domingo, 19 de janeiro de 2020

"A doença do erro", por J.R. Guzzo



Resultado de imagem para J. R. GUZZO"


Circula por aí a suposição de que a pedofilia é uma doença, não um crime e, portanto, não deveria ser punida pelo Código Penal. Não se pode chamar a isso de “ideia”, porque não é a imagem de algo aceitável no mundo da razão. Também não chega a ser uma teoria, porque não leva a nada que possa ser demonstrado por fatos. No fundo, talvez não seja nem mesmo uma suposição, e sim um simples desejo – o desejo dos pedófilos de poderem praticar abuso sexual contra crianças sem precisarem mais se preocupar com a possibilidade de serem incomodados, caso pegos, por um processo criminal. 
Os incentivadores dessa conversa não admitem, é claro, que haja qualquer ligação entre a “descriminalização” da pedofilia e os interesses de impunidade dos pedófilos. Seria, como dizem, uma espécie de avanço social – assim como a bruxaria, o adultério e a homossexualidade não são mais crimes, o mesmo deveria acontecer com a atividade sexual entre adultos e menores de idade.
É curioso. Os que consideram que a pedofilia é uma doença são os mesmos que não admitiam que os homossexuais fossem tratados como pessoas doentes. Está certo: não são mesmo, e nunca foram. A ligação física entre adultos do mesmo sexo, desde que consensual, não prejudica o direito de ninguém, e por isso mesmo é perfeitamente legal. Mas na pedofilia não há consenso nenhum, mesmo que seja praticada sem violência, porque uma criança simplesmente não tem condições mentais de consentir com as pressões que recebe de um adulto. A homossexualidade, obviamente, não é uma doença. Mas a pedofilia também não é. Não existe a mais remota base científica para se pensar nisso a sério; um pedófilo não é louco, nem uma vítima de disfunções mentais. É apenas um indivíduo que quer abusar de crianças.
A doença, aí, é outra. É o que se chama de erro: o resultado da nossa incapacidade de lidar com um problema de forma racional. Há um número cada vez maior de denúncias de pedofilia – na internet, nas escolas, das redes de prostituição, na Igreja Católica? Sim. Alguém tem alguma ideia coerente para acabar com isso? Não. A solução, então, é decidir que os pedófilos são vítimas de transtornos mentais; não sabem o que estão fazendo e, como os loucos de hospício, não podem ser responsabilizados por seus atos. Fica eliminado, a partir daí, o problema todo – acaba-se com o crime dizendo que o crime não é mais crime. Se tudo se resumisse à pedofilia, o tamanho do erro seria limitado. Mas o que se tem hoje é um impulso crescente para abolir a realidade a cada vez que os governos e as sociedades topam com questões que não têm competência, talento ou coragem para resolver. Aí se refugiam, ao mesmo tempo, por trás de ordens para permitir ou proibir.
As drogas são um exemplo clássico. Os que mandam, influem e pensam não têm mais disposição, nem ideias, para combater o mal que elas causam. A saída que encontraram é dizer que as drogas não fazem realmente mal, e seu comércio deve ser “descriminalizado”. Ao mesmo tempo, não sabem dar solução à homofobia. A saída, aí, é fazer o contrário: “criminalizar” a homofobia e declarar que cumpriram o seu dever. A Europa sofre com a imigração ilegal; que se abram as fronteiras, então, para ficar tudo legal.
Os imigrantes muçulmanos cometem crimes; a solução é proibir a imprensa de noticiá-los para não agravar “tensões raciais”, como se faz na Alemanha. É preciso entender que eles não queiram obedecer às leis com as quais não concordam – seus costumes têm de ser respeitados, em nome do “multiculturalismo”. E por aí se vai. O “pensamento progressista”, hoje, está se reduzindo a isso.

"Elogio a um reacionário", por Mario Vargas Llosa



Às vezes, Roger Scruton defendia

o indefensável, mas sem traços de 

insinceridade ou arrogância




Sir Roger Scruton, que acaba de morrer liquidado por um câncer que enfrentou com firmeza, nasceu em 1944 e se tornou um conservador, segundo confessou, durante os distúrbios de rua de maio de 1968 em Paris, quando viu garotões ricos – grandes protagonistas daquela caricatura de revolução – apedrejando policiais, erguendo barricadas na região do Quartier Latin e proclamando aos quatro ventos: “Queremos o impossível!”
Foi uma das pessoas mais cultas que conheci. Podia falar de música, literatura, arqueologia, vinho, filosofia, Grécia, Roma, Bíblia e mil assuntos mais como um especialista, embora não fosse especialista em nada, pois, na verdade, era um humanista no estilo clássico que defendia em panfletos – deliciosos de se ler – um mundo absolutamente irreal que provavelmente nunca existiu, salvo em sua imaginação e nos ensaios de alguns poucos sonhadores como ele.
“Você não percebe que essa Inglaterra que defende com tanto talento não existiu nunca, a não ser em sua fantasia?”, disse a ele uma vez. “Que os donos de castelos e cavalos puro-sangue hoje são uns novos milionários e semianalfabetos que só falam de uísque e negócios? Que a caça à raposa, que você promove com ardor épico, está morta e enterrada?”
Ele não me levava a sério e a seus olhos eu parecia um subdesenvolvido, mas me ouvia com resignação. E dissimulava sua impaciência, porque era um homem muito bem educado, sobretudo quando diante dele eu me atrevia a defender as políticas da senhora Thatcher, das quais discordava por lhe parecerem progressistas demais.
Era odiado universalmente pelos intelectuais de sua geração, o que não deixava de engrandecê-lo, pois, apesar de ser um dinamitador cultural que acertava sempre no alvo, não necessitava da adulação burguesa. Com sua juba ruiva, que o tempo foi embranquecendo, e seu modo de vestir descuidadamente aristocrático, estava sempre lendo e escrevendo sobre temas da atualidade. Entre um livro e outro, achava tempo para montar cavalos altivos e matar algumas raposas.

