quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Parem de acreditar em escola pública de qualidade - Por: Leandro Narloch


Em vez de gastar tanto com escolas públicas e professores ausentes, é melhor transferir o dinheiro direto para os pais e deixá-los escolher a escola particular que preferem

 
O mais intrigante na ocupação das escolas em São Paulo não é o personalismo dos manifestantes e de seus apoiadores – que se alvoroçaram contra uma proposta de separação de estudantes por faixa etária, mas ficaram bem quietinhos quando Dilma cortou o orçamento do Fies, do Pronatec e do ProUni.
O pior é a crença cega em “escolas públicas de qualidade”. Eles estão há um século rezando e fazendo procissões para que a Escola Pública de Qualidade desça dos Céus à Terra. Há um século seus pedidos dão em nada. No entanto, como seguidores de uma seita fanática, não largam a fé.
Pois deveriam. Escolas públicas, para darem certo, exigem boas pessoas. Políticos, professores e diretores que pensem apenas no bem comum, e não nos seus próprios interesses.
Se uma política pública exige que as pessoas se comportem como santos, pode acreditar: não vai dar certo. As pessoas até são naturalmente benevolentes, mas não são madres-teresas em tempo integral. O desenho de uma política precisa se basear em pessoas reais, não em seres imaginários.
No sistema atual, o cidadão que recebe o serviço não pode deixar de pagar por ele ou procurar uma escola concorrente caso esteja insatisfeito. Os contribuintes são obrigados a pagar pelo serviço mesmo que não gostem dele ou não o utilizem.
Já os professores e diretores são remunerados por uma entidade distante – o Estado – e não pelos clientes diretos. Sabem que não terão prejuízo se faltarem dezenas de vezes por ano ou se os pais ficarem insatisfeitos. Não têm incentivo para inovar, cortar custos, pensar em produtos diferentes. Podem se dar ao luxo de fazer greves que duram um, dois, três meses. Se um aluno desistir de ir à escola, isso é até uma boa notícia para o diretor, que terá um problema a menos com que se preocupar.
E os políticos que coordenam o serviço não precisam melhorar o sistema – apenas fazer parecer, a cada quatro anos, durante a campanha eleitoral, que deram um jeito nas escolas. Ou falar banalidades na televisão que toquem o público mais que as banalidades dos candidatos concorrentes. É como se o síndico do prédio fosse encarregado da educação dos filhos dos moradores. Uma loucura.
Com incentivos assim, não dar certo é a regra. As notícias de jornal não deveriam tratar de escolas que decepcionaram, mas dos raros casos em que o desempenho é satisfatório. O mistério é descobrir por que algumas escolas públicas funcionam, e não o contrário.
Os manifestantes que ocuparam as escolas parecem acreditar que conseguirão convencer todos os políticos, professores e diretores a agir apenas pelo bem comum. Embriagados pelo protagonismo, gastam a voz em discursos morais sobre a importância da educação e da necessidade de “cada um fazer a sua parte”, e outros clichês.
Desculpem cortar o barato, mas já passou da hora de desistir de escola pública de qualidade. Se dependermos apenas de incentivos morais, e não de incentivos financeiros, não vai dar certo. Não adianta mudar os políticos. Não adianta gastar ainda mais em educação. É preciso mudar os incentivos.
Em vez de gastar tanto em escolas ineficientes e professores que mais faltam do que aparecem, é melhor transferir o dinheiro diretamente para a família de alunos pobres, em forma de vales, ou pelo menos passar as escolas para gestores privados.
Os pais (e não uma autoridade) decidem qual linha pedagógica preferem e qual escola escolherão para os filhos. As escolas passam a responder aos pais – e a concorrer entre si por estudantes.
Já é assim em muitos países. Nos Estados Unidos, as escolas charter (escolas tocadas por ONGs ou associações comunitárias e bancadas com dinheiro público) têm notas acima da média até mesmo quando estão em áreas pobres, que historicamente decepcionam nos índices de escolaridade. Há 180 escolas assim em Nova York; 6 mil nos Estados Unidos.
Um estudo da Universidade Stanford mostra que 53% dos alunos de escolas charter são pobres, contra 48% de escolas públicas; e 29% são negros, contra 16% em escolas públicas. Estudantes negros estudando em escolas charter leem, em média, 29 dias a mais por ano e estudam matemática 36 dias por ano a mais que estudantes de escolas públicas tradicionais.
Esse modelo não é novidade no Brasil. O governo de Goiás já está criando um sistema de escolas charter. O ProUni não é nada mais que privatização da educação: em vez queimar dinheiro em universidades públicas perdulárias que param em greve quase todo ano, melhor financiar bolsas de estudo em faculdades privadas.
Essas alternativas não são uma solução livre de falhas. É preciso evitar a “falácia do nirvana”, segundo a qual há uma solução perfeita para todos os problemas do mundo. No Chile, o sistema de voucher nem sempre incentiva a concorrência entre escolas, porque os pais muitas vezes preferem escolas mais próximas de casa que as melhores da cidade. E não se pode descartar a possibilidade de corrupção entre os políticos e os gestores privados.
Além disso, o sistema privado é diverso. Como hotéis ou marcas de biscoitos, há escolas e faculdades privadas excelentes e picaretas. As melhores universidades do mundo (Harvard, Oxford, Cambridge, Yale, Stanford) são entidades privadas que ganham uma boa dose de recursos públicos. Assim como uma penca de “uniesquinas” de baixa qualidade.
Mesmo assim, o sistema está está léguas à frente do padrão tradicional de escolas públicas. Como podem receber doações privadas, as escolas charter americanas se esforçam para manter a reputação e evitar reclamações. Algo que jamais passaria pela cabeça da maioria dos diretores de escolas públicas brasileiras.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

KARL MARX SEGUNDO ERIC VOEGELIN - SEGUNDA PARTE



3.1. A génese do socialismo gnóstico.
O ponto de partida para o movimento do pensamento de Marx parece ser a posição gnóstica herdada de Hegel. O movimento do intelecto na consciência do ser empírico é a fonte maior de conhecimento. Donde a revolta contra a religião como esfera que reconhece um realissimum para além da consciência. ADissertação de 1840-41 abre o prefácio com um ataque a Plutarco que ousa criticar Epicuro. A confissão de Prometeus "Numa palavra, odeio todos os deuses" é a sentença lançada contra os que se recusam a reconhecer a autoconsciência humana (das menschliche Selbstbewußtsein ) como a suprema divindade.
O contexto desta afirmação é o debate sobre a existência de Deus. Quaisquer demonstrações são logicamente inválidas. Os deuses são forma real apenas na imaginação e apenas demonstram a existência da auto-consciência humana. Levem papel-moeda para onde ele não é aceite, e logo verão o que acontece. Na prova ontológica, o ser que é dado é a auto-consciência humana. A forma geral das provas é esta: "Como o mundo está mal organizado, ou é irrazoável, Deus tem de existir". Isto apenas significa que Deus só existe para quem o mundo é irrazoável. Marx sumaria o argumento afirmando que a "irrazão é a existência de Deus". A soberania da consciência e a revolta anti-teística de Marx volve-se, depois, contra os sistemas de Aristóteles e de Hegel: de tal modo explicam o mundo que interrompem qualquer avanço ulterior da filosofia. Sendo impossível o aperfeiçoamento, os sucessores devem virar-se para a prática filosófica e para a crítica da situação. A mente teórica deve virar-se como vontade para a realidade mundana que existe independente dela. Esta semi-contemplação não é muito edificante. Marx estava interessado na filosofia pós-aristotélica de Demócrito e Epicuro porque sentia-a, pessoalmente, em paralelo com a situação pós-hegeliana. A cultura religiosa da Idade Média seria da "era da irrazão realizada", mais uma falácia de Marx. Na verdade, quando se atinge o impasse de Hegel e a especulação filosófica se encontra "concretizada", o que um realista espiritual deve fazer, é abandonar a gnose e regressar às experiências originais da ordem, à experiência de fé. A "necessidade" apontada por Marx era apenas um sintoma da sua revolta demoníaca contra Deus. Uma vez concretizada a auto-consciência, não concebia regressar à irrazão da fé; apenas poderia avançar para a liquidação da filosofia, a crítica radical do mundo e a instauração de novos deuses.
A atitude de revolta efectua-se historicamente mediante a incarnação do logos no mundo, por meio da acção revolucionária. Para Hegel o logos estava incarnado na realidade e poderia ser descoberto pela reflexão do filósofo. O desdobramento da Ideia não era acção humana. A gnose era contemplativa. A definição da figura histórica como pessoa cujas acções se conformam a movimento da ideia não é receita para se tornar uma figura histórica. Esta perversão da gnose activa surge com Marx.
Marx era um paráclito sectário no mais puro estilo medieval, um homem no qual o logos se incarnara e através de cuja acção a humanidade se tornaria o receptáculo do logos tal como Comte, por exemplo. Não concebeu o espírito como um transcendental que desce para o homem, mas como a verdadeira essência do homem que se revela. O verdadeiro homem deve ser emancipado das cadeias. A sua auto-consciência divina é o fermento da história. A grande revolução trará o grande homem. A pneumopatologia de Marx consiste nesta auto-divinização e auto-salvação do homem; o logosintramundano é proclamado contra a ordem espiritual do mundo.

3.2. Teses sobre Feuerbach
Após o estudo do cerne do pensamento de Marx vejamos aCrítica das Teses de Feuerbach, um verdadeiro dicionário de conceitos marxianos. Se estudadas na sua sequência de 1 a 11, seguimos o curso da pseudo-lógica. Mas se invertermos parcialmente a ordem, (11,6,7,4,8,3,1,9,10) compreendemos a especulação . Aponta-se o conflito entre filosofia e não-filosofia na tese 11: "os filósofos só interpretaram o mundo; trata-se agora de o mudar". Mas repare-se que "interpretação" e "mudança" não equivalem a "teoria" e "prática" de Aristóteles. Claro que a função do bios theoretikos é interpretar o mundo e ninguém sério sustenta que a contemplação é um substituto da prática. A prática tem relevância (es kommt darauf an). Ademais apenas se pode agir no mundo e não mudá-lo. A intenção de incorporar na prática uma atitude só é possível em contemplação. A "prática" de Marx pode mudar o "mundo" porque o mundo é compreeendido como fluxo de existência, no qual a ideia se move concretamente. O logos não é uma ordem espiritual, mas uma ideia movendo-se dialecticamente dentro do mundo. Esta praxis pseudológica é atingida se nos lançarmos ao fluxo.
O "mundo" é o fluxo concreto de história. Não existe outro destino senão o social. Marx critica Feuerbach que dissolveu psicológicamente a religião como construção ilusória do homem mas ainda deixou o homem como entidade individual. Para Feuerbach, Deus é a essência do homem, Homo homini Deus. Agora, o espectro de Deus deve ser abatido. Na Tese 6 mostra-se insatisfeito com a dissolução de Feuerbach. Afinal o indivíduo mais não é senão a totalidade das relações sociais. É o meio social que nos confere crenças (Tese 7). É esse o facto da auto-alienação religiosa; e Feuerbach reduziu o mundo religioso à base mundana. Mas falta saber por qual razão a base mundana se separa de si própria e se fixa um céu. A contradição na base mundana tem de ser compreendida e revolucionada. (Tese 4).
A vida social é essencialmente prática (Tese 8). A vida não tem dimensão pessoal nem dimensão contemplativa. Todos os mistérios que poderiam induzir o misticismo em teoria, encontram a sua solução racional na prática humana. Marx leva a cabo o fechamento hermético ou clausura do fluxo de existência prática contra todos os desvios e contemplações e condena tentativas de produzir a mudança social mediante a educação. As circunstâncias apenas podem mudar através da acção humana. A auto-transformação é a "prática revolucionária" (3). A ideia de um sujeito de conhecimento e de moral distinto de objectos de conhecimento e acção moral deve ser abolida e o sujeito concebido como objeccional,gegenstäntdliche, e a actividade humana como actividadde objeccional. A realidade deve ser concebida como actividade humana sensorial (sinnliche menschliche Tätigkeit.) (1). Em termos de tradição filosófica, a prática revolucionária é definida como fluxo existencial em que o sujeito é objectificado e o objecto subjectivado. É essa a posição da humanidade social enquanto distinta do homem individual burguês bürgerliche, (9 e 10).

3.3. Crítica do céu e crítica da terra.
A crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica. Agora o homem pode reconhecer que é o super-homem e deixar de se considerar Unmensch. A religião é a auto-consciência de um homem que ainda se não encontrou a si mesmo, a teoria geral de um mundo pervertido. Confere realidade imaginária à essência humana, Wesen, que não tem verdadeira realidade. A miséria religiosa é a manifestação de miséria real e, ao mesmo tempo, protesto contra ela. A religião é o grito dos oprimidos, "o ópio do povo", KRR p.607. A destruição da religião é o começo da libertação, não é o fim. A felicidade ilusória do povo deve agora ser substituida pela sua felicidade real. As flores imaginárias na cadeia rosacruz não foram rasgadas para que a humanidade ficasse só com cadeias e sem consolação. Deve-se quebrar a cadeia e a flor. 607 ff. A crítica do céu deve ceder o lugar a uma crítica da terra, a teologia à política.
Para levar a cabo esta crítica do direito e da política, Marx não critica instituições mas sim a Filosofia do Direito, de Hegel. Nota a diferença de tempo histórico entre a Alemanha e o Ocidente. As Revoluções francesa e inglesa aboliram o antigo regime e estabeleceram o estado nacional moderno como expressão da sociedade burguesa. Foram realizadas por uma classe mas experimentadas como representativas por nações inteiras. Nem sempre isto é possível. Uma classe tem de evocar um momento de entusiasmo, em si mesma, e nas massas que a reconhecem. "Só em nome de direitos universais da sociedade pode uma classe particular reclamar governo geral para si". Não bastam oSelbstgefühl, pathos espiritual e a energia revolucionária. Deve também existir uma outra classe que se experimente como a esfera onde se pratica o crime notório contra o todo da sociedade, de modo a que a libertação desta classe surja como libertação geral. Por exemplo, a importância negativa-geral da nobreza francesa e do clero condicionou a importância positiva-geral da burguesia francesa como emancipadora.
A Alemanha ficou para trás porque o ancien régime continuou a existir. Nem tem uma classe cuja rudeza a tornasse representante negativa da sociedade, nem uma outra classe com energia e audácia revolucionária suficientes para se identificar com o povo. Cada classe da Alemanha está ainda envolvida em luta com as classes inferior e superior. O Estado moderno libertou o homem, na medida em que as diferenças de religião e de propriedade já não determinam diferenças de estatuto político para o indivíduo. O estado político perfeito é, por sua natureza, a vida genérica do homem. Contudo, a estrutura da vida egoísta mantém-se fora da esfera do Estado. O homem tem uma vida dupla; na comunidade política, vive como ser genérico, na sociedade vive como indivíduo privado. Ainda não chegou à liberdade através da completa socialização. Mas precisamente porque na Alemanha a situação política é anacrónica, os alemães podem radicalizar a ideia do Estado moderno. Em política, os alemães sempre pensaram o que os outros fizeram. Poderão os alemães p.613 e ss. levar a cabo uma revolução à la hauteur des principes ?
Na oposição entre a Alemanha e outras nações ocidentais, Marx é quase nacionalista. Considerava-se um autor que poderia extrair consequências práticas da filosofia hegeliana do Estado mas duvidava que os alemães a levariam a cabo. Como poderia a Alemanha fazer a revolução sem os passos intermédios já dados por outras nações europeias ? Talvez um dia a decadência geral, Verfall , da Europa tornasse a revolução política possível. A emancipação alemã não seria obra de uma classe particular mas do proletariado que, simultaneamente, faz e não faz parte da sociedade burguesa.
O proletariado é um "estamento" que é a dissolução de todos os estamentos, esfera social cujo carácter universal é devido ao sofrimento universal. É contra ele que se comete a injustiça em geral: de seu só tem a humanidade; por isso só se emancipa a si, emancipando a todos. Como é um zero de humanidade, pode ser um ganho total. Quando o proletariado anunciar a dissolução da ordem presente do mundo, apenas revelará o segredo da sua existência que é dissolução desta ordem do mundo. O proletariado será a arma material da filosofia, emancipador do homem: "A filosofia não se pode tornar realidade sem abolir o proletariado, o proletariado não se pode abolir a si próprio sem realizar a filosofia".
Marx reflecte na Reforma protestante, o passado teórico da Alemanha, uma revolução que começa pela especulação, que quebrou a fé na autoridade e instalou a autoridade de uma fé. Libertou o povo da religião externa mas deixou a religião interna. O protestantismo revelou a questão - combater o sacerdote - mas não deu a resposta certa. A luta contra o "padre exterior" foi ganha. Agora é preciso iniciar a luta contra o "padre de dentro". A guerra dos camponeses quebrou-se contra o muro da nova teologia protestante. Agora, no século XIX, ocorreu a destruição dos símbolos dogmáticos na geração de Strauss, Bauer, Feuerbach e Marx. Neste sentido, o marxismo é o produto final de um dos ramos do protestantismo liberal alemão.

3.4. Emancipação e alienação.
"Toda a emancipação é redução do mundo humano, das relações, ao próprio homem". A emancipação religiosa liquidará a consciência imaginadora de deuses. A emancipação politica converterá o indivíduo em cidadão. O homem individual ficará emancipado quando se tornar um ser com essência genérica (Gattungswesen ); quando reconhecer as suas forças como forças sociais e quando não mais separar a força social da política. A ultrapassagem do Estado é uma questão de tempo, cuja estrutura se assemelha à ultrapassagem da religião:"A constituição política foi até agora a esfera religiosa, a religião da vida popular... o céu da generalidade em oposição à existência terrena...A vida política é a escolástica da vida popular.
A alienação é o passado, a emancipação o futuro. O homem auto-alienado perde-se no além religioso, político, social, etc. O cerne da filosofia marxiana da história consiste em prever o fim das vicissitudes nas relações entre homem e natureza. O processo histórico comporta a origem animal do homem, as fases do processo de produção em que participa, a fase de auto-alienação e as possibilidades de emancipação revolucionária.
Os pressupostos reais da história crítica são os indivíduos reais, as suas acções e as condições materiais de vida. O homem distingue-se dos animais ao produzir os meios de vida(Lebensweise) desde a reprodução sexual e a divisão de trabalho ao nível familiar, até ao nível local, tribal e mercado mundial. O desenvolvimento das ideias é paralelo na política, direito, moral, religião e metafísica, A consciência é só ser consciente (bewußstes Sein). As ideologias são produto do processo material. Não possuem história própria. A história crítica deverá substituir a filosofia.
O processo material de produção é a substância irredutível da história. O trabalho humano é alienado pela especialização decorrente dos conflitos inerentes à divisão de trabalho nas condições da produção industrial para um mercado mundial. A consolidação do nosso produto em sachliche Gewalt é um notável factor de evolução. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz também o trabalhador como mercadoria. O trabalhador torna-se servo do seu objecto, nega-se a si próprio no seu trabalho. É apenas um meio de satisfazer necessidades exteriores ao seu trabalho. O trabalhador poderá sentir-se livre no desempenho das funções animais de comer, beber, procriar, alojar e ornamentar-se. Mas na função especificamente humana, permanece um animal. Na abstracção que o separa da esfera de acção humana, torna-se tierisch. Só a ciência e a beleza podem conferir forma ao que o homem produz. A actividade produtiva que distingue e vida humana é degradada ao nível de meio de ganhar a vida. A existência livre torna-se meio para existência física. Esta alienação da produtividade humana é inerente à divisão de trabalho e não se resolve por aumentos salariais que nada mais são do que formas de melhorar a sorte de escravos; não conferem maior dignidade nem destino ao trabalhador. Proudhon pede a igualdade de rendimentos: mas isso apenas tornaria a sociedade em capitalismo para todos e não só para alguns. Nenhuma organização social consegue controlar as condições de existência em sociedade.
Estas considerações provam que Marx não estava particularmente impressionado pela miséria dos trabalhadores. A reforma social não era um remédio para o mal que tinha em mente. O mal é o crescimento da estrutura económica da sociedade moderna até se tornar em poder objectivo ao qual o homem se submete completamente. Entre esses males contam-se:1) Separação entre operário e instrumentos. 2) Dependência do emprego face às empresas; 3) A divisão do trabalho tal como é praticada é um insulto à dignidade humana; 4) A especialização, para aumentar a produtividade destrói a qualidade do produtor 5) A interdependência económica gera acções fora do controle humano e social.

3.5. O homem socialista.
Que espera Marx da revolução comunista ? Por estranho que pareça, as características do futuro homem socialista estão estreitamente relacionadas com o sistema industrial de produção. Marx queria reter o sistema industrial e abolir a especialização humana. O novo homem deveria ser um dia poeta, noutro dia operário, depois pescador, etc. Ser tudo de todas as maneiras sem ter de ser nada. (Ideologia Alemã, p.22) A revolução é necessária para que o homem ganhe auto-determinação (Selbstbetätigung ) e assegure a sua existência. Consistirá na apropriação da totalidade das forças produtivas e terá carácter universal. O proletário é o instrumento ideal desta revolução. Como não está limitado (borniert ) por um tipo especial de propriedade, pode subsumir a propriedade em todos. A associação universal de proletários à escala mundial pode quebrar o poder da estrutura actual económica e desenvolver a energia e carácter necessários para a revolução. Depois o trabalho será transformado em auto-realização. A comunidade ultrapassará a divisão de trabalho e cada um poderá subsumir as forças produtivas e desenvolver plenamente as faculdades humanas.
O indivíduo total, ou o homem socialista, é o objectivo da história. A libertação da propriedade seria o último acto deste drama. Só é independente o ser que se sustenta pelos seus próprios pés, que só deve a existência a si próprio, que cria a sua própria vida. E embora a ideia de criação esteja enraizada na mente humana, o ser-por-si da natureza vai contra todas as experiências tangíveis (Handgreiftlichkeiten ) da vida prática. Onde começa a grande corrente de ser ? Marx proibe essa pergunta! Tais abstracções não têm sentido. O homem que não pôe questões é o homem socialista.

3.6. Comunismo em bruto e comunismo verdadeiro
A essencialidade (Wesenhaftigkeit ) do homem na natureza torna a busca de uma essência além da natureza como inessencialidade (Unwesentlichkeit ) do ser alienante divino. Deixará de ser preciso o ateismo como negação de Deus enquanto condição de posicionamento da existência do homem. O socialismo é a auto-consciência positiva da realidade humana sem a mediação da negação religiosa. (Manuscritos 1844, 3, pp.125 e ss.) O comunismo é uma contra-ideia que visa ultrapassar um estado histórico; não é uma reforma institucional; é uma mudança na natureza do homem.
O comunismo em bruto (roher Kommunismus) pretende a propriedade privada geral e o nivelamento social. É movido pela inveja e é uma manifestação de selvajeria, Niedertracht , na comunização dos bens e das mulheres. O socialismo ou verdadeiro comunismo,wahre Kommunismus, Sozialismus, é o regresso do homem a si mesmo como ser social. É um naturalismo humanístico com a solução do conflito entre o homem e a natureza (Ms. 1844 pp.114-116).

3.7. Manifesto Comunista. Dezembro de 1846 - Janeiro 1848.
Manifesto realiza a naturalização do homem e a humanização da natureza. Como documento de propaganda, nada acrescenta às ideias já expostas. Mas é uma obra-prima de retórica. No preâmbulo, o autor fixa a escala do seu pronunciamento. Trata-se um processo mundial, de um espectro que paira sobre a Europa. Este reconhecimento obriga o novo mundo dos comunistas a clarificarem as suas oposições ao velho mundo reaccionário. A primeira secção desenvolve a perspectiva histórica do comunismo. A história é luta de classes. A visão da sociedade moderna é ainda mais simplista e maniqueista, pois refere apenas a burguesia e o proletariado. A burguesia nasceu dos servos da Idade Média para conquistar o mundo. O seu papel revolucionário na história foi destruir as idílicas relações patriarcais e feudais. Fez milagres maiores que as catedrais, pirâmides e aquedutos; criou a produção cosmopolita, a interdependência das nações, a literatura mundial, fez o campo depender da cidade, o bárbaro do civilizado, o Oriental do Ocidental. Marx louva a burguesia em termos que jamais burguês algum utilizou, fazendo recordar o orgulho absurdo de Condorcet. O esplendor da burguesia é, porém, transitório porque será ela substituida pelo proletariado em várias fases da luta. No começo, há apenas indivíduos que lutam contra a opressão local. Com a indústria, a opressão generaliza-se. As associações de operários terão vitórias e derrotas. A proletarização crescente da sociedade lança grupos educados no proletariado. Surgem os renegados de classe devido à desintegração social. Os burgueses ideólogos juntam-se aos operários, com o que se atinge a época de Marx e Engels.
A segunda secção do Manifesto lida com a relação entre proletários e comunistas. Aqui surgem ideias novas sobre a condução do processo político. Os comunistas não são um partido em oposição a outros partidos operários mas representam o todo. É o dogma fundamental do partido comunista. Não têm que estabelecer princípios próprios distintos do movimento proletário. O que os distingue não é um programa próprio mas o nível universal da sua prática. É a chamada fórmula da vanguarda: os comunistas são a secção mais resoluta dos trabalhadores; são seus objectivos formar o proletariado em classe, derrubar a burguesia, conquistar o poder político. O resto da secção lida com a exposição e defesa dos objectivos finais do comunismo. As ideias comunistas não resultam deste ou daquele reformador (Weltbesserer ). São a expressão das relações actuais de poder na luta de classes. As teses comunistas não são pedidos programáticos para mudar a situação; pelo contrário, revelam a situação e sugerem tendências inerentes ao processo, até se conseguir a sua realização plena. Os comunistas querem abolir propriedade privada. E então ? Quase ninguém a possui ! E se os capitalistas a perderem será expropriação ? Não, porque o capital é poder social, resulta da actividade comum. Se o capital fôr convertido em propriedade social apenas perde o seu carácter de classe. O que os adversários chamam expropriação apenas transforma a situação actual em princípio de ordem pública. O mesmo tipo de argumento é depois aplicado às críticas contra a abolição do casamento burguês, nacionalidade, religião e verdades eternas.
As teses do comunismo elevam a marcha da história à consciência. Fornecem a intuição da ordem que está por vir. Condorcet está presente nesta ideia de um directório que conduz a humanidade, na marcha para o reino da liberdade. Como a história não marcha por si, o directório irá dar uma "mãozinha": a arma é o proletariado como classe extra-social, sem propriedade nem nacionalidade. A conquista do poder será um processo prolongado. Primeiro, a ditadura do proletariado; é preciso centralizar os instrumentos de produção, descapitalizar a burguesia, organizar a classe proletária, aumentar a produção. Através de intervenções despóticas na propriedade, o poder público perderá o seu carácter político por deixar de ser instrumento de classe. Virá então a livre associação em que a liberdade de cada um é condição para liberdade do outro. O Manifesto termina com o célebre apelo, "Proletários nada tendes as perder senão as cadeias. Uni-vos"

3.8. Tácticas.
Em 1850, no Discurso à Liga Comunista, Marx indicara que o principal problema não era a conquista imediata do poder mas a aliança com os grupos democráticos que o tinham alcançado, até que fosse possível traí-los após vitória futura. É a situação da Frente Popular, depois repetida em 1930 e no pós-guerra. É interesse dos comunistas fazerem a revolução permanente para que a pequena burguesia não fique contente com ganhos iniciais. Os comunistas não estão interessados em mudanças na propriedade privada mas na sua abolição; não lhes interessam reformas da sociedade velha, mas a sua liquidação. Todos os meios serão bons para manter a excitação das massas; promessas ao proletariado e ameaças à burguesia; a violência de massas deve ser organizada:"Os pedidos dos trabalhadores devem ser sempre guiados pelas concessões e medidas dos democratas".

3.9. Conclusão
Na raiz da ideia marxiana está uma doença espiritual, a revolta gnóstica de quem se fecha à realidade transcendente. A incapacidade espiritual aliada à vontade mundana de poder provoca o misticismo revolucionário. A proibição das questões metafísicas acerca do fundamento do ser; "Será possível negar Deus e manter a razão ?" destrói a ordem da alma. Mas a par desta impotência espiritual há a vitalidade de um intelecto que desenvolve uma especulação fechada. As Teses sobre Feuerbach mostram que o homem marxiano não quer ser uma criatura. Rejeita as tensões da existência que apontam para o mistério da criação. Quer ver o mundo na perspectiva dacoincidentia oppositorum, a posição de Deus. Cria um fluxo de existência em que os opostos se transformam uns nos outros. O mundo fechado em que os sujeitos são objectos e os objectos actividades, é talvez o melhor feitiço jamais criado por quem queria ser divino. Temos de levar a sério este dado para compreender a força e a consistência intelectual desta revolta anti-teista.
Por outro lado, Marx compreendeu que o crescimento gigantesco das instituições económicas num poder de influência determinante da vida de cada pessoa, inutilizava qualquer debate acerca da liberdade humana. É o único pensador de estatura do século XIX que tentou criar uma filosofia do trabalho humano e uma análise crítica da sociedade industrial. A sua obra principal Das Kapital não é realmente uma teoria económica como as de Smith, Ricardo, Mill. Está cheia de defeitos nas teorias do valor, do juro, da acumulação de capital. É sim uma crítica da economia política, uma tentativa de revelar os supostos nos conceitos da teoria económica e assim chegar ao centro da questão, ou seja, a relação do homem com a natureza e a uma filosofia desta relação, ou seja, o trabalho. Cento e cinquenta anos após Marx é duvidoso que qualquer escola de teoria económica tenha suficientemente desenvolvido este ponto.
O diagnóstico é bom. O sistema industrial está permanentemente ameaçado por impasses, por revoluções adiadas e pela subida do nível de vida. O resultado seria o comunismo bruto. Na sua construção da história, Marx concebeu o desenvolvimento das formas económicas numa humanidade abstracta com um apêndice de ideologias. De facto, o desenvolvimento ocorre em sociedades históricas com vida espiritual.
Podemos chamar "magia" à trasladação da vontade de poder do domínio dos fenómenos para o da substância ou à tentativa de operar nesta como se fosse o domínio dos fenómenos. A tendência para estreitar o campo da experiência humana à area da razão utilitária e pragmática; a tentação de a tornar a preocupação exclusiva do homem; a tentação de a tornar socialmente preponderante por pressão económica e por violência, fazem parte de um processo cultural que visa operar a substância humana através de uma vontade planeadora pragmática. Mas o sonho de criar o super-homem que sucederá à criatura divina, a ideia do indivíduo total que se apropria das faculdades do sistema industrial, para a sua auto-actividade, são empiricamente irrealizáveis. A mudança da natureza humana através da experiência da revolução é um estéril misticismo intramundano. Compreendemo-lo melhor se compreendermos Marx.

GLOSSÁRIO

der vergesellschaftete Mensch homem socializado
umstülpen inverter
Gattungswesen ser genérico descoberto no ser individual
sachliche Gewalt poder objectivo dos produtos que nos rodeiam
sinnliche menschliche Tätigkeit actividade humana sensorial
Selbstbetätigung Auto-determinação, apropriação de forças produtivas
Fetischcharakter der Warenwelt Carácter de feitiço das mercadorias
Handgreiftlichkeiten experiências tangíveis da vida prática
roher Kommunismus Comunismo em bruto,propriedade privada geral
wahre Kommunismus, Sozialismus verdadeiro comunismo/socialismo
Wesenhaftigkeit essencialidade do homem na natureza
Unwesentlichkeit inessencialidade do ser alienante divino
Lebensweise processo de produção material

domingo, 6 de dezembro de 2015

Karl Marx segundo Eric Voegelin






Mendo Castro Henriques, professor na Universidade Católica de Lisboa e já conhecido dos visitantes destahomepage, selecionou alguns textos inéditos compostos porEric Voegelin para o abortado projeto de uma History of Political Ideas e com eles montou um volume, Estudos de Idéias Políticas – de Erasmo a Nietzsche, publicado pelas Edições Ática, de Lisboa, em 1996. Foi portanto em português que esses textos, originalmente datilografados em inglês, se publicaram pela primeira vez no mundo. O volume saiu com uma bela introdução pelo próprio Mendo Castro Henriques e uma nota assinada pela viúva do autor, Lissy Voegelin. - O. de C.

Karl Marx (1818-1883)
por Eric Voegelin
Tradução de Mendo Castro Henriques

1.1. Marx: história e lenda.
Ao iniciar o estudo de Marx, nunca é demais acentuar que a polémica partidária dificultou o acesso à obra; muitos escritos considerados secundários permaneceram inéditos até à edição MEGA de 1927-32 e, ainda em vida, a pessoa histórica de Marx desapareceu debaixo da figura mítica. Nos marxistas da primeira geração e nos da revolução russa, cresceu a lenda que não valia a pena conhecer o filósofo precoce que, apenas a partir de 1845 desenvolvera as verdadeiras intuições noManifesto e em O Capital, e que foi fundador da 1ª Internacional. Debateu-se, depois, se o verdadeiro Marx era o de Bernstein, Kautsky, Rosa Luxemburgo ou Lenine. Só após o Instituto Marx-Engels-Lenine de Moscovo e os sociais-democratas alemães desenterrarem os manuscritos dos arquivos começou uma interpretação séria na qual se destacam as obras de S.Landshut e J.P. Mayer Der historische Materialismus. Die Frühschriften, 2 vols., Leipzig, 1932.
Por detrás desta história de incompreensão e redescoberta está a tragédia do activista. Para passar do velho para o novo mundo, Marx exigia uma metanoia, semelhante à conversão de Bakunine mas obtida através de um movimento revolucionário. A revolução seria uma mudança radical do homem: permitiria derrubar as instituições e purificar a classe operária. Libertaria a classe oprimida da "porca miséria" (Drecke) e permitiria recriar a sociedade. Marx não queria criar primeiro o povo eleito e depois fazer a revolução: pretendia que a criação do "povo eleito" resultasse da experiência da revolução. Esta ideia é profundamente trágica porque, caso não houvesse revolução, o coração humano não mudaria. O carácter insensato da ideia permaneceria mascarado até que a experiência fosse levada a cabo. E ao contrário do que se passou com o anarquismo de Bakunine, este carácter peculiar da ideia marxiana foi agravado pela visão comunista do novo mundo.

1.2. A visão dos reinos da necessidade e da liberdade.
Marx sobressai entre os revolucionários da sua geração pelos superiores poderes intelectuais. Evoca um novo mundo mas não cai nas propostas delirantes de abolição da sociedade industrial e nas utopias socialistas. Jamais aceitaria a metamorfose comteana da tradição francesa católica dos clercsem intelectuais positivistas, desejosos de conquistar o poder temporal. Através de Hegel e dos jovens hegelianos, herdara as tradições do protestantismo intelectualista luterano, defensor da verdadeira democracia realizada em cada homem. No mundo do sistema industrial, o novo reino da liberdade resultaria da experiência emancipadora da revolução.
Esta visão não foi um apenas um episódio da juventude; permaneceu constante até ao fim da vida. Em O Capital vol.3, reflecte na grande vantagem do sistema de produção capitalista: maior produtividade e, portanto, redução do horário laboral. O homem civilizado e o primitivo têm de lutar com a natureza para satisfazer carências; nenhuma revolução abolirá este reino da necessidade natural, que continuará a crescer à medida das necessidades humanas. A liberdade neste domínio será, quando muito, a regulamentação racional do metabolismo humano. O homem socializado, der vergesellschaftete Mensch poderá controlar colectivamente este metabolismo, reduzindo as horas de trabalho e as perdas de produção e organizando os lazeres em vez de os deixar ao acaso. Só depois começa o reino da liberdade, a finalidade que não resulta da base material mas da experiência da revolução.
A distinção entre os dois reinos é bastante clara. A abolição da propriedade privada não é o fim em si mesmo e o controle colectivo só interessa para diminuir as horas de trabalho. As horas de lazer ganhas são o solo no qual o reino da liberdade poderá enraizar-se. A burguesia usa esse tempo para ócio, entretenimento recreio, jogo, divertimento. Mas será isto preencher a liberdade? Dados os conhecimentos filosóficos de Marx, por reino da liberdade dever-se-ia entender a acção concretizadora das capacidades humanas, algo de semelhante às aristótélicas scholé e bios theoretikos. O decisivo é que a liberdade não provenha da base material mas da experiência de revolução. A superação (Aufhebung ) do trabalho convertê-lo-ia em auto-determinação (Selbstbetätigung).

1.3. O descaminho de Marx 1837-1847.
De 1837 a 1847 Marx clarificou os pensamentos que tiveram a expressão tardia atrás esboçada. Após a visão, impunha-se a acção revolucionária. O reino da necessidade seria a indústria menos a burguesia. O reino da liberdade tinha de crescer por si e não podia ser planeado. Entre adoptar a existência romântica à Bakunine, ou o silêncio, optou por preparar a revolução.

1.4. Lenda do Jovem Marx.
Se Marx se sentisse obrigado a produzir uma renovatiorevolucionária nos seus contemporâneos através de sua autoridade espiritual, nada resultaria excepto o seu drama pessoal. Mas bastava-lhe mover o Aqueronte no homem, para a liberdade resultar da revolução e a revolução da necessidade. Defendia um ideal de dignidade humana; mas, na acção, desprezava o homem. A revolução que derrubaria a burguesia dependeria de: 1)A análise dos factores do capitalismo que desintegravam o sistema 2) A forja da organização proletária que iria tomar o poder. Em vez de se tornar o dirigente da revolução, Marx escreveu o Manifesto como apelo à organização das forças que iriam executar a revolução inevitável. Em vez de descrever a sociedade futura escreveu O Capital, análise da sociedade moribunda. A partir de 1845 tornou-se o parteiro da revolução. E foi esta transição do fazer a revolução para o preparar a revolução que constituiu o seu descaminho. A imensidade dos trabalhos preparatórios ensombrou a experiência escatológica que motivara a visão revolucionária e a culminância no reino da liberdade.

1.5. O movimento marxista. Revisionismo.
O descaminho ensombrou a ideia mas não aboliu a tensão revolucionária. As actividades preparatórias puderam ser imitadas por quem não tinha a experiência originária de Marx, provocando a morte do espírito e da esperança de renovação num mundo novo após a revolução. Os marxistas eram quase todos almas já mortas que apenas experimentavam a tensão entre o presente miserável e o imaginado futuro radioso e que desejavam a melhoria da sorte dos operários.
O descaminho intensificou-se com a passagem do tempo. A preparação intelectual e organizacional da revolução tornou-se um modo de vida. Bernstein pôde afirmar: "O que vulgarmente se chama a finalidade derradeiro do socialismo nada representa para mim; o movimento é tudo "; e Kautsky noNeue Zeit de 1893:"O partido socialista é um partido revolucionário; não é um partido que faça revoluções". A revolução foi transformada em evolução. Horários, salários e controles laborais poderiam ser adquiridos por legislação. A ala revisionista tornara-se um movimento de reforma social.
Se no domínio das ideias estes problemas marxistas têm pouco interesse, já no da história são importantíssimos. Para um Kautsky convicto de que revolução é inescapável, o revolucionário apenas tem de esperar que a situação esteja madura para agir. O revolucionário genuíno aguarda; o utópico faz aventuras. Este descaminho quase cómico de Kautsky aparece já no Marx de 1848-50. Até à revolução de Fevereiro, Marx esperava a grande revolução. A secção 4 do Manifesto revela esse estado de espírito: "A revolução burguesa na Alemanha será apenas o prelúdio de uma evolução proletária imediatamente subsequente". Quando a revolução falhou, foram necessárias muitas explicações. A primeira fase do falhanço foi explicada em A Luta de Classes em França,1850; a segunda fase em O 18 Brumário de Luís Napoleão, 1852. Em 1850, no Discurso à Liga Comunista desenvolve pela primeira vez a táctica da luta de classes, cunhando a palavra de ordem "eevolução permanente". Depois de grande intervalo escreve A Guerra Civil em França, 1871 para explicar o falhanço da Comuna. Após a morte de Marx, Engels prosseguiu estas explicações. Para a história da Liga dos Comunistas,1885 prevê a revolução para breve, efabulando a existência de ciclos imaginários de 15 ou 18 anos. No prefácio de 1895 à reedição deA Luta de Classes em França, fascinado com a existência de dois milhões de votantes sociais-democratas, Engels louva-se nos excelentes resultados dos processo legais de luta. Na expansão da Social-Democracia, vê um fenómeno semelhante ao crescimento do Cristianismo na decadente sociedade romana. Bismarck é o Diocleciano alemão. E como se vê, Kautsky podia razoavelmente considerar-se o portador do facho marxiano.

1.6. O movimento marxista. Comunismo.
O descaminho que levou à revolução comunista apresentou-se como regresso ao verdadeiro Marx. Após 1890 surgem radicais que já não aceitam o reformismo evolucionista. Lenine perante Kautsky tem a mesma atitude de Marx perante os sindicalistas ingleses. Pretende uma élite partidária, rejeita a cooperação democrática, quer a concentração do poder e despreza as massas que podem ser compradas mediante vantagens, como se vê no discurso de Genebra em 1908. Com as lições ainda frescas da revolução falhada de 1905, Lenine acentua os aspectos violentos do Comunismo. A Comuna de 1870 falhou porque não foi suficientemente radical, não expropriou os expropriadores, foi indulgente para com inimigos, tentou influenciar moralmente em vez de matar, não percebeu a acção militar e teve hesitações. Mas pelo menos lutou, demonstrando assim como lidar concretamente com o problema da revolução. A insurreição russa de 1905 mostra que a lição fôra aprendida e os Sovietes de trabalhadores e de soldados indicavam a actuação correcta .
Reconquistava-se assim a tensão revolucionária ao nível da acção no reino da necessidade. A visão marxiana aparece em parte na obra de Lenine e nas fórmulas da Constituição Soviética de 1936, através do reconhecimento de que a revolução socialista ainda não produziu o verdadeiro reino comunista. A URSS é uma união de repúblicas socialistas guiadas pelo partido comunista em direcção a um Estado perfeito, distinção que remonta à Crítica do Programa de Gotha e Erfurt, 1875. Na fase original da revolução, o comunismo incipiente compensará o trabalho de acordo com a respectiva qualidade e quantidade. Na fase superior, o trabalho já não será meio de vida mas sim a maior necessidade da vida (Lebenbedürfnis). O princípio então será, de cada um conforme a sua capacidade, a cada um conforme a sua necessidade". Esta fórmula de Enfantin em1831, é parafraseada por Louis Blanc em 1839 e depois usada por Marx. Em O Estado e a Revolução, 1917 Lenine usou-a de modo que se tornou um dos ícones semânticos do comunismo russo. O contexto táctico da distinção reforça a visão de que o comunismo final é remoto (está a décadas de distância segundo Marx, a séculos segundo Lenine) enquanto a fase imediata é de pós-revolução. Os erros repetidos das explicações e das tácticas comunistas acerca do falhanço do milénio como passo necessário e inevitável para o respectivo advento, acabaram por cair no ridículo após a 1ª Grande Guerra, sendo estigmatizadas por Karl Kraus como o tic-tac dos tác-ticos marxistas.

1.7. Triunfo político do marxismo.
Num artigo de Enciclopédia de1914, Lenine faz curta biografia de Marx e depois expôe o Materialismo Filosófico, baseando-se no Anti-Dühring, na dialéctica em Engels e Feuerbach e na concepção materialista da história, da página famosa da Crítica da Economia Politica. Depois vem luta de classes e doutrina económica, socialismo e táctica. Não há uma só palavra sobre o "reino da liberdade" e as suas precárias realizações. Deste modo, Lenine e os leninistas recuperaram a tensão revolucionária no domínio da necessidade mas perderam-na ao nível da liberdade. A passagem do tempo obrigava-os a considerarem cada vez mais os acontecimentos históricos como passos tácticos. Após 1917 continuou a debater-se se aquela era mesmo a grande revolução, se apenas o seu começo, se deveria ser expandida no mundo, se estaria segura enquanto não fosse mundial, se poderia ser num só país, quanto tempo levaria o Estado a desaparecer,etc. Como após o triunfo russo não surgiu o Pentecostes da liberdade, surgiu a inquietação. O jogo da táctica servia para os dirigentes mas o comum não o entendia. Passaram dez, vinte anos, e o Estado não desaparecia. E a relevância doutrinária de Estaline consiste em ter encontrado um substituto para o milénio - a pátria do socialismo. A injecção de patriotismo no comunismo russo é um apocalipse substituto para massas que não podem viver em permanente tensão revolucionária. Mas a táctica do descaminho não desaparece só porque uma paragem táctica foi oferecida às massas.

2.1. Dialéctica invertida. A formulação da questão.
A dialéctica da matéria é uma inversão consciente da dialéctica hegeliana da ideia, e corresponde a processos semelhantes praticados por sofistas, iluministas e anarquistas. Sob a designação mais respeitável de "materialismo histórico" ou mesmo "interpretação económica da história e da política" é correntemente aceite e surpreende que o diletantismo filosófico de tais teorias não abale a sua influência maciça. Dialéctica é um movimento inteligível das ideias, quer na mente quer noutros domínio do ser ou, então, em todo o universo. Hegel interpretava a história dialecticamente por considerar o logosincarnado na história. No Prefácio à 2ª ed. de O Capital, 1873, afirma Marx que "o meu método dialéctico nos seus fundamentos não só difere do dos hegelianos mas é o seu oposto directo". Na 1ª ed. declarava-se um discípulo do grande pensador contra os autores medíocres que o tratavam como um "cão morto". Considera que na forma mistificada hegeliana, a dialéctica é glorificação do que existe. Na forma racional marxiana "explica a forma do devir no fluxo do movimento". Ao compreender criticamente o que existe positivamente, também implica a compreensão da sua negação e desaparecimento.
A intenção marxiana de inverter (umstülpen ) Hegel, considerado como de pés para o ar, assenta numa incompreensão da dialéctica. Para Hegel a ideia não é o demiurgo do real, no sentido de "real" significar o fluxo de realidade empírica que contém elementos que não revelam a ideia. Hegel debate se a realidade empírica é apenas um fluxo ou se tem uma ordem; como filósofo, tem de discernir entre a fonte de ordem e os elementos que nela não cabem. A dialéctica da Ideia é a sua resposta a este problema. Mas Marx abole o problema filosófico da realidade precisamente antes de praticar a inversão; não inverte a dialéctica: recusa-se sim, a teorizar. Trinta anos antes mostrara na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel,1843 que compreendia o problema da realidade mas que preferia ignorá-lo. Criticara então a concepção hegeliana por não estar à altura de conceito de realidade. (Cf. notas à secção 262 de CFDH). Os filósofos têm o hábito de questionar a realidade. Em vez de deixar a essência como predicado da realidade existente, extraem-na para sujeito, "die Prädicate selbst zu Subjekten gemacht". Mais do que censurar Hegel, Marx estava a atacar a filosofia. Os filósofos, de facto, não deixam a realidade em paz nem se conformam que a ordem seja produto do real.

2.2. A proibição-de-perguntar ou Fragesverbot.
Mas se afinal Marx compreendia perfeitamente Hegel, como revela a passagem da Crítica da Economia Política, p.lv., onde mostra que a filosofia crítica discorda de visão pré-crítica, foi talvez por desonestidade intelectual que deliberadamente se fez desentendido. É um problema de pneumopatologia: receava os conceitos filosóficos, sofria de logofobia. Engels no Anti-Dühring, ed 1919, pp.10 e ss., dissera que o materialismo moderno é dialéctico pois dispensa uma filosofia acima do discurso das ciências. Enquanto a dialéctica pesquisar leis e processos de evolução, a filosofia é supérflua. Cada ciência quer clareza no contexto total das coisas e dos conhecimentos das coisas (Gesamtzusammenhang ); mas uma ciência particular do total é supérflua e pode ser dissolvida em ciência positiva da natureza e da história. Também aqui, apenas uma pneumopatologia pode conferir sentido a estas afirmações de Engels. Os conceitos críticos conduziriam ao contexto total da ordem do ser ou ordem cósmica. Um contexto total não deve existir para o sujeito autónomo de que Marx e Engels são insignificantes predicados; a existir, é só como predicado de todos os sujeitos, nomeadamente Engels e Marx.
Atingimos aqui o estrato profundo da revolta marxiana contra Deus. A análise levaria a reconhecer a ordem do logos na constituição do ser, esclarecendo como blásfémia inútil a ideia marxiana de estabelecer um reino da liberdade e de mudar a natureza do homem através da revolução. Como Marx se recusa a utilizar uma linguagem crítica, temos de compreender os símbolos a que recorre. Marx criou um meio específico de expressão: quando atinge um ponto crítico, apresenta metáforas que forçam as relações entre termos indefinidos como se viu no já citado passo do Prefácio, p.xvii " o ideal nada mais é que o material transformado e traduzido na cabeça do homem ". Seria uma afirmação brilhante se condensasse numa imagem o que já fôra dito de modo crítico. Mas o problema é que não existe esse contexto crítico. O que é "pôr na cabeça" ? É milagre fisiológico ? Actividade mental ? Acto cognitivo ? Processo cósmico ? Atente-se de novo na passagem da Kritik p.lv:
1ª "Na produção social dos seus meios de existência, os seres humanos efectuam relações definitivas e necessárias que são independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um estádio definido de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais". O estilo é fraco mas passagens anteriores explicaram cada um destes termos. 2ª "O agregado destas relações de produção constitui a estrutura económica da sociedade". Nada a dizer. 3ª "A estrutura económica da sociedade é a base real na qual uma superestrutura jurídica e política surge e a que correspondem formas definitivas de consciência social". Por que razão é a economia a base ? Nada no texto o justifica. 4ª "O modo de produção dos meios materiais de existência condiciona todo o processo da vida intelectual, social e política". Mas que significa condicionar ? Não se explica ! 5ª "Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é, pelo contrário, o seu ser social que determina a sua consciência".Então passa-se sem mais de condicionar para determinar ? E o que é ser econsciência ? Esta passagem célebre ilustra como Marx salta de problemas concretos de economia e de sociologia para uma especulação com símbolos não-críticos. A metáfora é um intrumento ditatorial que impede o debate. E em rigor, é impossível uma análise crítica da doutrina marxiana, porque não existe uma teoria marxiana do materialismo histórico.

2.3. Especulação pseudológica.
Então que faz Marx ? Para referirmos a sua "teorização" efectuada com uma linguagem não-teórica, podemos falar de especulação pseudológica, uma teoria aparente apresentada como teoria genuína e que supôe uma filosofia genuína dologos que pode ser pervertida. A inversão marxiana é a transformação pseudológica da especulação de Hegel. Não inverteu Hegel porque o material não é a realidade de Hegel nem o seu ideal é a ideia de Hegel. A vulgata materialista afirma que tudo é disfarce de interesses materiais (económicos, políticos, etc.). Marx era um pouco mais sofisticado. Reteve a visão de Hegel de que a história é a realização do reino da liberdade. E Engels louva Hegel que se ocupou da ordem inteligível da história mas aponta-lhhe a contradição entre a lei dinâmica da história e a insistência de que já existe o Inbegriff , o total da verdade absoluta. Censura a tentativa de interpretar a história como desdobramento de uma ideia que alcançou conclusão no presente. Reconhece, portanto, a falácia da gnose histórica: o decurso empírico da história não deve ser interpretado como o desdobramento da Ideia.
Mas Engels engana-se redondamente ao argumentar que o processo da história, por natureza, não encontra conclusão natural mediante a descoberta de uma verdade absoluta. Pelo contrário, esse seria o único modo possível de encontrar uma conclusão para o decurso empírico da história; pela mesma razão, a história não é fechada mas permanece processo transcendental. A falácia desta gnose consiste na imanentização da verdade transcendental. Se quissesse dizer a verdade, Engels deveria afirmar que o fim-da-história imanentista não pára a historia e, portanto, não deve ser usado. Mas para Engels apenas a realidade empírica tem significado como desdobramento da ideia mas sem a conclusão, um eterno fluxo de Heraclito. A realidade hegeliana do desdobramento da ideia é abolida e fica só a realidade empírica como se fosse uma Ideia. Do mesmo modo se explica a incompreensão do problema de Hegel por parte de Marx como-se-fossedeliberada. Arrasta-se o significado da ideia para a realidade, sem encontrar o problema da metafísica da ideia.
A confusão entre realidade empírica e a realidade da Ideia arrasta a dialéctica da ideia para a realidade empírica. O marxiano apresenta o filósofo como uma criança da escola que ainda acredita na conclusividade dos sistemas metafísicos. Mas então o marxismo não seria também um dia ultrapassável ? Na confusão em que Engels se move, as dificuldades deste género são ultrapassáveis pelo simples esquecimento. Cem páginas adiante, Engels reconhece que Hegel descobriu que o decurso da história é a realização da liberdade; Hegel compreendeu que a liberdade é a intuição da necessidade."A necessidade é cega apenas enquanto não compreendida". A liberdade da vontade é apenas a capacidade de tomar decisões baseadas em conhecimentos (Sachkentnnis). E a liberdade progride com as descobertas tecnológicas. A máquina a vapor é a promessa da "verdadeira liberdade humana". Que a incarnação do logosseja substitida pela máquina a vapor é bem um sintoma da indisciplina intelectual de Engels, na qual se conjugam várias tendências da desintegração ocidental.
1. A gnose de Marx-Engels difere da de Hegel apenas por afastar um pouco o fim-da-história, para abarcar a curta etapa da revolução.
2. Como só a forma da conclusão intelectual é de Hegel, não a substância, o intelecto programático torna-se o portador do movimento. Há um salto revolucionário para a natureza revolucionada do homem. Elimina-se o bios theoretikos. Só fica o conhecimento do mundo exterior. Quem conhecer o problema do propósito que causa indecisão, será livre. E Lenine, que se baseia mais em Engels do que em Marx, louva aquele no artigo de Enciclopédia em1914 sobre Os Ensinamentos de Marx por transformar a coisa-em-si em coisa-para-nós. É a destruição da substância humana.
3. A fórmula de que a liberdade consiste no domínio do homem sobre a natureza e sobre si próprio, lembra as posições de Littré, Mill e de outros intelectuais positivistas e liberais que são fontes de Engels. Há bastante espaço entre as capas do livro para desenvolver esta especulação pseudológica. Apesar de ter dissolvido a existência humana, Engels ocupa-se da moral cristã-feudal, burguês moderna e da moralidade proletária. Não existe outra ética absoluta a não ser o sistema proletário, tema maior daEndgültigkeit como sistema moral de sobreviver no fim.

2.4. Inversão.
Vimos de que modo o ataque anti-filosófico marxiano, estabelecendo a realidade empírica como objecto de investigação, utiliza um meio linguístico especial; a destruição logofóbica dos problemas filosóficos. Dentro do novo meio de expressão, nada se inverte; a gnose hegeliana é traduzida em especulação pseudológica. A inversão surge numa terceira fase em que o resultado das duas primeiras operações é construido como uma interpretação dos reinos do ser a partir da base da hierarquia ontológica.
Para analisar esta tarefa de Marx, seria aqui necessária uma filosofia da cultura. Seria preciso explicar: 1)A natureza dos fenómenos culturais; 2) Que tais fenómenos podem ser considerados a partir de uma base da existência, por exemplo, a matéria; 3 )E finalmente, o que é esta base da existência. Marx só fornece a fórmula de que a consciência é condicionada pela existência. Surgem ainda passagens sobre "ideologia". KPO pp.lv e ss. As revoluções começam na esfera económica e arrastam a superestrutura. Se isso significa que o conteúdo da cultura mais não é senão luta pelo domínio da esfera económica, não é verdade.
Em relação à base do fundo da existência, veja-se a nota 89 deO Capital,1 sobre a tecnologia. A história dos elementos produtivos é mais relevante e mais fácil que a história das plantas e dos animais de Darwin porque, como afirma Vico, foi o homem que fez a história do homem. A tecnologia revela o comportamento do homem perante a natureza e portanto as concepções mentais, geistigen Vorstellungen, que delas provêm. É também mais fácil encontrar o cerne terreno das religiões, do que ir pelo caminho oposto e desenvolver as formas tornadas celestiais,"verhimmelten Formen" fora da relação com a vida. Um dos defeitos donaturwissenschaftenlichen Materialismus é excluir o processo histórico. Marx critica pois a história psicologizante que se reduz aos motivos terrenos das religiões. As religiões têm motivos económicos, como se lê no Anti-Dühring, p.31: é preciso um princípio. E são estas as ideias que abalam o mundo ?


A IDÉIA DA UNIVERSIDADE E AS IDÉIAS DAS CLASSES MÉDIAS - OTTO MARIA CARPEAUX


3. 


Jamais esquecerei o dia em que entrei pela primeira vez, com toda a ingenuidade dos meus dezoito anos, no solene recinto da Universidade da minha cidade natal. Um pórtico silencioso. Nas paredes viam-se os bustos dos professores que ali estudaram e ensinaram; no busto de um helenista lia-se a inscrição: "Ele acendeu e transmitiu a flâmula sagrada"; e no busto de um astrônomo: "O princípio que traz o seu nome ilumina-nos os espaços celestes." No meio do pátio, num pequeno jardim, sob o ameno sol de outono, erguia-se uma estátua de mulher nua, com olhos enigmáticos: a deusa da sabedoria. Silêncio. Não esquecerei nunca.
A decepção foi muito grande. Via a biblioteca coberta de poeira, os auditórios barulhentos, estupidez e cinismo em cima e em baixo das cadeiras dos professores, exames fáceis e fraudulentos, brutalidades de bandos que gritavam os imbecisslogans políticos do dia, e que se chamavam "acadêmicos".
A última vez que passei perto deste "templo das Musas", o edifício estava fechado; os estudantes haviam-se juntado a uma imensa manifestação popular. Sabia muito bem o que isso significava para mim: um adeus para sempre. Olhando pelas frestas das portas monumentais — estávamos na primavera — via sob a luz branda do sol os pórticos, as velhas pedras, o jardim, e a deusa nua, tendo nos lábios o sorriso enigmático da morte. E reconheci um fim definitivo.
Por toda parte, as universidades são doentes, senão moribundas, e isto é grande coisa. Os iniciados bem sabem que não é esta uma questão para os pedagogos especializados. Das universidades depende a vida espiritual das nações. O fim das universidades seria um fim definitivo. O abismo entre o progresso material e a cultura espiritual aumenta de dia para dia, e as armas desse progresso nas mãos dos bárbaros é fato que clama aos céus. Os edifícios das universidades resistem ainda, e neles trabalha-se muito, demais, às vezes, mas o edifício do espírito, esta catedral invisível, está ameaçado de cair em ruínas. Em tempos mais felizes a sueca Ellen Key dizia com sutileza: "Cultura é o que nos resta depois de termos esquecido tudo quanto aprendemos." E, deste modo, somos riquíssimos de saber e mendigos de cultura. Hoje em dia Herbert George Wells pode dizer: "We are entered in a race between education and catastrophe." "Entramos numa corrida entre educação e catástrofe." Aí está a questão da Universidade.
Quem é o culpado? Evidentemente, é inadmissível simplificar uma discussão de tal envergadura. Acusa-se o Estado por ter-se intrometido, e acusa-se o Estado por não se intrometer. Acusam-se os professores por mergulharem nos ensinos profissionais e descuidarem-se da ciência desinteressada, e acusam-se os professores por mergulharem na ciência pura sem saberem ensinar. Aqui, queixam-se de as universidades não fornecerem elites, de que a nação tem necessidade; ali, queixam-se de que as universidades fornecem elites demais, um proletariado intelectual. Abundam os remédios propostos. Desejam salvar as universidades pela separação entre as instituições puramente científicas e os institutos de ensino, o que agravaria o problema em vez de o resolver: a ciência seria, assim, afastada da vida, e o ensino entregue à rotina. Falham, igualmente, as tentativas mais bem pensadas de curar a doença infundindo uma nova crença ou uma velha fé: teremos os mesmos estudantes, os mesmos bacharéis, os mesmos doutores que antes, e as suas boas crenças não resolverão a doença da Universidade. Porque não cabe à Universidade formar crentes nem sequer sugerir convicções, mas dar ao estudante capacidade para escolher a sua convicção. Já abundam os homens cegamente convictos, muito "práticos", "úteis" para os serviços do Estado, da Igreja, dos partidos e das empresas comerciais. Pode ser que todas essas instituições lamentem, em breve, a abundância de homens convictos e a falta de homens livres. Então, acusar-se-á amargamente o utilitarismo das universidades modernas. O utilitarismo é o inimigo mortal da Universidade.
Mas o que quer dizer "prático", "útil"? A resposta não é tão simples. Por felicidade os poderosos deste mundo introduziram um novo ponto de vista, ao qual julgo que devemos algumas perspectivas novas.
Para a mentalidade média do nosso tempo a utilidade das ciências é determinada segundo as aplicações práticas: a física e a química, que nos forneceram a luz elétrica e os gases asfixiantes, são as ciências úteis; a história e a filosofia, que não nos fornecem nada, são ciências "inúteis". Apelo desta sentença para a sabedoria de certos homens práticos, que disso entendem muito bem. Certos regimes, ditos totalitários, acharam indispensável regular pela força o estudo das ciências, cujas conseqüências práticas poderiam abalar estes regimes. Ora, que vemos nós, com surpresa? Estes regimes não se ocupam, absolutamente, com as ciências "práticas", a física e a química, que continuam bem tranqüilas. Mas as ciências totalmente inúteis, a história, a filosofia, os estudos literários, são justamente as favoritas dos regimes totalitários, que as abraçam até sufocá-las. É digno de nota.
Mas o que é ainda mais notável é uma certa coincidência. Sabemos que a Universidade, Universitas Litterarum, é uma criação da Idade Média. Ora, os ditos regimes não se ocupam com as ciências naturais, que a Idade Média conhecia pouco, e que se juntaram mais tarde à Universidade. Tratam somente das "velhas" ciências, das Litterae, que na Idade Média já eram conhecidas, e que formam a verdadeira alma da Universidade. Está claro. Foram justamente estas Litterae que formaram os caracteres das nações; e aquele que desejar transformar uma nação deverá transformá-las integralmente. Eles sabem o que é uma universidade.
A história das universidades é a história espiritual das nações. A França medieval é a Sorbonne, cujo enfraquecimento coincide com a fundação renascentista do Collège de France, e cujo prolongamento moderno é a École Normale Supérieure. A Inglaterra, mais conservadora, é sempre Oxford e Cambridge. A Alemanha luterana é Wittenberg e Iena; a Alemanha moderna é Bonn e Berlim. As velhas universidades são de utilidade muito reduzida. Elas não fornecem homens práticos; formam o tipo ideal da nação: o lettré, o gentleman, o Gebildeter. Elas formam os homens que substituem, nos tempos modernos, o clero das universidades medievais. Elas formam os clercs.
As universidades americanas têm a mesma origem. As velhas universidades da América Latina — Lima, México, Bogotá, Córdova — são fundações da Coroa de Espanha; mas foram, desde o início, confiadas aos frades, e já a primeira cédula de fundação, a ordem real do imperador Carlos V, de 21 de setembro de 1551, dá claramente a entender o sentimento da responsabilidade perante o espírito, o espírito desinteressado da Universidade medieval: "Para servir a Deus, Nosso Senhor, e ao bem público de nossos reinos, convém que nossos vassalos, súditos e naturais tenham Universidades e Estudos Gerais em que sejam instruídos e titulados em todas as ciências e faculdades, e pelo muito amor e vontade que temos de honrar e favorecer aos de Nossas Índias, e desterrar deles as trevas da ignorância, criamos, fundamos e constituímos na cidade de Lima dos reinos do Peru, e na cidade de México da Nova Espanha, Universidades e Estudos Gerais." Nada mais eloqüente, admirável, do que semelhantes termos haverem sido empregados quando os puritanos fundaram, em 1636, a primeira universidade da América inglesa, a de Harvard: "After God had carried us safe to New England, and we builded our houses and settled the Civil Government; one of the next things we looked after was to advance Learning and perpetuate it to Posterity, dreading to leave an illiterate Ministery to the Churches, when our present Ministers shall lie in the dust"(New England’s First Fruits, 1643). ("Depois que Deus nos tinha seguramente conduzido a Nova-Inglaterra, e que construímos as nossas casas e estabelecemos um governo civil, uma das nossas primeiras ocupações foi estimular o ensino e perpetuá-lo para a posteridade, com receio de deixar às igrejas um clero iletrado quando os nossos clérigos atuais jazerem em pó.")
O que resta destas Universitates Litterarum? O nome. Já não formam lettrés, nem gentlemen, nem Gebildeter; formam médicos, advogados, professores. As universidades tornaram-se lugares de investigações científicas; e é um romantismo utilitário que vem muni-las das asas do progresso. Não há maisclercs, só há estudantes.
Quem é o culpado? Ainda uma vez apelo para aqueles que disso entendem. Por toda parte onde há aqueles regimes os estudantes estão nas vanguardas da violência. Não é um acaso. Ouso responder: os estudantes são os culpados.
Há duas espécies de estudantes: chamá-las-emos os "ricos" e os "pobres", sublinhando que há pobres entre os "ricos" e ricos entre os "pobres"; são apenas duas expressões cômodas para abraçar uma generalização inevitável. Os estudantes "pobres" são aqueles que estudam "para a manteiga e para o pão"; estudam para se assegurarem um melhor sucesso na luta pela vida. Seria cruel e estúpido censurá-los. Antes, devemos admirá-los, em virtude dos sacrifícios, muitas vezes imensos, feitos por eles e seus pais para melhorar um futuro incerto e tornar a existência mais digna. Todavia, importa não se dissimularem os graves inconvenientes. Estudantes "pobres", há muitos deles: vivem embaraçados pela miséria, pelas ocupações acessórias para ganhar a vida; sobretudo têm pressa de terminar os estudos. Junte-se a isto a benevolência, plenamente justificável, que os examinadores lhes devem como recompensa dos seus esforços. Em suma, o nível baixa sensivelmente. O nível baixa, dizemos, até o nível dos estudantes "ricos". São estes os que têm necessidade de um grau acadêmico, porque o pai tem um, porque isto dá certa consideração na sociedade ou para adornar fortuna um pouco recente. Entre os estudantes "ricos" existem os pobres que desejam manter penosamente o standard de uma família em decadência, o que é, aliás, muito louvável. Existem outros verdadeiramente ricos, que não têm necessidade de estudar, mas que através dos estudos testemunham grande respeito às ciências; e estas, por sua vez, precisam deles, para subsistir materialmente. Em todo caso, os seus estudos não são de necessidade absoluta; eles não estudam mais do que o necessário, o indispensável para passar nos exames; os esforços ulteriores parecem-lhes ridículos. E são eles que, pela sua situação social, determinam o nível geral. E esse nível é a morte da Universidade.
Queixam-se de que as universidades já não fornecem elites. Sim, mas em compensação fornecem verdadeiras massas, porque as ciências modernas e suas investigações têm menos necessidade de cérebros que de batalhões de estudantes; e para isto eles satisfazem. A inteligência que é precisa para estudar uma profissão, mesmo acadêmica, não é tão grande como os leigos imaginam. Há vários séculos um sábio inglês, o cônego dr. Copleston, fellow do Ariel College, em Oxford, predizia: "Ainda que a ciência seja favorecida por essas concentrações de inteligência a seu serviço, os homens que se encerram nas especializações têm a inteligência em regresso" (citado pelo cardeal Newman, The Idea of a University, p. 72). É o regredir de uma elite à condição de massa ornada de títulos acadêmicos.
É preciso que se digam, aqui, algumas verdades muito impopulares e muito desagradáveis. Existe Inteligência e existem "intelectuais". Intelectuais são os médicos, os advogados, os funcionários superiores de toda espécie, os especialistas científicos de toda sorte. Mas deve-se dizer que somente uma parte desses "intelectuais" pertence à Inteligência, que é, por seu lado, o resto dos clercs, da elite de outrora. Sejamos sinceros: podemos ser bom médico, bom advogado, bom professor, e ter o espírito preso aos limites da profissão; e sabemos que o grau acadêmico nem sequer é sempre a garantia de boas qualidades profissionais. Mas ele confere sempre uma autoridade social. José Ortega y Gasset caracterizou essa nova espécie de intelectuais, violentamente, mas sinceramente: "Nuevo bárbaro, retrasado con respecto a su época, arcaico y primitivo en comparación con la terrible actualidad de sus problemas. Este nuevo bárbaro es principalmente el profesional más sabio que nunca, pero más inculto también — el ingeniero, el médico, el abogado, el científico" (Misión de la Universidad, Obras, p. 1289).
O fato central da nossa época é a violência generalizada a todos os setores da vida pública, a violência que pretende substituir o espírito no seu papel guiador das massas. Dessas massas que os pensadores políticos muitas vezes confundem com o proletariado econômico. Sim, mas o espírito proletário, o espírito da reação violenta contra certas condições econômicas e sociais, não está exclusivamente ligado às massas obreiras; participam dele todas as "massas", como fenômenos sociológicos, e a massa dos intelectuais também. É o fato central da nossa época: as classes médias, mesmo antes de serem proletarizadas, mesmo justamente para evitar a ameaça da proletarização, transformam-se em massas proletárias. E esta proletarização interior é um fenômeno da educação. Chama-se "classes médias" o problema central da nossa época. O livro mais bem documentado que conheço sobre o fascismo,Fascisme et grand capital, de Daniel Guérin, apresenta a tese de que o fascismo é a última expressão do grande capitalismo. Tese errônea. Provando irrefutavelmente que o grande capital se serviu do fascismo para bater o movimento trabalhista, Guérin esquece-se de concluir que o instrumento se mostrou, enfim, mais forte do que o mestre, e que os operários e os capitalistas perderam, juntos, a liberdade de movimento, pela ação deste inimigo de ambos — as classes médias. Fato fundamental do nosso tempo: o fascismo propaga-se e vence através das classes médias, das quais é a expressão triunfal.
O fascismo foi impossível na Rússia. É também um fato fundamental que a Rússia não conheceu, não teve uma classe média. Ora, seguindo a corrente da época, o bolchevismo criou uma classe média. A burocracia soviética, os stakhanovistas e outras camadas privilegiadas do operariado não são outra coisa senão uma nova classe média. Considerando, nos outros países, a ascensão de camadas igualmente novas, que o século XIX ainda não conhecia, verdadeiros exércitos de empregados privados, de funcionários públicos, de pequenos empresários, todos formados num regime de ensino secundário ou superior muito facilitado, essas massas de homens, todos mais ou menos educados, essas multidões de "pequenos intelectuais"; considerando essas multidões de homens novos, nem capitalistas nem trabalhistas, que Karl Marx não podia prever, deve-se precisar o pensamento: o fascismo e o bolchevismo têm o lado comum de serem expressões das novas classes médias. E a ideologia que permite explicar o espírito das novas classes médias é a ideologia pequeno-burguesa, violentamente revolucionária e antiintelectualista.
Explica-se, por isso, que Georges Sorel, o pai espiritual comum do fascismo e do bolchevismo, Georges Sorel, o ideólogo da violência, seja um homem profundamente pequeno-burguês, representante típico das classes médias francesas, preocupado com a decadência das "autoridades sociais", que ele concebeu fielmente no espírito conservador de Le Play; preocupado, enfim, com a decadência vital da raça latina, pela qual ele responsabiliza violentamente a Inteligência; ao espírito ele prefere a vitalização pelos instintos bárbaros da massa.
Fica-se a admirar que Sorel fale em decadência, na França dos Taine e Bergson, dos Flaubert e Proust, dos Mallarmé e Claudel, dos Degas e Cézanne, dos Rodin e Debussy, dos Pasteur e Henri Poincaré, numa das épocas mais magníficas do espírito francês. Mas é por isso mesmo. Sorel é violentamente antiintelectualista. Vê no espírito e suas obras o grande obstáculo da volta ao primitivo. Neste ponto, Sorel parece sobretudo "moderno", contemporâneo de nós outros. É a hostilidade ao espírito que liga Sorel diretamente às novas classes médias.
No pensador revolucionário Sorel não se viu o conservador, o representante das classes médias. O mal-entendido correspondente não viu nas novas classes médias as possibilidades revolucionárias. Durante um século, o século XIX, esqueceu-se que a classe média fizera a Grande Revolução. Via-se na classe média a classe essencialmente conservadora, a portadora mesma das tradições humanísticas, e ela o era enquanto os princípios consolidados da Revolução Francesa abrigavam a classe média contra as ameaças do grande capitalismo e do movimento socialista. Isto, porém, acabou. Chegou o dia de uma nova classe média, pronta a vencer por uma nova revolução violenta ou, como na Rússia, triunfar contra um regime obsoleto. Foi Sorel quem emprestou às novas classes médias a ideologia revolucionária.
Poder-se-ia acreditar que os grandes obstáculos dessa revolução fossem os capitalistas e os trabalhadores, ou, na Rússia, um regime milenário e eclesiasticamente consolidado. Engano. Vimos a fraqueza incrível do regime tzarista, a derrota fácil dos socialistas, o suicídio dos capitalistas. O verdadeiro obstáculo — e Sorel o previra bem — era a Inteligência. É ela que merece as diatribes mais cruéis dos chefes e dos caudilhos. Para a vitória final, precisa-se acabar com a Inteligência.
Como? Não é a classe média o principal agente dos movimentos espirituais? Sim, é, ou melhor, foi. O século XIX, o século liberal, abre a todos todas as possibilidades. A educação superior é o caminho da ascensão. A preeminência da classe média no século XIX baseia-se na sua cultura universitária. Mas o século XX acaba com isso. O grande capitalismo precisa mais de exércitos de pequenos empregados do que de self-made men; as profissões liberais estão superlotadas; o movimento socialista repele os que resistem à proletarização e suas humilhações e privações. Privada dos privilégios da Inteligência, a classe média quebra furiosamente o instrumento, como uma criança quebra o brinquedo insubmisso. É uma criança essa nova classe média; mas uma criança perigosa, cheia dos ressentimentos dos déclassés, furiosa contra os livros que já não sabe ler e cujas lições já não garantem a ascensão social. Está madura para a violência.
A violência é o fenômeno "espiritual" central das novas classes médias e da nossa época; significa a determinação de empregar todas as armas, todas as que o esforço do espírito criou, para conseguir um fim material: a salvação social da classe. Não se admitem outros fins. Ridiculizam ou anatematizam todos os esforços independentes, desinteressados, do espírito. Admiram a especialização útil do "intelectual de profissão", e banem o humanismo do "professor". A violência antiintelectualista das novas classes médias é, afinal, uma falta de educação, ou, antes, o fruto de uma falsa educação. Fruto da falsa idéia que as classes médias formavam da Universidade: da nova Universidade, que fornece exércitos de médicos, advogados e técnicos, em vez de clercs, de uma elite.
O problema capital do nosso tempo, o problema da elite, é, no fim das contas, um problema de pedagogia humanística. Existe mesmo, hoje, política que consiste na exterminação das elites pelas armas dos especialistas. E foi bem preparada: da diminuição das lições latinas existe apenas um passo para a destruição dos livros e dos museus.
O resultado mais freqüente da moderna educação universitária é um decidido adeus aos livros. Mais tarde, combaterão as "línguas mortas" na escola. Enfim, declararão inútil todo o ensino secundário, com as suas idéias vagas e inúteis duma "cultura geral"; talvez toquem, com isso, no ponto nevrálgico da discussão. Todo o problema espiritual dos nossos dias é, pois, um problema de falta de educação humanística, um problema pedagógico; e todo o problema pedagógico dos nossos dias é um problema da escola específica das classes médias, da escola secundária.
Segundo o regime escolar vigente em todos os países, sem exceção, a Universidade dedica-se ao ensino profissional superior, enquanto a "cultura geral" fica reservada ao ensino secundário, aos ginásios e aos liceus. Quer dizer: o ensino da cultura geral limita-se aos jovens de dez a dezoito anos. Depois, a "cultura" termina, e a medicina e a jurisprudência começam, sem nenhuma "cultura geral". Os conhecimentos do ensino secundário empalidecem, naturalmente, com o tempo; mas ainda há coisa pior: todo esse ensino de "cultura geral" é feito ao alcance de jovens de dez a dezoito anos: a história, a filosofia, a literatura, amoldadas ad usum Delphini, e forçosamente puerilizadas. E aí fica. Nunca mais o jovem médico ou engenheiro ouve falar em história, filosofia, literatura, exceto pela imprensa ou pelo rádio, que se colocam ao alcance do espírito das grandes massas, pueris por natureza. Resultado: um espírito artificialmente preservado no estado pueril com uma formação profissional superposta. Conheço bem as numerosas exceções que felizmente existem. Mas, em geral, estas massas graduadas se distinguem dos iletrados somente por uma autoridade profissional que as torna menos úteis que perigosas. Ainda uma vez cito Ortega y Gasset: "La peculiarísima brutalidad y la agresiva estupidez con que se comporta un hombre, cuando sabe mucho de una cosa y ignora de raíz todas las demás" (O. C., p. 1291). Eles, porém, os iletrados, têm sempre razão, porque são muitos e ocupam um lugar de elite, esse "proletariado intelectual", sem dinheiro ou com ele, isso não importa. Julgam tudo, e tudo deles depende. Lêem os livros e decidem sobre os sucessos de livraria, criticam os quadros e as exposições, aplaudem e vaiam no teatro e nos concertos, dirigem as correntes das idéias políticas, e tudo isto com a autoridade que o grau acadêmico lhes confere. Em suma, desempenham o papel de elite. São os nouveaux maîtres, osseñoritos arrogantes, graduados e violentos; e nós sofremos as conseqüências, amargamente, cruelmente.
"We are entered in a race between education and catastrophe." Wells tem muita razão. Mas é de grande importância datar a desgraça. Esta catástrofe irrompeu sob o signo do progresso, e o progresso ilimitado, muito do gosto de um Wells, cavará mais profundamente o abismo. O verdadeiro caminho é a volta.
Temos mais uma vez "a disputa do medievalismo". Uma coisa fica, porém: a Universidade é uma criação da Idade Média. Todas as universidades medievais são, por princípio, instituições "clericais": elas formam os clercs. O restabelecimento das universidades "clericais" é uma restauração de tradições.
Quatro ou cinco faculdades reunidas não constituem ainda uma universidade. Elas não criam esta "convivence of sciences, which forms a philosophical habit of mind",1 de que fala o cardeal Newman. Não se trata destas ciências ou daquelas profissões. Trata-se do espírito comum que as anima, do espírito filosófico, antiutilitário, desinteressado, que as nossas universidades perderam, e que é a própria Idéia de Universidade. Derrubemos, pois, este estado de coisas. É ao ensino secundário que cabe o preparo do ensino profissional, dispensado nos hospitais e na magistratura. Em conclusão, é à Universidade que incumbe a formação do espírito da "clericatura".
Voltemos aos estudantes: o seu utilitarismo, mais perigoso que o das ciências, perdurará enquanto a freqüência das universidades for a chave para as posições de mando na sociedade. Verdadeiramente, o oposto deste utilitarismo é o desinteresse, no qual Newman via o espírito e a idéia de universidade, o espírito do clero universitário medieval, que se sentia independente do mundo e somente responsável perante Deus. Sem tais padres o altar fica vazio e o culto abandonado. Poderia chegar o dia em que ninguém compreenderia mais as fórmulas nem os poemas, em que os quadros de Rembrandt seriam pedaços de tela e as partituras de Beethoven farrapos de papel; dia da barbaria, em que a história humana se transformaria, pela sucessão de desgraças, num formigueiro mal organizado. E este dia talvez já esteja mais próximo do que realmente pensamos. "Somos a última reserva, fiquemos conscientes disto" — dizia Hugo Ball. Fiquemos conscientes,"dreading to leave an illiterate Ministery to the Churches, when our present Ministers shall lie in the dust".