sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Augusto Nunes devolve Celso de Mello a sua condição de reles mortal: “Pavão de Tatuí”


Próximo de finalmente dar adeus a sua condição de ministro do Supremo Tribunal Federal, vez que será obrigado a aposentar-se compulsoriamente no dia 1º de novembro de 2020, quando completa 75 anos de idade, o decano Celso de Mello resolveu no “canto do cisne” confrontar o povo brasileiro e o próprio poder executivo, atribuindo ao presidente da República, legitimamente eleito por mais de 57 milhões de votos, a condição de quem “não está à altura do altíssimo cargo que exerce (...)”.
Na verdade o ministro, desde que chegou ao STF, guindado ao cargo pelo ex-presidente José Sarney, age de acordo com as suas conveniências.
Seu ex-chefe e “padrinho” de sua indicação para o STF, o jurista Saulo Ramos, já falecido, ainda em vida revelou em um livro a verdadeira face daquele que um dia considerou seu pupilo: “um juiz de merda”.
E nesta quinta-feira (27), em um texto primoroso e sarcástico, o inigualável Augusto Nunes colocou o decano em seu devido lugar:
“O doutor Celso de Mello não se considera gente como a gente. Primeiro, porque não é apenas um ministro do Supremo Tribunal Federal. É O DECANO, título conferido ao mais antigo integrante do time da toga. Soa bem. Sobretudo, rima com o subdialeto falado por Celso de Mello: juridiquês castiço. Trata-se de um filhote disforme do português que torna majestoso o mais mambembe botequim.
Em homenagem aos viventes comuns, o decano às vezes solta um “Supremo Tribunal Federal”. Em momentos especialmente generosos, até se permite um "STF". Mas o que Celso de Mello saboreia com prazer afrodisíaco são três expressões sinônimas: 'Pretório Excelso', 'Colenda Corte' e 'Egrégio Tribunal'. Pretório era a denominação de um tipo de fortificação romana. Excelso quer dizer 'sublime'. 'Colendo' significa 'respeitável, venerando'. E egrégio quer dizer 'insigne, nobre, eminente'.
Aliás, o afetivo 'eminente' precede os nomes dos colegas de STF ou juristas que menciona em seus votos de dimensões sempre amazônicas. Uma sumidade dessas não poderia deixar de emitir seu parecer no assombroso besteirol gerado pelo vídeo que Jair Bolsonaro soltou num grupo de WhatsApp.
A conclamação para o ato contra o STF e o Congresso, decidiu nosso Rui Barbosa em compota, 'revela a face sombria de um presidente (...) que demonstra uma visão indigna de quem não está à altura do cargo que exerce e cujo ato de inequívoca hostilidade aos demais Poderes da República traduz gesto de ominoso despreço e de inaceitável degradação do princípio democrático'.
No fim do ano, a aposentadoria compulsória devolverá Celso de Mello à cidade paulista onde nasceu. Mas não precisa dizer mais nada para justificar o cognome que conquistou com palavrórios desse calibre: cem anos depois do Águia de Haia, o Brasil tem de conformar-se com o Pavão de Tatuí."
Que ele sobreviva na condição de reles mortal.
Fonte: R7

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Guzzo: "Cada vez menos gente presta atenção na opinião do papa".

Guzzo: "Cada vez menos gente presta atenção na opinião do papa".

Benção de Francisco a Lula não vai servir para absolver o ex-presidente da sua situação de ladrão, estabelecida pela Justiça brasileira. J. R. Guzzo:


Houve um tempo em que o papa era infalível. Não se tratava de um “modo de dizer” ou de uma crença opcional – era doutrina católica, ou dogma, e se você não acreditasse nisso, estava sujeito a cometer pecado mortal e, se morresse de repente sem ter tido tempo de se confessar, poderia ir direto para o inferno.

Era, pelo menos, o que diziam os padres. Hoje em dia, nem a Igreja exige que os fiéis acreditem nisso.

Mais: o próprio papa é o primeiro a concordar que o mundo mudou. A “infalibilidade do papa” em questões religiosas deve ser vista, hoje, como um indicador, e não como uma verdade acima de discussão.

benção do papa Francisco a Lula, assim, não vai servir para absolver o ex-presidente da sua situação de ladrão, estabelecida pela Justiça brasileira – condenado em dois processos seguidos, e no primeiro deles em três instâncias, por corrução e por lavagem de dinheiro.

Nada consta

Ninguém, nem o papa nem Lula, estava querendo uma absolvição de verdade; queriam apenas uma espécie de “nada consta” perante a opinião pública.

O problema é que cada vez menos gente presta atenção na opinião do papa – até porque há cada vez menos católicos e grande parte dos que permanecem fiéis criaram o hábito de pensar com a própria cabeça.

É assim pelo mundo afora. É assim no Brasil também.

Vargas Llosa: "Retorno a Berlim".

Vargas Llosa: "Retorno a Berlim".

Há 28 anos a cidade ainda estava em ruínas, especialmente no Leste, e agora cresce e se reconstrói de maneira frenética. É um formidável centro de cultura, paraíso da música, dos museus e do teatro. Artigo do escritor Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura, publicado por El País:


Para o poeta José Emilio Pacheco, o olfato dizia se os livros eram bons ou ruins. Estive em uma livraria nos Estados Unidos com ele; cheirava as estantes e o nariz ordenava o que devia comprar ou rejeitar. Comigo acontece com as cidades o que a ele acontecia com os livros; basta chegar a um aeroporto ou a uma estação e imediatamente sei se a cidade me aceita ou me resiste. Em relação a Berlim, soube instantaneamente que poderia viver lá a vida toda e que também meu esqueleto descansaria feliz em terra berlinense. Estive lá durante todo o ano de 1992 e agora voltei apenas por três dias, também ao Wissenschaftskolleg, para ouvir um novo fellow, meu amigo Efraín Kristal, que escreverá um livro sobre Borges. Ele nos explica com luxo de detalhes o que já fez e, sem dúvida, será um ensaio cheio de revelações e surpresas.

Embora os 28 anos tenham mudado o aspecto da cidade –então ainda estava em ruínas, especialmente no Leste, e agora cresce e se reconstrói de maneira frenética–, continua sendo o paraíso da música, dos museus e do teatro: um formidável centro de cultura. Quase três décadas atrás, passear por Unter den Linden em direção à Ilha dos Museus era andar entre ruínas; agora reapareceram os palácios e as óperas, e mansões suntuosas e às vezes feias, como a Embaixada da Rússia, que ocupa um imenso quarteirão inteiro. Então, o arquiteto italiano Renzo Piano tinha inventado a ressurreição da Potsdamer Platz; lembro-me de que trouxe mergulhadores russos, que trabalhavam submersos na água e voltavam à Rússia de avião para passar os fins de semana com as famílias. Agora a Potsdamer Platz brilha na noite com seus belos e gigantescos edifícios iluminados, um dos quais é o famoso Museu do Cinema e outro é o Teatro Marlene Dietrich, a quem os berlinenses perdoaram, pelo visto, que durante a guerra tenha cantado para os soldados norte-americanos...

Não sei se existem muitos centros no mundo como o Wissenschaftskolleg, mas, de qualquer forma, deveriam abundar. É um centro público que convida todos os anos entre trinta e quarenta pesquisadores de diferentes países e disciplinas, durante um semestre ou um ano, para concluírem uma investigação ou um livro. A única obrigação que têm é fazer uma exposição para os outros bolsistas sobre o que pensam fazer e depois almoçar duas ou três vezes por semana com os outros pesquisadores. No ano que passei lá, o personagem mais misterioso era um romeno; havia sido professor universitário nos tempos de Ceaucescu. Deu um curso marxista contra a religião, mas, como nos explicou, secretamente se converteu ao que depreciava em suas aulas e agora era especialista em anjos, ou seja, angeólogo. Ele nos fez uma exposição notável sobre a miríade de anjos –e todas as suas variantes e números– que povoam o paraíso. O que nunca pudemos saber é se ele realmente acreditava no que contava. Vinte e oito anos depois, me dizem que ninguém ainda conseguiu descobrir; isso sim, o romeno em questão foi desde então nada menos que ministro das Relações Exteriores de seu país. Está muito claro que, acredite neles ou não, os anjos agradecidos acreditam nele.

Outro fellow, com o qual me encontrava todas as manhãs na academia, não era menos extraordinário. Tinha sido aceito em Oxford, onde esperava se dedicar ao Egito. Mas o arabista que era seu professor o convenceu a se dedicar ao Sudão, um país do qual a universidade acabara de adquirir documentos muito antigos. Assim o fez. E se tornou, a julgar pela bela exposição que nos deu, um extraordinário especialista naquele país. Conhecia sua história, sua geografia, as variantes de sua língua. Mas nunca havia pisado no país fundamentalista ao qual tinha dedicado a vida, nem o pisaria, pois era judeu e, ainda por cima, israelense. Havia dedicado toda sua ciência e toda sua vida a um país em que jamais colocaria os pés. E não há dúvida de que o amava de todo o coração. Falava entusiasmado sobre os sudaneses que, disfarçados e tomando mil precauções, viajavam para se reunir às escondidas com ele na Europa.

Assim que entrei no Kolleg, descobri Eva, que nos dava aulas de alemão ao amanhecer. Pensei aterrorizado se iria me perguntar se ainda me lembrava de cor do poema de Goethe que, nos dias de euforia, costumava recitar aos gritos. Mas não o fez, felizmente. E também estava lá, como vindo do fundo dos séculos, aquele que dirigia a instituição quando estive nela: Wolf Lepenies. Passou muitos anos no Instituto de Altos Estudos de Princeton e agora voltou a Berlim como fellow da instituição que dirigiu durante vários anos com mão de mestre. Filósofo, ensaísta, poliglota, Lepenies nos deslumbrava toda vez que abria a boca e principalmente quando propunha algum brinde: fazia isso citando alguma ideia, verso ou frase que tivesse a ver com o assunto. Os anos não passaram por ele; continua sendo o mesmo de então, ao menos em simpatia e verbo. Ele me apresenta o romancista deste ano, o búlgaro Georgi Gospodinov, e a nova diretora do Kolleg, a historiadora Barbara Stollberg-Rilinger.

Uma coisa que me impressiona é que todos os fellows deste ano me parecem muito jovens; dizem-me que há, entre eles, vários músicos e um médico que dirige um grande hospital nos Estados Unidos. Lembro que entre nós havia um coreógrafo que ensinava exercícios de relaxamento à noite. A instituição distribuía ingressos para concertos, óperas e apresentações de teatro. Eu adorava principalmente os espetáculos montados em Berlim Oriental por jovens que armavam seus palcos entre as ruínas e que eram, em geral, imigrantes dos países do Leste. Sua presença era um indício da pujança e da versatilidade da vida cultural da velha capital alemã, que já então recuperava, no campo da cultura, sua condição de aberta ao mundo, de cidade multicultural e multilíngue.

Graças a Wolf Lepenies pude estudar e fichar muitos desenhos e gravuras de George Grosz, dispersos em museus e galerias de Berlim. Ainda devem estar, em alguma maleta esquecida, as muitas fichas daquele ensaio que nunca escrevi sobre o virulento desenhista e pintor que, acredito, encarnou melhor do que ninguém os anos conturbados de Weimar. Trabalhei muito nele e até fui visitar um de seus filhos nos Estados Unidos, um músico de jazz que me mostrou cartas e até um álbum de família de Grosz. De repente, nesta viagem, senti uma vontade irresistível de retomar aquele projeto, esquecido desde então. Pobre Grosz: salvou-se por milagre se ser morto pelos nazistas, enfurecidos com as ferozes caricaturas que fazia deles. Foram ao seu apartamento em Berlim e ele os recebeu amavelmente, fazendo-se passar pelo mordomo do pintor e aproveitando a confusão para fugir pela janela. Nos Estados Unidos, o terrível Grosz suavizou-se e perdeu o ódio e a fúria que o faziam pintar. Tornou-se bom e suas pinturas perderam a pugnacidade e a virulência de antanho. Voltou a Berlim somente em 1945. E, naquela noite, festejado pelos amigos, bebeu sem limites; quando voltou ao apartamento que lhe tinham emprestado, caiu na escada e o zelador o encontrou morto na manhã seguinte, no porão, por conta dos golpes que sofreu.

Grunewald, o bosque de Berlim onde fica o Wissenschaftskolleg, não mudou tanto quanto o resto da cidade. Lá estão os lagos, as árvores, agora nuas por causa do inverno, os bandos de melros que resistem ao frio e, é claro, os corredores que enfrentam os ventos atrozes e as geadas. Caminhei muitas vezes por esse bosque naquele ano e fui dando forma àquele enxame de fichas que me permitiram lembrar e descrever a campanha eleitoral que, durante três anos, me afastou da minha máquina de escrever e dos livros, minha verdadeira vocação. Voltei a ela e por isso sempre tive uma enorme gratidão por aquele ano berlinense. Esta rápida viagem, trinta anos depois, é um bom momento para lembrar isso.


Raiva do governo? Assim não dá para fazer oposição. - J. R. Guzzo

Raiva do governo? Assim não dá para fazer oposição.

A questão é tirar eleitores de Bolsonaro e trazê-los para o seu lado; ao invés disso, a oposição passa o tempo todo dizendo que esses eleitores são “fascistas”. Coluna de J. R. Guzzo, publicada pela Gazeta:


Uma das questões mais curiosas do chamado “quadro político” do Brasil de hoje é a existência de um dos governos mais intensamente odiados por seus adversários, que jamais pôs os pés em Brasília. É o diabo, porque esse governo não está aí pela força: foi eleito democraticamente, em eleições livres e limpas, por quase 58 milhões de cidadãos, a maioria absoluta do eleitorado que foi votar nas eleições presidenciais de 2018.

Fazer o que? Democracia tem mesmo esses problemas; você é obrigado a fazer eleições, e nas eleições o outro lado pode ganhar. Dá para odiar, é claro – mas, além de odiar, o que precisamente pode fazer de útil quem está contra o governo Jair Bolsonaro, seu ministério e seus generais? A resposta clássica é: fazer oposição consistente, de um lado, e apresentar um ou mais nomes realmente viáveis para ganhar as próximas eleições, de outro.

Do contrário, fica essa coisa para lá de esquisita que temos hoje: raiva sem limites do governo e, ao mesmo tempo, na vida real, céu de brigadeiro (ou mar de almirante) para esse governo ir tocando muitíssimo à vontade a sua vida.

Grita-se muito alto, assina-se muito “manifesto” de artista, a mídia vive praticamente em transe contra o que considera o pior governo que o Brasil já teve e as crises, cada vez mais fatais e cada vez mais curtas, não param nunca – só que não acontece nada.

A origem dessa anomalia está na falta, justamente, de uma oposição coerente e de alguma liderança que possa ser levada a sério dentro dela, como mencionado acima. Oposição é algo muito mais fácil de exibir em público do que praticar de verdade.

Para agir com eficácia, qualquer força de oposição tem de fazer nexo – e no Brasil de hoje isso não existe. É preciso ter um programa com propostas alternativas ao que o governo está fazendo; é preciso dizer o que está errado e o que você vai fazer, concretamente, para consertar isso. Você precisa ter condições, em suma, de prometer que fará o contrário do que está sendo feito. Ninguém na oposição clássica – PT e seus ajudantes, mais o que se chama de “esquerda” – está fazendo esse trabalho. Quanto à liderança, tudo que se tem é um grande zero.

É difícil. O que a oposição poderia propor de contrário ao que o governo está fazendo? Juros mais altos? Aumento nos índices de desemprego? Mais inflação? Mais mulheres no ministério? Retomada no número de homicídios, que caíram mais de 20% em um ano? Entregar o país de volta às empreiteiras de obras públicas?

No terreno dos nomes para liderar a oposição a coisa fica ainda mais opaca. Um nome desses, para ter força real, precisa em primeiro lugar mostrar que é um candidato com chance de ganhar de Bolsonaro na eleição de 2022. Onde está ele? Um outro problema sério para os adversários do governo em geral, e para a esquerda em particular, é a recusa de enfrentar Bolsonaro no seu campo e em seus termos. Querem ganhar do presidente, estranhamente, acusando-o de agir como os seus eleitores esperam que ele aja; não pode dar certo.

A questão é tirar eleitores de Bolsonaro e trazê-los para o seu lado; ao invés disso, a oposição passa o tempo todo dizendo que esses eleitores são “fascistas”. Fica complicado atrair apoio desse jeito. Situação ruim no governo? Está pior fora dele.


segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Liberalismo/liberalismos - CELSO LAFER

Liberalismo/liberalismos

O liberalismo está na origem do constitucionalismo, da divisão de Poderes, do Estado de Direito e da tutela dos direitos humanos. Daí a relevante permanência do seu legado. Artigo do professor Celso Lafer, publicado pelo Estadão:


São muitas as referências ao liberalismo na pauta do debate público. Poucas as considerações mais satisfatórias e abrangentes sobre seu alcance, como expôs com densidade José Guilherme Merquior em O Liberalismo - Antigo e Moderno (1991).

Na elucidação conceitual do liberalismo, a primeira observação é a de que não se circunscreve ao catecismo simplificador dos seus críticos, que nele identificam, na atual conjuntura, apenas a defesa do pensamento único da liberdade econômica dos mercados.

São muitos os idiomas do liberalismo e múltiplos e diversificados os temas dos seus patronos intelectuais. Entre eles, Immanuel Kant e Adam Smith, Alexander von Humboldt e Alexis de Tocqueville, Benjamin Constant e John Stuart Mill, Friedrich Hayek e Raymond Aron, Karl Popper e Isaiah Berlin.

Todos esses autores têm afinidades. Resultam de uma compartilhada preocupação com a defesa e a realização da liberdade. Partem de uma visão da sociedade concebida como plural, na qual o ser humano, com a sua dignidade própria, não se dissolve no todo.

Pressupõem que o mundo não é uma realidade determinista, mas um conjunto de probabilidades e possibilidades que estão ao alcance do criativo e inovador exercício das múltiplas dimensões da liberdade.

É esse terreno comum que permite inserir esses grandes nomes e suas reflexões no âmbito do liberalismo. Caracterizam-se, no entanto, por diferenças apreciáveis. É por isso que cabe falar em liberalismos, no plural, e pontuar que em contraste com a tradição socialista, na qual avulta a hegemonia de Karl Marx, o panteão do liberalismo, desde as suas origens e nos seus desdobramentos, é plural. Não é por acaso que a palavra liberal, como adjetivo, designa a postura de um espírito aberto e não dogmático.

A dimensão plural do liberalismo provém do fato de que a liberdade não é una, mas múltipla, e passa pela política, pela cultura, pelo social e pelo econômico.

Possui, não obstante suas diversas camadas de significado, uma força de atração motivadora, que Cecília Meirelles ilumina no Romanceiro da Inconfidência: “Liberdade – essa palavra/ que o sonho humano alimenta/ que não há ninguém que explique/ e ninguém que não entenda”.

Entende-se o valor da liberdade, que alimenta o sonho humano, quando ela é cerceada ou corre o risco de ser cerceada pelo arbítrio da coerção e da prepotência e pelas intolerâncias discriminatórias.

Foi numa época de avassaladora denegação da liberdade que Franklin D. Roosevelt, em 1941, enunciou a importância do alcance de quatro liberdades essenciais: da palavra e expressão, de crença, de viver sem o império da necessidade e de viver sem medo.

A manifestação de Roosevelt sobre as quatro liberdades foi uma das fontes inspiradoras da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que conferiu dimensão normativa à agenda internacional e consagrou múltiplas dimensões de liberdade: de ordem pessoal (artigos 3.º a 11); dos direitos do indivíduo no seu relacionamento com os grupos a que pertence e às coisas do mundo exterior (artigos 12 e 17); das faculdades espirituais, das liberdades públicas e dos direitos fundamentais (artigos 18 a 22); dos direitos econômicos, sociais e culturais (artigos 22 e 27).

Explicita assim tanto a liberdade como espaço próprio delimitador do grau de interferência na vida das pessoas quanto a de participação na vida pública, um dos componentes da democracia.

É a preocupação com as múltiplas dimensões de liberdade que faz com que os pensadores dos liberalismos tenham como um dos seus temas o papel das instituições que a preservam dos que a denegam política, econômica e culturalmente. Anoto, a propósito de liberdade econômica, que os mercados não operam no vazio; por isso o bom funcionamento da economia requer instituições, como aponta, entre outros, Douglass North.

O liberalismo está na origem do constitucionalismo, da divisão de Poderes, do Estado de Direito e da tutela dos direitos humanos. Daí a relevante permanência do seu legado.

Michael Walzer, que enfrentou as múltiplas dimensões da justiça elaborando seu grande livro sobre as distintas esferas da justiça, também deu estimulante contribuição à preservação institucional das liberdades, considerando o liberalismo como a arte da separação. Assim, a separação Igreja-Estado preserva a liberdade religiosa; a do público e privado preserva da interferência estatal a família e o indivíduo e também abre espaço para a liberdade econômica de empreender. A arte da separação enseja a liberdade acadêmica, do ensino e da pesquisa, que sustenta a autonomia universitária, assim como a da cultura e da criação artística. A arte da separação assegura o antidogmatismo que permite a procura da verdade sem o arbítrio da censura e da imposição de uma “verdade oficial”.