Roger Scruton
O filósofo e escritor britânico 
Roger Scruton 
Foto: Rex Features/Associated Press
Não tinha paciência para escrever aqueles tratados profundos que levam anos, como seu distante mestre Edmund Burke, grande fustigador da Revolução Francesa, porque vivia e atuava no presente: isso era o que o apaixonava. Sobre as ocorrências cotidianas, opinava sem dar trégua, com imensa sabedoria, e fazia citações prodigiosas e argumentos com frequência tão reacionários que aterrorizavam os poucos conservadores que ainda existem (até mesmo na Inglaterra). Recebeu o título de “sir” da coroa britânica em 2016, o que sem dúvida o envaideceu.
Fui assinante da revista que ele dirigia, The Salisbury Review, durante alguns meses, até parar ao descobrir que só lia os editoriais, sempre esplêndidos, ainda que totalmente incompatíveis com a realidade política e social de nossos dias e, provavelmente, com a de sempre. 
Ninguém como Roger Scruton para ilustrar aquela grande distância que, segundo Frederick von Hayek, separa um liberal de um conservador. Mas ele era de uma decência básica, uma indignação perfeitamente justificada contra as grandes imposturas patenteadas pela esquerda demagógica de nosso tempo, uma inteligência que esmiuçava com acidez os modismos ideológicos e a estupidez política. E era, nesse sentido, um intelectual imprescindível, principalmente tendo-se em conta que ninguém ocupará seu lugar.
Não era contra o progresso, absolutamente, com a condição de que não se considerasse progresso o que propunham os marxistas ou o que nós, os liberais, defendemos. Mas ninguém explicou melhor que ele, por exemplo, a importância das óperas, mesmo as mais complexas – digamos as de um Wagner –, ou das obras-primas literárias, ou dos grandes sistemas filosóficos, para se entender o presente, atuar de maneira responsável e dar um sentido à vida. 
E certamente nenhum jornalista encontrou maneira mais sutil e pertinente de extrair lições morais e políticas de longo alcance analisando um fato cotidiano, nem de defender a cultura como guia, neste mundo desordenado em que vivemos, para entendê-lo e nos orientarmos nele. 
A Inglaterra que ele defendia era um mundo de formas e princípios imutáveis, para o qual a religião e as leis haviam trazido um progresso que não eliminava as classes, nem as igualava, mas assegurava a todas elas justiça e ordem. Uma sociedade na qual o privilégio implicava uma obrigação moral de servir à comunidade e na qual a cultura – as artes, os livros, as ideias, os rituais, as ações militares – eram o espelho da vida, o único trajeto que justificava a ascensão social.
Esse mundo jamais existiu, salvo na fantasia de Scruton. Seu modelo de político foi Enoch Powell, um conservador que sabia os clássicos de cor, mas, aterrorizado com o que acreditava ser uma invasão das ilhas britânicas por terceiro-mundistas, profetizou um banho de sangue se a Grã-Bretanha não pusesse um drástico fim à imigração. Nunca percebeu que, por trás dos elegantes discursos de Powell, bufava o racismo. E que todas as reformas que Thatcher levava a cabo, com enorme coragem, visavam a tornar acessível a todos a verdadeira liberdade.
Era muito difícil não sentir uma enorme simpatia por ele, ainda que, como era meu caso, discordando do essencial de suas ideias conservadoras. Porque havia em seus posicionamentos uma honestidade teimosa, algo muito diferente do comportamento dos políticos da atualidade, que só defendem aquilo em que acreditam por mera conveniência e oportunismo, e universalizaram essa horrenda linguagem política contemporânea, feita de clichês e estereótipos, na qual palavras vazias substituíram ideias e valem para tudo e todos, de modo a justificar os apetites, os grandes e pequenos pecados de funcionários, dirigentes e ditadores de regras. 
Ninguém pode duvidar de que Roger Scruton usasse a linguagem de outro modo, para dizer o que verdadeiramente pensava, ainda que fosse algo insólito ou irreverente, a começar por seus adversários. O vocabulário político de nosso tempo está cheio de lugares-comuns e talvez esse abismo, que percebemos entre o que dizem os discursos dos profissionais da política e a realidade da vida política, seja tão grande que a confusão tomou conta do mundo, tanto nos países desenvolvidos como nos em desenvolvimento.
Em quem acreditar, se o que ouvimos por toda parte são geralmente mentiras, obviedades ou flagrantes disparates nos quais não crê nem mesmo quem está falando? Neste mundo degradado pela falsidade e pela burrice, Scruton era um contraste formidável. Às vezes, defendia o indefensável, mas sem traços de insinceridade ou arrogância – apenas convicções graníticas e uma elegância risonha na maneira de falar. É nesse sentido que vamos sentir sua falta. A partida de Scruton deixa em volta de nós um pavoroso vazio. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

* É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA