provocada por fatores externos: as crises asiáticas de 1997 e a moratória russa de agosto de 1998, que impactou diretamente o Brasil; a situação foi enfrentada mediante um programa de apoio financeiro das instituições de Bretton Woods e de países credores, com sucesso relativo até a década seguinte, quando a crise argentina, o apagão elétrico e as eleições de 2002 (e os efeitos econômicos do PT) agravaram o quadro de turbulências no Brasil.
Gustavo Franco, que tinha sido secretário de política econômica na gestão Itamar e depois diretor de assuntos internacionais do Banco Central, ao iniciar-se a gestão FHC, foi elevado à condição de presidente do BC em meio às turbulências financeiras da crise asiática; conduziu um meticuloso programa de ajustes cambiais que, teoricamente pelo menos, permitiriam ao Brasil compensar a valorização por etapas, para evitar uma grave crise e mais inflação. A pressão dos mercados, e do próprio jogo político, foi entretanto mais forte, e Gustavo se viu constrangido a sair do BC no auge da desvalorização cambial do início de 1999, e antes do estabelecimento dos regimes de metas de inflação e de flutuação cambial, finalmente adotados por Armínio Fraga, levado à presidência do BC pouco depois. Uma história completa desses episódios, do ponto de vista da política cambial, ainda está para ser escrita e o próprio Gustavo é um bom candidato para empreender a tarefa. Mas esse é apenas um detalhe num itinerário de reformas tentativas que Gustavo Franco tentou impulsionar e que aguardam ainda hoje para serem continuadas e completadas.
A importância de Gustavo Franco, como economista e intelectual, está em sua condição de debatedor, de publicista, ao defender em seus muitos artigos, entrevistas e palestras, e em diversos livros, o Plano Real como apenas o início de um processo de reformas e de mudanças estruturais no Estado e na economia do Brasil que o levariam da condição de adepto eterno de um keynesianismo de botequim e de um cepalianismo tosco ao status de “país normal”, ou seja, simplesmente aderente de regras claras, estáveis e transparentes de gestão econômica, como compete a qualquer país dotado de uma economia de mercado digna desse nome. Infelizmente, a gestão econômica companheira fez o Brasil retroceder pelo menos vinte anos economicamente, e muito mais ainda moralmente falando. Gustavo Franco também foi um derrotado, ainda que temporariamente, uma vez que as reformas que ele preconizava não foram, senão minimamente, implementadas nos anos seguintes, e muitas delas revertidas na gestão irresponsável dos lulopetistas. Seus escritos e declarações indicam o que está aberto nessa agenda de “work in progress” (na verdade, evoluindo para trás, atualmente).

OS “DERROTADOS” DO DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO: UM BALANÇO FRUSTRANTE

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Todas as personalidades brevemente referidas aqui foram, em primeiro lugar, pensadores, intelectuais com distintas formações acadêmicas – ou na vida prática, como Irineu Evangelista de Souza – e com diferentes situações sociais, de atuação no setor público e de responsabilidade nos governos aos quais serviram ou com os quais trabalharam – ou não, caso de Hipólito e Monteiro Lobato. Vários conceberam planos mais ou menos arrojados para o futuro do Brasil, alguns com projetos ambiciosos de mudanças estruturais, outros – como Gudin – com um cuidado mais prosaico com uma gestão simplesmente responsável da coisa pública. Todos eles preconizaram reformas corajosas para eliminar obstáculos e enfrentar os problemas e desafios que constatavam existir no itinerário do desenvolvimento brasileiro.
De certa forma, muitos deles foram visionários, mas sensatos, no sentido em que nenhum deles concebeu qualquer projeto utópico de reforma integral, revolucionária, da sociedade brasileira. Nenhum deles foi um “engenheiro social”, no sentido várias vezes criticado por um pensador liberal como Isaiah Berlin: todos eles preconizaram atuar nos quadros dos regimes constitucionais em vigor, respeitando as mais amplas liberdades – sobretudo a de empreender – e os princípios e valores dos regimes democráticos. Não por acaso, as propostas por eles formuladas se aproximavam do modelo constitucional e de governança de corte britânico, de amplo sucesso prático nos Estados Unidos e nos países que institucionalmente e culturalmente pertencem ao mesmo arco civilizatório.
Nenhum deles teve sucesso – no máximo parcial – nas reformas e nas medidas preconizadas para levar o Brasil a um patamar mais alto de desenvolvimento político, econômico e social, num processo de total respeito às regras elementares do jogo democrático, como diria Norberto Bobbio. Aliás, o jurista e filósofo italiano, a despeito de seu imenso sucesso intelectual e do prestigio cívico alcançado, foi outro derrotado em seu próprio país, por acaso caracterizado por uma governança quase tão corrupta quanto a brasileira.
Todos os brasileiros, se tivessem logrado sucesso na implementação das medidas propostas – se tivessem sido por acaso guindados a posições de mais alta responsabilidade governativa, o que ocorreu unicamente com José Bonifácio, mas ele rapidamente “podado” pelo seu soberano – teriam provavelmente mudado o Brasil de uma forma mais profunda, mais intensa, e mais positiva do que efetivamente ocorreu nos dois séculos que levam de Hipólito José da Costa a Gustavo Franco. Este último continua um batalhador incansável pelas reformas necessárias, e o único “sobrevivente” (com perdão pela palavra) nesta nossa seleção: a ele cabe manter a tocha das reformas, em primeiro lugar como publicista, eventualmente, e novamente, como reformador.
No momento em que o Brasil enfrenta a mais grave crise de sua história – certamente na esfera econômica, mas também, e sobretudo, no plano moral – é útil refletir sobre todas essas oportunidades perdidas, sobre a ação, em grande medida frustrada, de todos esses “derrotados” na prática. Do meu ponto de vista, eles são vitoriosos morais, gigantes intelectuais da modernização e do progresso brasileiro, que, por um conjunto variado de circunstâncias, não puderam conduzir suas propostas a bom termo, ou que não tiveram a oportunidade, em virtude de um ambiente particularmente negativo para os reformistas de qualquer quilate, de vê-las implementadas pelos tomadores de decisões de cada momento. A “agenda conjunta” de reformas modernizadoras – e corretoras de nossos grandes defeitos sociais –, que todos eles preconizavam, permanece inconclusa: na verdade, ela só existe no papel, num exercício como este de levantamento das nossas lacunas e omissões, uma vez que não pudemos contar, ainda, com estadistas que as implementassem verdadeiramente, com base num consenso necessário e no respeito das liberdades democráticas.
A pergunta final é inevitável: quando vamos contar com personalidades que se apoiem nas propostas desses gigantes intelectuais para arregaçar as mangas e “civilizar o Brasil”, na linguagem dos próceres da independência? Não sabemos ainda. Mas seria útil retomar cada uma das propostas desses pioneiros, para ver o que ainda falta fazer no Brasil. Mãos à obra, pesquisadores e ativistas: a agenda já existe. Cabe agora debater os meios de implementá-la, para passarmos da condição de “derrotados” à de vencedores.
Que tal começar pelo levantamento do que falta fazer?