Em síntese, velar e combater pela arte institucional da separação, inerente aos idiomas dos liberalismos, é o que nos cabe fazer, com a preocupação do futuro, na atual conjuntura caracterizada por riscos, internos e externos, aos cerceamentos da liberdade.


Singularidades de um símio sem pelo: como evoluiu o homo sapiens.


Singularidades de um símio sem pelo: como evoluiu o homo sapiens.

Da monogamia à cor da pele e ao corpo sem pêlos: "Encontros imediatos com a humanidade" examina alguns dos processos evolutivos que conduziram às bizarras criaturas que nós somos. José Carlos Fernandes para o Observador:


A biologia humana e a história evolutiva do Homo sapiens têm servido para justificar programas nacionalistas, exploração colonial, invasões, genocídios ou, mais prosaicamente, quem na casa fica com o encargo de lavar a loiça e mudar as fraldas aos bebés. Porém, aquilo que é proclamado como “natural” em termos de sexualidade, estrutura familiar e hierarquias sociais e étnicas tem, habitualmente, pouco de “natural” e, muito menos, de inevitável (ver Sexo: Pecando contra a Natureza e contra Deus).

Este uso socio-político da biologia seria sempre de lamentar, mesmo que os seus fundamentos fossem cientificamente comprovados, mas acontece que a maior parte desta argumentação tem vindo a assentar em percepções flagrantemente erradas, em factos isolados e descontextualizados ou em meras especulações e fantasias, e no tremendo equívoco de ver o ser humano como se fosse apenas uma “máquina biológica” e não resultasse de uma complexa interacção entre biologia e cultura.

Mapa das “raças” europeias, elaborado em 1922 por Hans F.K. Günther, um defensor da eugenia.
O estudo da natureza humana defronta-se com vários obstáculos de monta: por um lado, o conhecimento sobre o passado evolutivo do homem tem uma forte componente de incerteza e especulação e estão constantemente a surgir novos elementos que põe em causa teorias que tinham aceitação genérica há 10 ou 20 anos – quanto às que vigoravam há um século e que serviram de base a muitas práticas racistas e eugénicas ou que fundamentaram a perpetuação de situações de desigualdade de género, estão desacreditadas (o que não impede que sejam perpetuadas por políticos e activistas de pendor reaccionário). Por outro, boa parte das experiências de biologia comportamental que podem ser conduzidas para apurar a estrutura e raízes do comportamento das outras espécies não podem, por imperativos éticos, ser aplicadas a seres humanos.


O que a paleoantropóloga Sang-Hee Lee, nascida na Coreia do Sul e que lecciona na Universidade da Califórnia, em Riverside, se propõe no livro Encontros imediatos com a humanidade: Uma nova visão sobre a evolução humana é recorrer às mais recentes descobertas no seu campo para oferecer explicações a algumas perguntas que emergem naturalmente quando nos damos conta das peculiaridades físicas e comportamentais que distinguem o Homo sapiens dos outros símios e dos mamíferos em geral. O livro foi publicado em língua inglesa em 2018, com o título Close encounters with humankind: A paleoanthropologist investigates our evolving species e contou com a colaboração na redacção de Shin-Young Yoon, editor de uma revista coreana de divulgação científica em que Lee colabora, e surge em Portugal pela mão da Vogais, com tradução de Tiago Marques (em Espanha recebeu o título, mais colorido, de No seas Neandertal!).

O livro compõe-se de 22 ensaios, breves e acessíveis a quem não possua qualquer conhecimento prévio de paleoantropologia, que tentam lançar luz sobre questões tão diversas como a localização do “berço” da humanidade ou a relação entre o Homo sapiens e o Homem de Neanderthal. No texto que se segue abordar-se-ão apenas alguns destes tópicos.

Apesar dos progressos realizados nas últimas décadas (incentivadas por disposições legislativas como a introdução de licenças de paternidade), os homens estão ainda longe de despender tanto tempo com as crias como as mulheres, mas mesmo os homens de antanho tinham muito mais responsabilidades no cuidado dos filhos do que os restantes símios ou que os restantes mamíferos – na maioria destes, o macho apenas contribui com o esperma e depois vai à sua vida.

Acontece que, por comparação com as crias dos restantes mamíferos, as crias humanas são todas “prematuras” – o seu cérebro enorme obriga a que sejam evacuadas do útero muito antes de estarem “acabadas” e prontas para enfrentar os desafios mais elementares do mundo exterior.

Mas há mais: como os Homo sapiens vivem em sociedades muito complexas, que envolvem elaboradas relações de cooperação e a execução de tarefas especializadas, são precisos muitos anos de treino para que as crias alcancem a autonomia – já era assim nas sociedades de caçadores-recolectores, mas a “adolescência” dos Homo sapiens foi prolongando-se com a marcha da civilização, o que faz com que, no mundo desenvolvido de hoje, a dependência dos pais possa só terminar após a conclusão do doutoramento, no início da quarta década de vida.

A “adolescência” dos Homo sapiens foi prolongando-se com a marcha da civilização, o que faz com que, no mundo desenvolvido de hoje, a dependência dos pais possa só terminar após a conclusão do doutoramento, no início da quarta década de vida.

Sendo estas crias tão indefesas e dependentes até tão tarde, teriam poucas possibilidades de sobreviver se fossem cuidadas apenas pela mãe, daí a necessidade de envolvimento do pai. Colocando a questão num ponto de vista “cínico”, o Homo sapiens macho é forçado a contribuir para a criação e educação das suas crias porque se ele empregasse a estratégia dos machos de outras espécies de mamíferos, as crias morreriam e os seus genes não seriam transmitidos. Mas aqui levanta-se um problema: como pode o macho ter a certeza de que aquelas crias são mesmo suas?

Em The Third chimpanzee: The evolution and future of the human animal (1992), Jared Diamond confronta o Homo sapiens com os seus primos em termos de estrutura social: os orangotangos adultos são solitários; os gibões adultos vivem como casais monogâmicos isolados; os gorilas vivem em haréns polígamos, formados cada um deles por várias fêmeas adultas e um macho dominante; os chimpanzés-comuns [Pan troglodytes] vivem em comunidades apreciavelmente promíscuas de fêmeas e machos; os chimpanzés-pigmeus [ou bonobos ou Pan paniscus] formam comunidades ainda mais promíscuas de ambos os sexos”. O Homo sapiens tem, pois, a particularidade, entre os mamíferos, de viver em grupo e ser monogâmico, combinação que só tem paralelo nas gaivotas e nos pinguins.

O gibão macho tem razoável garantia de que as crias lançadas no mundo pela sua parceira são suas porque os casais de gibões vivem dispersos em florestas em que a densidade das suas populações é baixa e a probabilidade de a fêmea se cruzar com outro gibão macho e ter um “caso amoroso” não inspira preocupação, mas o Homo sapiens macho nunca sabe o que pode acontecer “em casa” enquanto está ocupado a perseguir um mamute ou no congresso dos técnicos oficiais de contas.

Por outro lado, do ponto de vista da fêmea, há interesse em manter o macho vinculado a si de forma permanente e não apenas no período em que está sexualmente receptiva – daí ter surgido a teoria de que as fêmeas do Homo sapiens desenvolveram a particularidade, por comparação com os outros símios, de não exibirem sinais exteriores de estarem em período de ovulação – e a evolução terá levado esta ocultação de informação ao ponto de nem sequer as próprias fêmeas terem consciência de que estão em fase fértil. Deste arranjo resultou que “os seres humanos fazem sexo constantemente, independentemente dos ciclos férteis, e os homens acabam por voltar sempre às mesmas mulheres” (Lee).

No caso dos babuínos, as fêmeas fazem questão de anunciar publicamente quando atravessam o período fértil: os tecidos em torno dos genitais incham desmedidamente e ganham uma cor vermelha ou rosa intensa

Esta teoria, que defende que “a união de um homem e de uma mulher, mediada pela troca de sexo e comida, conduziu a um compromisso na evolução humana que consiste na divisão do trabalho por género, na família nuclear e no bipedismo”, implicando que “os machos cuidassem das fêmeas e da sua descendência”, foi postulada pelo antropólogo Owen Lovejoy no artigo The origin of man, publicado na revista Science em Janeiro de 1981 e tem tido aceitação generalizada. Porém, Lee, invocando investigações realizadas nas últimos 30 anos, põe em causa o modelo de Lovejoy: “Os humanos não são a única espécie a praticar sexo recreativo durante e fora do período de estro [fase fértil]. Os golfinhos e os bonobos [chimpanzés-pigmeus ou Pan paniscus] mantêm uma actividade sexual contínua, mas não têm famílias nucleares. Esse ideal de uma família nuclear é, muito provavelmente, produto do capitalismo e da economia de mercado, e não um imperativo biológico”.

Lee vai ainda mais longe ao defender que “os humanos não têm um estro oculto, ao contrário da hipótese base do Modelo de Lovejoy. As mulheres comportam-se de forma diferente, consciente ou inconscientemente, durante o período de ovulação; e os homens reagem em conformidade, consciente ou inconscientemente”.

Porém, neste ponto Lee parece ter-se esquecido de que, muito antes de haver capitalismo e economia de mercado, já existia uma fortíssima pressão evolutiva para que homens e mulheres formassem casais monogâmicos persistentes: a necessidade de cuidar de crias lerdas e sem “competências de sobrevivência” até ao fim da longa adolescência, uma dor de cabeça que não atormenta nem golfinhos nem bonobos.

No caso dos golfinhos-nariz-de-garrafa ou golfinho-roaz (do género Tursiops, que é o mais comum na natureza e que é invariavelmente o que se vê nos aquários e oceanários), as crias mantêm uma ligação à mãe durante 3-6 anos, mas ganham autonomia cedo – aos 3-4 meses já começam a capturar e comer peixe – pelo que a mãe golfinho não necessita de um parceiro com quem partilhar o fardo – e, com efeito, até à data não se recolheram provas de que, no seu habitat natural, os golfinhos machos intervenham no cuidado das crias. Quanto aos bonobos, são desmamados por volta dos 4-5 anos e começam a afastar-se das mães por volta dos 6-7 anos; as crias recebem atenções pontuais pela parte de outros machos e fêmeas do bando (aloparentalidade), o que é compreensível numa situação em que, devido à extrema promiscuidade, qualquer das crias pode ter genes de qualquer dos machos, mas a mãe é, basicamente, o único cuidador.

Lee também contesta o argumento da monogamia subjacente ao Modelo de Lovejoy: “Tal como os outros símios machos, um humano do sexo masculino não dispõe de uma forma directa de saber com certeza se é o pai genético dos filhos que está a criar […] Tendo em conta a quantidade substancial de recursos de que as crianças necessitam para crescer, seria de esperar que mais homens tomassem medidas para se certificarem da paternidade, mas não é o caso. Assim, a paternidade parece ser um conceito cultural e não um papel biologicamente determinado. Nas relações monogâmicas, os homens acreditam que os filhos produzidos nessas uniões são seus”.

Pode, porém, perguntar-se a que medidas de comprovação de paternidade poderiam os homens recorrer antes dos testes de paternidade através da análise do DNA, que só surgiram na década de 1980 e só se tornaram expeditos e pouco dispendiosos na década de 1990. Outra forma de aferição de paternidade são os testes aos grupos sanguíneos, mas também são recentes: no início do século XX descobriu-se que os grupos sanguíneos eram transmitidos geneticamente, mas foi preciso esperar até à década de 1930 para que os testes serológicos se tornassem minimamente expeditos e acessíveis. De qualquer modo, o apuramento dos grupos sanguíneos raramente dá respostas conclusivas quanto à paternidade: por exemplo, um casal em que marido e mulher são de tipo 0 só pode gerar crianças do tipo 0, pelo que se um filho for do tipo A, a “traição” é óbvia; porém, se a mulher tiver um amante que também é do tipo 0, não serão estes testes a denunciá-lo.

A partir do momento em que as sociedades humanas ganharam alguma perspicácia e uma vaga compreensão da hereditariedade, os homens terão começado a usar um indicador prosaico e intuitivo para avaliar se aqueles que tinha como filhos eram efectivamente seus: as semelhanças físicas consigo e com os seus ascendentes. O nascimento de um bebé de cabelos louros numa comunidade inuit da Gronelândia só poderia significar que a mãe tivera momentos de intimidade com um membro da colónia viking mais próxima enquanto o esposo andara na caça à foca.

Lee espanta-se por, “mesmo com a tecnologia actual, poucos homens se [darem] ao trabalho de realizar [um exame de paternidade], optando por acreditar que são os pais biológicos dos filhos”. Aqui, Lee revela um pensamento pouco subtil: no mundo moderno e nas sociedades desenvolvidas, o casamento assenta numa relação de confiança mútua e um marido que, numa relação estável, seja suficientemente obtuso para solicitar um teste que comprove que é ele o pai biológico dos seus filhos está automaticamente a estilhaçar essa relação e, muito provavelmente, a pôr fim ao casamento.

Não é por acaso que os testes de paternidade surgem sobretudo em situações de conflito, quando o casal se separou ou está em vias de separar-se e estão em jogo o pagamento de pensões alimentares ou heranças, ou ainda o apuramento da nacionalidade das crianças face às leis de imigração, ou quando alguém alega ser filho der alguém rico e/ou famoso para obter ganhos financeiros e de prestígio. A prática de um marido, por rotina, solicitar o teste de paternidade a cada filho nascido, seria tão intolerável como a de a mulher ter de entregar todas as semanas o telemóvel ao marido para este passar em revista as chamadas por ela efectuadas e recebidas.

Lee conclui o capítulo sobre a emergência da paternidade afirmando que “homens e mulheres são machos e fêmeas, mas também são entidades culturais para lá da biologia”. Não é exactamente uma conclusão revolucionária ou uma revelação, embora por vezes biólogos e antropólogos possam esquecer-se disso no calor das discussões.

Boa parte das convicções racistas assenta em diferenças na cor da pele, por serem as que saltam à vista até dos espíritos menos perspicazes, e não é por acaso que os termos derrogatórios usados para designar outras raças se fixam na cor da pele: “pretos”, “escarumbas”, “amarelos”, “peles-vermelhas”.

Esta obsessão com cores de pele, que, nalgumas sociedades coloniais levou ao aparecimento de complexas hierarquias assentes nas gradações entre branco e negro, impede que nos apercebamos de uma particularidade do Homo sapiens face aos outros mamíferos: fixamo-nos na pele porque podemos vê-la, por não estar coberta por pêlos, ao contrário do que se passa com a esmagadora maioria dos mamíferos e com todos os mamíferos de dimensões similares às nossas, que têm pelagens de cores diversas, mas cuja pele costuma ser de um branco rosado. Como Lee realça, os pêlos dão imenso jeito: “Criam uma barreira contra perigos como a radiação ultra-violeta, os espinhos, as presas dos animais […], estabilizam a temperatura corporal”. Na verdade, o Homo sapiens até possui uma densidade de folículos similares às de animais de dimensões similares, só parecemos pelados porque “os nossos pelos são finos e curtos”.

Que pressões evolutivas terão actuado para que o Homo sapiens tivesse perdido um revestimento que parece só ter vantagens? A resposta estará possivelmente no local de origem dos antepassados do Homo sapiens e nos seus hábitos alimentares. Há cerca de 2.5 milhões de anos, nas savanas africanas que foram conquistando terreno às florestas tropicais úmidas, em resultado de alterações climáticas, alguns dos nossos antepassados terão sido forçados a abandonar a dieta dominantemente vegetariana – que ainda hoje é a dos restantes símios – para incorporar a carne. A princípio, esta poderá ter provindo de carcaças abandonadas por predadores providos de músculos, garras e dentes mais poderosos, mas, pouco a pouco, estes antepassados, tirando partido de uma especial aptidão para trabalhar em grupo e de uma invulgar capacidade de aprendizagem, foram tornando-se em temíveis caçadores.

Os felinos das savanas africanas preferem caçar nas horas mais frescas – a pelagem tem múltiplas utilidades mas é um empecilho se se pretender correr ao meio-dia nas planícies do Quénia – e costumam capturar a presa num sprint breve, pois o seu tipo de fibras musculares é apto para arranques “explosivos” mas tem mau desempenho em provas de resistência.

Estes novos símios adoptaram tácticas cinegéticas bem diferentes das dos felinos: uma vez que estavam mal servidos de músculos, garras e dentes e os seus pés, concebidos originalmente para circular sobre as árvores, eram (mesmo depois de terem sido modificados por uma dupla arqueação) pouco apropriados para provas de velocidade no solo, apostaram em capturar as presas pela exaustão, perseguindo-as em passo de corrida sob o sol inclemente. Por vezes, os caçadores, sendo mais lentos no sprint do que a presa, poderiam perdê-la momentaneamente de vista, mas sendo capazes, graças às suas superiores capacidades de raciocínio, de seguir o seu rasto, eram capazes de encontrá-la novamente um quilómetro à frente e pô-la novamente em fuga, impedindo-a de arrefecer e recuperar as forças. Ao fim de umas horas a repetir este processo, as presas acabariam por entrar em sobreaquecimento e desfaleceriam ou ficariam, pelo menos, suficientemente debilitadas para que os caçadores humanos as abatessem com facilidade.

Terá sido assim que os nossos antepassados perderam os pêlos: a sua ausência (ou, mais rigorosamente, a sua expressão reduzida) permite transpirar abundantemente e, assim, manter o equilíbrio térmico mesmo ao meio-dia, quando os leões não conseguem melhor do que ficar espapaçados à sombra, de bocarra aberta, a ofegar. Mas o sol dos trópicos africanos não deixa de ser inclemente mesmo para quem transpira, pelo que o processo evolutivo manteve uma pelagem abundante na parte do corpo mais exposta à radiação solar quando o sol vai alto (para quem tenha adoptado a postura erecta): o topo do crânio.



A perda da cobertura de pêlo corporal, ao deixar a pele exposta directamente à radiação ultra-violeta, criou riscos de queimaduras e outras lesões cutâneas graves para estes bizarros caçadores do meio-dia. A pressão evolutiva resolveu o problema desenvolvendo um bloqueador da radiação solar: a produção de melanina deu à pele branca rosada dos símios caçadores um tom bastante escuro, por vezes de um negro intenso. Por muito que isto custe aos supremacistas brancos, os nossos antepassados eram, provavelmente, todos negros.

Mas a humanidade não ficou circunscrita às savanas da África tropical: a sua crescente eficácia como caçadores e a sua facilidade de adaptação a novos ambientes e situações (um produto das suas superiores capacidades intelectuais) permitiu que os nossos antepassados se fossem espalhando pelo planeta, em sucessivas vagas de migração. Aí encontraram climas bem mais nebulosos e chuvosos do que os das savanas e, na Europa e Ásia setentrionais, e, em particular, durante a Idade do Gelo, encontraram mesmo situações de escassa luminosidade durante meses a fio.

A pressão evolutiva resolveu o problema desenvolvendo um bloqueador da radiação solar: a produção de melanina deu à pele branca rosada dos símios caçadores um tom bastante escuro, por vezes de um negro intenso. 

Nestas condições, a melanina, tão útil nas regiões tropicais, não só deixou de ser útil como se tornou num empecilho, já que bloqueava a passagem da radiação solar, indispensável à síntese de vitamina D que se processa nas camadas inferiores da pele. Assim, nos climas com insolação reduzida, os nossos antepassados terão perdido a melanina e readquirido um tom branco rosado. Como escreve Lee, “o mapa-mundi da cor da pele” mostra que esta segue uma gradação alinhada, aproximadamente, com a latitude, com algumas irregularidades de tom “em função de há quanto tempo a população vive naquela região e de quanta vitamina D se encontra presente na sua dieta quotidiana “ (quanto mais vitamina D for tomada por via oral menos dependente fica o organismo de a sintetizar através da exposição ao sol).

O que é mais surpreendente é quão recente na história humana poderá ser a pele pálida: Lee cita um estudo de 2015, por David Reich e da sua equipa da Universidade de Harvard, que defende que “a pele clara dos europeus surgiu há menos de 5.000 anos”. Esta hipótese parece contradizer o que se sabe sobre as migrações do Homo sapiens: estes terão chegado à Europa e Ásia setentrionais há mais de 40.000 anos e aí viveram durante a Última Idade do Gelo, que se estendeu entre 115.000 e 11.700 anos antes do nosso tempo. Como poderiam humanos de pele negra ter produzido vitamina D sob uma tão reduzida insolação?

Lee sugere que a aparição da pele branca foi o resultado da descoberta e adopção da agricultura. Até então, os Homo sapiens, tal como os homens de Neanderthal (que alguns consideram uma espécie à parte e outros como uma sub-espécie do Homo sapiens), tinham uma dieta com elevada proporção de carne, que assegurava a vitamina D de que precisavam, mesmo em climas com baixa insolação. Quando o Homo sapiens se tornou sedentário e passou a obter o grosso da sua alimentação não da caça mas da agricultura, o reduzido conteúdo de vitamina D presente nos cereais, legumes e frutos terá levado, nas regiões com menor insolação, à emergência da pele clara, que facilita a síntese sub-cutânea de vitamina D.

A confirmarem-se estas suposições e atendendo a que se estima que o Homo sapiens tenha surgido há 500.000 anos, isso significa que fomos “pretos” durante 99% da nossa existência enquanto espécie. Aqui está matéria que pode fornecer matéria para reflexão aos europeus que sugerem que as pessoas de pele mais escura devem ser devolvidas a África.