segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

As simplificações de Umberto Eco - JOSÉ NIVALDO CORDEIRO



7 de outubro de 2001

A Folha de São Paulo de hoje (07/10) traz um ensaio do escritor italiano Umberto Eco. É um texto sofisticado e muito bem escrito e tem o grande mérito de não cair na esparrela marxista de tentar ver os acontecimentos históricos e os fatos do 11 de setembro sob o ângulo da luta de classes. Ele afirma: "Passemos agora ao confronto de civilizações, por que é essa a questão". Um intelectual aparentemente honesto, embora seu texto seja portador do mesmo veneno que outros escritores menos talentosos e menos cultivados destilaram igualmente: o relativismo cultural e moral.
Não é fácil fazer a exegese de um texto tão bem feito, tendo que explicitar o que há de errado com a sua forma engajada de fazer a defesa dos atacantes do Ocidente. É o que eu vou tentar fazer aqui.
Eco toma como mote e ponto de partida do seu ensaio a fala de Berlusconi, que afirmou a superioridade da cultura ocidental e cristã em relação à dos muçulmanos agressores e, como um intelectual engajado, compara-o a Bin Laden, "que talvez seja mais rico que o nosso primeiro-ministro". É claro que Eco vê na riqueza individual uma espécie de defeito congênito. Por isso que ele se preocupa "com os jovens porque a cabeça dos velhos não se muda mais". Implicitamente, é preciso torná-los semelhante aos Ecos espalhados pelos mundo.
Aqui, com mais elegância e arte, ele bate na mesma tecla em que bateram todos os ícones esquerdistas mundiais: que Bin Laden é rico, é reacionários e que, portanto, é equivalente aos seus iguais do Ocidente. Lá, como cá, tem seus fundamentalistas radicais. O que está errado com essa analogia? O fato de esconder que o Ocidente há muito renunciou à guerra de conquista, à evangelização dos povos não cristãos, que prega o ecumenismo e o Papa, possivelmente o maior símbolo da cristandade perante o mundo não cristão, tem pedido perdão e desculpas pelo passado de "erros" dos cristãos. Eco está errado também por não se lembrar que os muçulmanos simplesmente consideram um profanação que algum infiel pise no solo sagrado da Arábia Saudita, que não reconhecem o direito à existência dos diferentes, que o seu objetivo é construir um Estado teocrático mundial baseado no Corão, enquadrando todas as populações do planeta no obscurantismo em que estão mergulhados.
Dito de outra forma: o Ocidente cristão é tolerante com os diferentes, aceita-os, cultiva-os, recebe-os de braços abertos na sua terra, generosamente tenta lhe passar os seus conhecimentos e pratica a ajuda humanitária, indo as vezes à guerra contra cristãos que não respeitam esses valores, como no caso da Iugoslávia, defendendo os muçulmanos vítimas de genocídio. Alguns indivíduos ocidentais, movidos pela mais generosa das misericórdias, vão àqueles rincões distantes de populações muçulmanas para ajudar e acabam freqüentemente sendo mal tratados e até mortos pela ousadia de ir lá. Então não é possível comparar ambas as atitudes, que são diametralmente opostas. O Ocidente está no século XXI, os muçulmanos pararam no século VII.
Quando Eco afirma que "As guerras de religiões que ensangüentaram o mundo por séculos nasceram de adesões passionais a contraposições simplistas, como nós e os outros, bons e maus, negros e brancos" esqueceu-se de dizer que esse é um capítulo superado no Ocidente, mas é a alma viva do Islã, que se alimenta do ódio ao Ocidente, da mítica idade do ouro que teria havida no passado em que a fé islâmica dominava o mundo, na certeza escatológica de que o domínio político do mundo e a imposição, a ferro e fogo, dos preceitos do Islã, será a instalação do paraíso na terra. E não passa de mera figura de retórica tentar justificar as ações dos radicais islâmicos com os fatos históricos do passado, é a relativização da gravidade dos fatos e a ocultação da sua hedionda imoralidade. De uma vez por todas é preciso ter em conta que não é possível desfocá-los (os fatos históricos) do seu tempo e muito menos transportá-los para o momento atual. Do ponto de vista histórico, os fatos são o que são e não faz sentido enquadrá-los em um tribunal de inquisição. Nisso o Papa está redondamente errado. Não haveria do que pedir desculpas. Todos os agentes históricos possivelmente culpados estão mortos.
De forma correta Eco afirma que "A verdadeira lição que se deve tirar da antropologia cultural é que, para dizer que uma cultura é superior a outra, é preciso fixar parâmetros. Uma coisa é dizer o que é uma cultura, outra é dizer com base, em que parâmetros a julgamos". Só que a sua argumentação parte para campos passíveis de equalizar o Ocidente com o mundo muçulmano, fugindo dos pontos realmente fundamentais, que tornam o Ocidente positivamente superior. Ora, ir buscar na história os grandes feitos científicos e filosóficos do árabes de nada serve para explicar o atual atraso científico, filosófico e tecnológico dos mesmos. É um argumento mal intencionado, mentiroso. E aqui não se trata de discutir questões teológicas relativamente às questões ditas sagradas, mas como essas questões influem sobre o indivíduo, sua liberdade, sua criatividade, sua afirmação diante do mundo. "Os parâmetros de julgamento são outra coisa, depende de nossas raízes, de nossas preferências, de nossos hábitos, de nossas paixões, de um sistema de valores nosso". Exato. Então porque Humberto Eco não tocou na questão feminina, no sistema de Justiça, nas liberdades individuais, na separação entre o poder político e o poder religioso, no princípio da sacralidade da vida individual e dos limites em que o Estado deve atuar, respeitando a privacidade do cidadão? É isso o que verdadeiramente separa hoje ambas as culturas e o que torna o Ocidente muito superior ao mundo Islâmico e nisso qualquer pessoa sensata tem que concordar com Berlusconi. Se uma corrente migratória, por hipótese, se estabelecesse de um país europeu para o Oriente Médio nem seria recebida e mesmo nem seria estabelecida: os indivíduos seriam mortos em pouco tempo. O que dizer de uma Europa e uma América que não apenas recebem os muçulmanos, mas respeitam exaltadamente as diferenças e aceitam o cultivo de suas tradições, mesmo sabendo que eles consideram o mundo judaico-cristão o Grande Satã?
Eco usa de expediente retóricos insidiosos para relativizar e igualar ambos os pólos, especialmente quando afirma: "Bin Laden e Saddam Hussein são inimigos ferozes da civilização, tivemos senhores que se chamavam Hitler ou Stálin". Ora, esses dois últimos são a degeneração do Ocidente, a sua própria negação, enquanto os dois primeiros apenas são a encarnação na forma de poder político do que pensam as massas islâmicas. É inaceitável colocar Hitler e Stálin como exemplos do ser ocidental. Eles são o seu oposto.
"É muita confusão sob o céu", afirma Eco, pois "parece que a defesa dos valores do Ocidente se tornou uma bandeira da direita, enquanto a esquerda é, como sempre, simpatizante islâmica". Eis o ponto. A direita e as pessoas sensatas imediatamente perceberam a gravidade e a grandiosidade histórica dos acontecidos do 11 de setembro. Os esquerdistas continuaram a bater na mesma tecla, a de que o inimigo da civilização e deles próprios são as forças da ordem. Preocupados em tomar o poder político de assalto e enraivecidos por Bush ter vencido o seu candidato, perderam otiming e a capacidade analítica. Eco percebe isso e tenta chamar os seus companheiros ideológicos para a razão. Os esquerdistas não se aperceberam que as querelas políticas paroquiais perderam relevo diante de uma ameaça real à nossa forma de ser. Não falo aqui apenas da ameaça física daqueles infelizes que casualmente estavam onde fizeram cair os aviões e onde poderão estar quando explodir o próximo artefato de morte. Falo da perda, ainda que temporária, das liberdades civis, falo do alargamento das distâncias, falo do muro invisívelque foi instantaneamente construído entre nós e os outros e também entre nós mesmos.
"A defesa dos valores da ciência, do desenvolvimento tecnológico e da cultura ocidental moderna em geral foi sempre uma característica das alas laicas e progressistas" (ele quer dizer esquerdistas). "Contrário foi sempre o pensamento reacionário (no sentido mais nobre do termo – pelo menos começando com a negação da Revolução Francesa – que se opôs à ideologia laica do progresso afirmado que se deveria voltar aos valores da Tradição". Isso é uma inverdade. Ora, Eco deveria dizer que sem a Tradição os valores superiores do Ocidente jamais teriam germinado e a sociedade aberta que construímos não existiria. Sem cristianismo não haveria capitalismo, e sem este não existiriam as liberdades individuais e a exaltação do indivíduo que conseguimos, a duras penas, construir. A liberdade consiste precisamente nisso, na liberdade individual, diante do Estado, da Igreja e de qualquer poder que se opõe à afirmação individual. Eco esqueceu de dizer também que os intelectuais de esquerda perderam o bonde em 11 de setembro porque continuaram a ver fantasmas em lugar de fatos, a falar mal do capitalismo e da globalização, quando na verdade deveriam enxergar que o perigo estava chegando no lombo dos camelos.
O autor finaliza o texto com uma inversão total do que escreveu. O tempo todo ele mostra como os engajados quebraram a cara e perderam o timing. No final, todavia, afirma: "Os mais sérios pensadores da Tradição... sempre se voltaram, mais do que para ritos e mitos dos povos primitivos ou para a lição budista, para o próprio islã, como fonte ainda atual de espiritualidade alternativa. Sempre estiveram ali a nos lembrar que não somos superiores, mas, sim, diminuídos pela ideologia do progresso, e que devemos ir procurar a verdade entre os místicos sufis ou entre os devixes dançantes". Ora, a Tradição consiste precisamente na defesa da Tradição, contra as concorrentes alternativas. Quem tem cultivado o exótico são precisamente os esquerdistas, que fizeram de elementos religiosos estranhos e exóticos instrumentos de propaganda para destruir a moral vigente e enfraquecer as forças da ordem. Essa afirmação é absolutamente falsa, como também é falsa a conclusão que ele tirou:
"Nesse sentido, na direita está se abrindo uma curiosa rachadura"
Deus meu, rachada e desorientada está a esquerda em todo o mundo. É patético ver, por exemplo, Tony Blair como mensageiro da guerra, sabendo que ele tem como eleitores precisamente as hordas esquerdistas do lema paz e amor e todos os simpatizantes orientalistas, que acreditam que as grandes verdades reveladas estão nas civilizações atrasadas. A rachadura é na esquerda, que poderá inclusive encolher formidavelmente, até porque os tempos não serão tolerantes nem com a dubiedade, nem com a tibieza e nem com a mentira. É o tempo de afirmação da Verdade indelével e ela toda está contida em nosso Livro.

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