quinta-feira, 28 de abril de 2016

A IDEOLOGIA DE GÊNERO PREJUDICA AS CRIANÇAS - Michelle A. Cretella, M.D. Presidente do Colégio Americano de Pediatria


 

 

Introdução: O texto abaixo, um position statement do Colégio Americano de Pediatras, é uma das primeiras manifestações de uma entidade científica respeitada que rompe o bloqueio da ideologia de gênero e sua “narrativa sagrada” que não admite discussões, menos ainda dissenções explícitas. Este não é um texto político ou ideológico, apenas técnico, baseado em conceitos estabelecidos pela prática médica.
A ideologia de gênero é uma falácia do argumento feminista, segundo o qual o gênero seria uma mera construção cultural. Quando a maioria das sociedades científicas e psicológicas se rende à nefasta ideologia de gênero, são os pediatras que vêm mostrar a crua realidade da infância, da puberdade e da adolescência e as mentiras dos defensores da transgeneralidade. 
Creio de bom alvitre publicá-lo com meus esclarecimentos para o público leigo e comentários pertinentes. A tradução do original é de William Uchoa e os esclarecimentos e comentários estão entremeados no texto (em itálico). 
Position Statements of the College

O Colégio Americano de Pediatras insta educadores e legisladores a rejeitarem todas as políticas que condicionam as crianças a aceitarem como normal uma vida de personificação química e cirúrgica do sexo oposto. Fatos - não ideologia - determinam a realidade.
1. A sexualidade humana é uma característica biológica binária objetiva: "XY" e "XX" são marcadores genéticos de saúde – não marcadores genéticos de um distúrbio. A norma para o projeto humano deve ser concebida como macho ou fêmea. A sexualidade humana é binária por princípio, com a finalidade óbvia de reprodução e florescimento de nossa espécie. Este princípio é auto-evidente. Os distúrbios extremamente raros de diferenciação sexual (DSD - disorders of sexual differentiation), incluindo, mas não limitados, à feminização testicular e hiperplasia adrenal congênita, são todos desvios medicamente identificáveis da norma binária sexual, e são justamente reconhecidos como distúrbios do projeto humano. Indivíduos com DSDs não constituem um terceiro sexo.
HP – A feminização testicular, mais corretamente chamada de síndrome de insensibilidade androgênica (AIS) verifica-se quando uma pessoa geneticamente do sexo masculino (tem um cromossoma X e um cromossoma Y) é resistente aos hormônios masculinos chamados andrógenos. Como resultado, a pessoa possui algumas ou mesmo todas as características físicas de uma mulher, apesar de possuir a composição genética de um homem.
Hiperplasia adrenal congênita: distúrbio hormonal uma mutação genética, que provoca produção demasiada de andrógenos no feto. Em indivíduos do sexo feminino, causa uma masculinização da genitália externa e aumento do clitóris. Indivíduos do sexo masculino afetados possuem genitália externa normal e o diagnóstico pode não ser feito na primeira infância. Entretanto, o excesso de hormônio, em ambos os sexos, leva a um crescimento rápido e maturação esquelética prematura.
Certamente é auto-evidente que não constituem um sexo aparte, mas é preciso ter olhos adequados para perceber o óbvio. Quando a mente está bloqueada por um distúrbio ideológico, o óbvio se torna obscuro. A tomada da mente pela ideologia feminista impede seu uso dentro de limites razoáveis. A falsa concepção precisa ser “comprovada” a todo custo, forçando e suprimindo a realidade.
2. Ninguém nasce com um gênero. Todos nascemos com um sexo biológico. Gênero (uma consciência e senso de si mesmo como homem ou mulher) é um conceito sociológico e psicológico não um conceito biológico objetivo. Ninguém nasce com a consciência de si mesmo como masculino ou feminino esta consciência se desenvolve ao longo do tempo e, como todos os processos de desenvolvimento, pode ser prejudicada por percepções subjetivas, relacionamentos e experiências adversas que ocorrem desde o início da vida, o período de recém-nascido. As pessoas que se identificam como "sentindo a si mesmos como se fossem do sexo oposto" ou "em algum lugar entre os dois sexos" não pertencem a um terceiro sexo. Permanecem homens biológicos ou mulheres biológicas.
HP – Neste ponto recordo a assertiva de Olavo de Carvalho, com a qual concordo inteiramente: “quando um conservador diz que o sexo é um fato biológico, mas o gênero é apenas uma categoria sociológica, ele só mostra o quanto o seu cérebro já foi dominado pela linguagem do adversário. Gênero não é nem nunca foi uma categoria sociológica. É uma categoria meramente gramatical à qual se pretende, pela propaganda repetida, dar uma dimensão sociológica”.
Segundo Roger Scruton, “evado ao extremo – e o feminismo leva tudo ao extremo – a teoria reduz o sexo a uma mera aparência, com o gênero como realidade. Se, depois de ter forjado sua verdadeira identidade de gênero, você encontra-se alojado no tipo errado do corpo, então é o corpo que tem de mudar. Se você acredita ser uma mulher, então você é uma mulher, não obstante o fato de você ter o corpo de um homem. Daí que os médicos [deveriam] observar as operações de mudança de sexo como uma violação grosseira do corpo e, na verdade uma espécie de agressão (...)” 
[*]
3. A crença de uma pessoa que ele ou ela é algo que eles não são é, na melhor das hipóteses, um sinal de pensamento confuso. Quando um menino biologicamente saudável acredita que ele é uma menina ou uma menina biológica, biologicamente saudável, acredita que ela é um menino, um problema psicológico objetivo existe e está na mente não no corpo, e deve ser tratado como tal. Estas crianças sofrem de Disforia de Gênero (GD), anteriormente conhecida como Transtorno de Identidade de Gênero (GID), transtorno reconhecido pela mais recente (a quinta) edição do Manual de Diagnóstico e Estatística da Associação Psiquiátrica Americana (Diagnostic and Statistical Manual of the American Psychiatric Association (DSM-V). As teorias psicodinâmicas e sociais do GD / GID nunca foram refutadas.
HP - Absolutamente correto, mas os autores suspendem seus argumentos na “melhor das hipóteses”, não vão às últimas consequências. Quando uma pessoa sente que é algo que não é, afirma ser aquilo que “sente” ou deseja ser, a ponto de comportar-se com sendo, estamos frente a um grave distúrbio mental e não apenas um “pensamento confuso”. É claro que existem gradações, como veremos adiante a respeito da adolescência, mas se este distúrbio se instala de forma permanente, estamos vendo um delírio alucinatório, um quadro psicótico. Estes estados delirantes são difíceis de tratar e, tal como o distúrbio correlato da homossexualidade, se tornaram modernamente quase impossíveis, pois dada a pressão dos movimentos LGBT sobre os órgãos profissionais, os últimos podem ser processados por homofobia e se expor a processos judiciais e a toda sorte de ofensas e ataques, inclusive físicos. A psiquiatria cria belos nomes, como Disforia de Gênero ou Transtorno de Identidade de Gênero, para tentar negar o inegável: o grave distúrbio psicótico. 
4. A puberdade não é uma doença e o bloqueio de hormônios da puberdade pode ser perigoso. Reversíveis ou não, o bloqueio de hormônios induz a um estado patológico – a ausência de puberdade – e inibe o crescimento e fertilidade em uma criança antes biologicamente saudável.
5. De acordo com o DSM-V, cerca de 98% de meninos e 88% de meninas confusas com o gênero, aceitam seu sexo biológico após passarem naturalmente pela puberdade.
6. Crianças que usam bloqueadores da puberdade para personificar o sexo oposto vão exigir hormônios do sexo oposto (cross-sex hormones) no fim da adolescência. Os hormônios do sexo oposto estão associados a riscos perigosos para a saúde incluindo, mas não se limitando, a aumento da pressão arterial, formação de coágulos sanguíneos, acidente vascular cerebral e câncer.
HP – (Comentários aos itens 4, 5 e 6): hormônios bloqueadores da puberdade que impedem o desenvolvimento normal têm sido largamente utilizados para suprimir a puberdade, alterando as características sexuais secundárias em crianças que sentem que seus corpos não correspondem às suas fantasias sexuais. O objetivo da supressão da puberdade é preparar a criança para uma vida transgenérica totalmente artificial com graves danos à sua personalidade.
É preciso um esclarecimento para os leitores leigos na matéria.
Em torno dos 11 anos nos meninos e 10 nas meninas a glândula pituitária libera dois hormônios: o luteinizante (LH) e o folículo estimulante (FSH). O aumento destes hormônios estimula as glândulas sexuais a produzirem hormônios sexuais: os testículos produzem a testosterona e os ovários os estrogênios. São estes hormônios que levam às modificações típicas que ocorrem na puberdade.
O bloqueio da puberdade ocorre quando são administrados agentes do tipo gonadotropin-releasing hormone analogs (GnRHa) (Leuprolide ou Depot Lupron e Supprellin ou Acetato de Histrelina -  este, um implante sob a pele da parte interna do braço), que bloqueiam a liberação de LH e FSH pela pituitária, o que interrompe a liberação da testosterona pelos testículos ou dos estrogênios pelos ovários. Portanto, estes agentes suprimem a puberdade e o aparecimento das características sexuais secundárias. 
O uso terapêutico destes supressores é indicado em casos de puberdade precoce e em certos tipos de câncer sensíveis à terapia hormonal.
Mas trata-se aqui do uso em jovens “transgêneros” para suprimir as mudanças endógenas da puberdade, as quais muitas vezes pioram a “disforia ou distúrbio da identidade de gênero”, condição em que a pessoa sente que sua identidade de gênero é incompatível com seu sexo biológico real. Isto, no mundo real, significa delírio corporal psicótico. Não sendo exposto aos hormônios sexuais adequados acrescentando-se hormônios do sexo oposto (cross-sex hormones) torna mais fácil atingir a “aparência física desejada”. Também são utilizados em indivíduos adultos no processo de “transição de gênero” com concomitante aplicação de hormônios do sexo oposto. Um contato com a realidade da amputação física e mental de uma parte essencial do desenvolvimento humano e a decepção daí decorrente poderá ter como consequência o exposto no próximo item.
7. As taxas de suicídio são vinte vezes maiores entre os adultos que usam hormônios do sexo oposto e se submetem à cirurgia de mudança de sexo, mesmo na Suécia, que está entre os países mais afirmativos de LGBQT. Que pessoa compassiva e razoável condenaria crianças a este destino, sabendo que após a puberdade 88% das meninas e 98% dos meninos acabarão por aceitar a realidade e alcançarão um estado de saúde física e mental?
8. Condicionar crianças a acreditar que uma vida inteira de representação química e cirúrgica do sexo oposto é normal e saudável, é abuso infantil.Endossar discordância de gênero como normal através da educação pública e políticas legais confundirá as crianças e os pais, levando mais crianças a buscar as "clínicas de gênero", onde lhes serão dados medicamentos bloqueadores da puberdade. Isto, por sua vez, praticamente garante que eles vão "escolher" uma vida inteira de hormônios do sexo oposto, cancerígenos e tóxicos, e provavelmente considerar desnecessária a mutilação cirúrgica de suas partes do corpo saudáveis quando adultos jovens.
Michelle A. Cretella, M.D.
Presidente do Colégio Americano de Pediatria
Quentin Van Meter, M.D.
Vice-Presidente do Conselho Americano de Pediatria
Endocrinologista Pediátrico
Paul McHugh, M.D.
Professor Universitário de Psiquiatria da Universidade Johns Hopkins Medical School, detentor de medalha de distinguidos serviços prestados e ex-psiquiatra-chefe do Johns Hopkins Hospital
[*] As considerações de Scruton, altamente recomendáveis, pode ser encontradas em seu artigo Refutando o radicalismo feminista e a ideologia de gênero

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Pedaladas fiscais e devido processo legal - Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.




    Sob o título "As pedaladas fiscais, a defesa da administração, a proporcionalidade na sanção e o devido processo legal", o artigo a seguir é de autoria de Rogério Tadeu Romano, advogado e procurador regional da República aposentado.
    ***
    Cerca de 35% dos valores envolvidos nas manobras cometidas pelo governo federal que ficaram conhecidas como pedaladas fiscais estão relacionados a financiamentos subsidiados para empresas e produtores rurais de médio e grande porte. Os dados contrariam a versão apresentada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pela presidente Dilma Rousseff segundo a qual as pedaladas -aventadas como motivo para o impeachment da petista- foram destinadas a pagar programas sociais como o Bolsa Família.
    O artifício consistiu em utilizar recursos dos bancos públicos para o pagamento de despesas da alçada do Tesouro Nacional. Com isso, os balanços do governo apresentaram, durante o ano passado, resultados artificialmente melhores, driblando a necessidade de cortar gastos. De acordo com os cálculos do TCU (Tribunal de Contas da União), que reprovou as contas federais de 2014, o expediente retirou indevidamente R$ 40 bilhões da apuração da dívida pública. Dizem que o governo deu "pedaladas fiscais" para salvar o bolsa-família. Noticia-se que não. A maior parte das pedaladas fiscais não foi feita para beneficiar os pobres, mas sim os muito ricos através dos subsídios para as grandes empresas no Programa de Sustentação do Investimento (PSI) do BNDES.
    No Banco do Brasil, os atrasos são dos empréstimos para empresas do agronegócio. Nesses dois bancos se concentra a maior parte da dívida.
    O grande empresariado bateu palmas e fez fila para pegar recursos do PSI. O programa gerou essa dívida de R$ 24,5 bilhões acumulada com o BNDES. Mas o custo não é só esse.
    O PSI é com taxa supersubsidiada. Mas todos os empréstimos do BNDES são com taxas mais baixas do que as que o Tesouro paga. Foram transferidos para o banco, para que ele emprestasse, outros R$ 500 bilhões. Sobre essa dinheirama há custos que continuarão pesando no bolso do contribuinte nos próximos anos, talvez décadas. As despesas do Tesouro para carregar a dívida contraída para transferir recursos para o BNDES ou as contas da equalização de taxas de juros provam que a política econômica do PT se destinou aos mais ricos. O discurso demagógico de pedalada feita para favorecer os pobres é desmentido pelos fatos. O gasto com as grandes empresas foi infinitamente maior do que com os programas de transferência de renda.
    É o que os militares faziam: politica de escolha de grupos vencedores, dinheiro barato financiado por impostos do resto da população, fechamento da economia para reduzir a competição. Quem não se lembra da reserva de mercado na área de hardware e software, que nos conduziram a idade média da tecnologia digital?
    A esquerda falava tanto dos militares e acabou fazendo o mesmo, inclusive um socialismo de estado, á brasileira, com um elevado investimento em empresas estatais em detrimento do setor privado que fica de pires na mão, com orçamentos enviados em viagens permanentes a Brasília para tocar projetos.
    Para se ter uma ideia do que representam essas pedaladas fiscais, a regularização delas, significa um rombo de próximo de R$ 50 bilhões no orçamento, com relação a atrasos no repasse de recursos devidos pelo Tesouro aos bancos públicos vista a meta fiscal para 2015. Os Decretos de abertura de crédito, assinados pela Presidente, estão em flagrante afronta à lei orçamentária, afirma-se.
    O artigo 15 da LRF diz tratar-se de despesa não autorizada, irregular e lesiva ao patrimônio público, criando as condições para a tipificação do crime no artigo 359 do Código Penal.
    No Artigo 10, alínea 4, da Lei de Responsabilidade Fiscal está dito: São crimes de responsabilidade contra a lei orçamentária: 4 - Infringir , patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária.
    No Artigo 11, alínea 3, explicita-se: São crimes contra a guarda e legal emprego dos dinheiros públicos: 3 - Contrair empréstimo, emitir moeda corrente ou apólices, ou efetuar operação de crédito sem autorização legal.
    É importante ressaltar, argumentam consultores do TCU, que as 'pedaladas' foram na verdade instrumento para fraudar a programação financeira e o cronograma mensal de desembolso. Ao omitir pedidos de créditos suplementares cujas despesas se confirmaram em 2014, repetindo o padrão de 2013, ficaria clara a intenção de não incluir tais créditos de despesas obrigatórias na programação financeira para parecer, artificiosamente, haver fôlego financeiro e fiscal para realizar mais despesas discricionárias, que são aquelas que os governos gostam de realizar em ano eleitoral, como os investimentos, pois isso dá voto.
    Sem dúvida, tinha a presidente da república o domínio do fato.
    Veio a notícia de que o governo pagou R$ 72,4 bi de "pedaladas". A operação colocou os argumentos do governo em conflito. No dia 31 de dezembro de 2014, o Tesouro devia cerca de R$ 18,6 bilhões ao FGTS; R$ 20,2 bi ao BNDES; R$ 10,9 bi ao Banco do Brasil. Com a Caixa, ainda havia um débito de R$ 882 milhões. Ao longo do ano, a maior parte da dívida com a Caixa, que chegou a R$ 6 bilhões, já havia sido quitada. Sobre todo esse passivo foi incorporada a atualização monetária. Assim se chegou a R$ 72,4 bilhões.
    Débitos feitos em 2014, carregados por todo 2015 e quitados no último dia útil do ano. Instituições estatais de crédito financiaram o seu controlador. Isso é proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Não cabe mais a discussão se é ou não operação de crédito. Eles mesmos o disseram.
    O que interessa aqui é que houve violação da LRF, lei que consolidou a estabilidade monetária, estabelecendo travas para impedir o retorno ao passado hiperinflacionário.
    A Presidente da República governa, auxiliada por seus ministros. Ela é a principal responsável por essas "pedaladas fiscais" que ainda se constituem em crime de responsabilidade, matéria que deve ser objeto de julgamento de índole politico-criminal, a ser discutida, a seu tempo, pelo Parlamento.
    Praticado crime em afronta à Lei de Responsabilidade Fiscal, o pagamento integral se constitui em verdadeiro arrependimento posterior, desde que obedecidos todos os pressupostos do artigo 16 do Código Penal.
    Tudo isso deve ser considerado dentro de uma eventual juízo de condenação da atual presidente para o caso, se for essa a hipótese a ser trilhada pelos órgãos competentes.
    O Executivo com essa conduta flertou com a improbidade(artigos 10 e 11 da Lei de Improbidade Administrativa), por violação ao disposto no artigo 36 da Lei Complementar 101/00, devendo ainda ser apurada a responsabilidade penal no que concerne a incidência do artigo 359 - A do Código Penal. É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo. Pode-se ainda falar na incidência do artigo 359 - D do Código Penal.
    Há ainda o crime de responsabilidade, nos termos do artigo 11 da Lei 1.079, de 14 de abril de 1950, que envolve a fiel guarda e o legal emprego dos dinheiros públicos e o fato de contrair empréstimo, emitir moeda corrente ou apólices, ou efetuar operação de crédito sem autorização legal. O fato deve ser objeto de investigação pelo Ministério Público Federal para análise da materialidade e autoria delituosa em todas as suas circunstâncias.
    Com a investigação feita deverá se concluir se houve ou não conduta criminosa e suas consequências no Direito Penal. As condutas referenciadas exigem na prática da conduta o dolo.
    Determina o artigo 2º da Lei 1.079/50 que os crimes definidos nesta lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo, com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, imposta pelo Senado Federal nos processos contra o Presidente da República ou Ministros de Estado, contra os Ministros do Supremo Tribunal Federal ou contra o Procurador Geral da República.
    Não há dúvida alguma com relação a aplicação do dolo direto. Somente se realiza o tipo penal através do resultado. No entanto, surgem dúvidas com relação ao chamado dolo eventual. No dolo direto ou determinado, o agente prevê o resultado(consciência) e quer o resultado(vontade). No dolo eventual o agente prevê o resultado(consciência), não quer, mas assume o risco(vontade). O dolo eventual, espécie de dolo indireto ou indeterminado(dolo alternativo ou dolo eventual) distingue-se da culpa consciente, quando o agente não prevê o resultado(que era previsível) e não quer, não assume risco e pensa poder evitar.
    Reportagem do jornal "Valor Econômico" revelou a existência de nota técnica assinada pelo ex-secretário do Tesouro, Arno Augustin, em 30 de dezembro de 2014, em que o então secretário diz ser dele a responsabilidade por fazer a liberação e a transferência de recursos pelo tesouro. Na nota técnica referenciada, redigida pela Coordenadoria Geral de Programação Financeira(Cofin) e pela Subsecretaria de Política Fiscal(Supof), Arno reitera que "cumpre à Supof e à Cofin procederem na operacionalização da liberação/transferência desses recursos, posteriormente à autorização de liberação pelo secretário do Tesouro Nacional".
    A discussão surge dentro do que se intitulou de "pedaladas fiscais", forma de maquilagem identificada na execução da programação financeira do Executivo. Parece, para alguns intérpretes, que tudo teria se passado de forma centralizada pela pessoa do ex-secretário do Tesouro que deteria o domínio do fato.
    Estaria a Presidente da República sem saber do fato e alheia ao que aconteceu a seu redor com relação a todas as suas circunstâncias?
    Fala-se em "cegueira deliberada", que "seria uma espécie de dolo eventual, onde o agente sabe possível a prática de ilícitos no âmbito em que atua e cria mecanismos que o impedem de aperfeiçoar a sua representação dos fato".
    A doutrina lançou o exemplo do doleiro que suspeita que alguns de seus clientes possam lhe entregar dinheiro sujo para operações de câmbio e, por isso, toma medidas para não ter ciência de qualquer informação mais precisa sobre os usuários de seus serviços ou sobre a procedência do objeto de câmbio. Assim é possível equiparar a cegueira deliberada ao dolo eventual, desde que presentes alguns requisitos. Dessa forma é essencial que o agente crie consciente e voluntariamente barreiras ao conhecimento com a intenção de deixar de tomar contato com a atividade ilícita, se ela vier a ocorrer.
    Se ele incorrer em desídia ou negligência, na formação dessas barreiras, não haverá dolo eventual, podendo haver culpa consciente. Alerte-se que a programação financeira e o contingenciamento são matérias de competência do presidente da república e a conduta dolosa que desrespeita os seus preceitos o sujeita a crime de responsabilidade. O crime é próprio de modo que só pode ser cometido por determinada pessoa, tendo em vista que o tipo penal exige certa característica do sujeito ativo.
    É certo que a defesa da Presidente da República que deve ser conduzida independentemente da participação da AGU, deve levar em conta não só essa possibilidade de cometimento de ilícito sob culpa consciente, o que extirparia o crime por falta do elemento típico dolo ou ainda pela inexigibilidade de conduta diversa.
    Damásio Evangelista de Jesus (Comentários à lei de responsabilidade fiscal, São Paulo, Saraiva, 2001, pág. 611) ensinou que poderá haver no crime previsto no artigo 359 - A do Código Penal e nos demais crimes contra as finanças públicas a incidência da causa de exclusão de ilicitude prevista no artigo 24 do Código Penal(estado de necessidade).
    Para Celso Delmanto, Roberto Delmanto (Código penal comentado, São Paulo, ed. Renovar, 6ª edição, pág. 735) haverá ainda a possibilidade de inclusão nos delitos da inexigibilidade de conduta diversa, exculpante extralegal. Sabe-se, aliás, que o Código Penal não contempla a inexigibilidade de conduta diversa como causa legal de exclusão de culpabilidade.
    Na doutrina pátria, Francisco de Assis Toledo (Princípios básicos de direito penal, São Paulo, Saraiva, 1991, pág. 329)admite a causa supralegal desde que se considere a não-exigibilidade, em seus devidos termos, isto é, não como um juízo subjetivo do próprio agente do crime, mas, ao contrário, como um momento do juízo de reprovação da culpabilidade normativa, o qual compete ao juiz do processo.
    À luz de Bettiol, ensina que cabe ao juiz, que exprime o juízo de reprovação, avaliar a gravidade e a seriedade da situação histórica na qual o sujeito age, dentro do espírito do sistema penal. Sendo assim, quando se parte do pressuposto de que um comportamento só é culpável na medida em que um sujeito capaz haja previsto e querido o fato lesivo, deve-se necessariamente admitir que tal comportamento já não possa considerar-se culpável todas as vezes em que, por causa de uma circunstância fática, o processo psíquico de representação e de motivação se tenha formado de forma anormal. Consuma-se o crime, em qualquer de suas modalidades, com a ordem ou autorização de abertura de crédito, incorrendo nas irregularidades relacionadas. Com relação às modalidades ordenar e autorizar somente se consumam com a efetiva abertura do crédito, nas circunstâncias mencionadas.
    Mas, dir-se-ia que há absoluta falta de proporcionalidade na possiblidade de aplicação de perda de cargo, impedimento, do chefe do executivo que vier a praticar essas práticas.
    Há, por certo, situações graves que envolvam corrupção, agressão à segurança nacional, ato de improbidade com a prática de atos libidinosos dentro das dependências palacianas, espionagem.
    Os exemplos no direito brasileiro e americano destacam que não é qualquer fato que leve a tão grave punição. Mas a ofensa à lei orçamentária foi elevada pelo legislador ao patamar de crime de responsabilidade. Assim o mascaramento das contas é algo que não se pode conviver dentro de um sistema sadio de administração financeira e deve ser objeto de sanção como foi. A responsabilidade fiscal é uma obrigação do administrador que o sujeita ás penas de improbidade, criminal e ainda politicamente perante o Congresso Nacional.
    De toda sorte deve haver a correta dosimetria da pena diante da conduta analisada.
    De outra parte a conduta envolve uma verdadeira improbidade, mas que, em qualquer hipótese, precisa ser enfrentada dentro do princípio da proporcionalidade.
    O critério da aplicação em bloco de todas as sanções ditadas pela Constituição Federal e pela Lei n.º 8.429/92 não pode justificar-se, apenas sobre exegese que se apega à adoção da conjunção aditiva 'e' a unir as penalidades (na lei) e pelo imperativo 'importarão', adotado na Carta Magna (art. 37, § 4º). Assim, 'as cominações previstas no artigo 12 da Lei n.º 8.429/1992 não determinam, necessariamente, aplicação cumulativa, devendo ser observado no caso concreto, em respeito aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade, adequação e racionalidade na interpretação do dispositivo, a fim de que não haja injustiças flagrantes.'
    De fato, a jurisprudência avança para o alargamento das margens de individualização das sanções, na sanção dos ato de improbidade. Como já afirmado, pelo Superior Tribunal de Justiça, relator o Min. Franciulli Neto: 'A aplicação das sanções da Lei n.º 8.429/92 deve ocorrer à luz do princípio da proporcionalidade, de modo a evitar sanções desarrazoadas em relação ao ato ilícito praticado, sem, contudo, privilegiar a impunidade. Para decidir pela cominação isolada ou conjunta das penas previstas no artigo 12 e incisos, da Lei de Improbidade Administrativa, deve o magistrado atentar para as circunstâncias peculiares do caso concreto, avaliando a gravidade da conduta, a medida da lesão ao Erário, o histórico funcional do agente público etc.'.
    Concluindo esse segmento, é claro que o Juiz não está inibido de aplicar as sanções em bloco e, por certo, haverá casos em que deverá impor o feixe completo de sanções, p.ex., para o enriquecimento ilícito à custa da aplicação indevida de verbas destinadas à saúde pública. Nenhuma norma o proíbe. Seria esdrúxulo dizer que é defeso ao juiz fazê-lo, em presença das fórmulas legais.
    O que se propõe, aqui, em homenagem á proporcionalidade, é que não o faça, como regra, porque a melhor leitura da Lei n.º 8.429/92 não é a que se afina com aglutinações de sanções, mas a que individualiza a pena e, assim, se harmoniza com o art. 5º, XLVI, da Carta Magna. O razoável tem embasamento constitucional. Que a regra seja, pois, iluminar o fato sob a proporção e a justa medida.
    A doutrina é trazida à colação: "Sem hesitações, podemos concluir que o excesso desserve, tanto à causa da proporcionalidade, como a de literal aglutinação. Contudo, eventuais estragos serão sempre menores na primeira alternativa." (Waldo Fazzio Júnior, "Atos de Improbidade Administrativa: Doutrina, Legislação e Jurisprudência", São Paulo, Atlas, 2007, pp. 358/359).
    Diz o art. 33 da lei 1079/50 que, no caso de condenação, o Senado por iniciativa do presidente fixará o prazo de inabilitação do condenado para o exercício de qualquer função pública; e no caso de haver crime comum deliberará ainda sobre se o Presidente o deverá submeter à justiça ordinária, independentemente da ação de qualquer interessado.
    Pode o Judiciário alterar a pena que for aplicado pelo Senado Federal? Se entender que foi desproporcional, sim.
    Sem se substituir aos órgãos políticos, pode o Supremo Tribunal Federal ajustar a punição, se for o caso, aos parâmetros legais. Sujeita-se ao controle do Judiciário a pena que não estiver dentro dos parâmetros legais, analisando, caso a caso, a gravidade ou não da conduta.
    Homenageia-se ao principio da proporcionalidade onde se postula uma adequação entre meios e fins, entre as medidas utilizadas e as necessidades que devem ser satisfeitas em prol da sociedade.
    Isso sem que se esqueça que o Judiciário pode e deve, ainda que preliminarmente, em havendo direito líquido e certo, a ser examinado em sede de mandado de segurança, examinar afrontas ao devido processo legal, em especial, a franca e desrespeitosa agressão ao contraditório e ao amplo direito de defesa plena, sempre sem perder de vista que a parcialidade de um órgão congressual, que aja por pura vingança pessoal, é algo passível da ampla nulidade absoluta, que vicia todo o rito procedimental.

    sexta-feira, 15 de abril de 2016

    Mentira temível - Olavo de Carvalho



    Diário do Comércio, 8 de agosto de 2008

    O protesto do governo russo contra a equiparação moral de nazismo e comunismo condensa uma das falsificações históricas mais temíveis de todos os tempos. Temível pelas dimensões da mentira que engloba e duplamente temível pela credulidade fácil com que é acolhida, em geral, pelos não-comunistas e mesmo anticomunistas.
    Até John Earl Haynes, o grande historiador do anticomunismo americano, subscreve esse erro: “Ao contrário do nazismo, que explicitamente colocava a guerra e a violência no cerne da sua ideologia, o comunismo brotou de raízes idealísticas.” Nada, nos documentos históricos, justifica essa afirmativa. Séculos antes do surgimento do nazismo e do fascismo, o comunismo já espalhava o terror e o morticínio pela Europa, atingindo um ápice de violência na França de 1793. A concepção mesma de genocídio – liquidação integral de povos, raças e nações – é de origem comunista, e sua expressão mais clara já estava nos escritos de Marx e Engels meio século antes do nascimento de Hitler e Mussolini.
    O idealismo romantizado está na periferia e não no cerne da doutrina comunista: os líderes e mentores sempre riram dele, deixando-o para a multidão dos “idiotas úteis”. É significativo que Marx, Engels, Lênin, Stalin, Mao ou Che Guevara tenham dedicado pouquíssimas linhas à descrição da futura sociedade comunista e das suas supostas belezas, preferindo preencher volumes inteiros com a expressão enfática do seu ódio não somente aos burgueses e aristocratas, mas a milênios de cultura intelectual e moral, explicados pejorativamente como mera camuflagem ideológica do interesse financeiro e do desejo de poder. Entre os não-comunistas, a atribuição usual de motivos idealísticos ao comunismo não nasce de nenhum sinal objetivo que possam identificar nas obras dos próceres comunistas, mas simplesmente da projeção reversa da retórica de acusação e denúncia que nelas borbulha como num caldeirão de ódio. A reação espontânea do leitor ingênuo ante essas obras é imaginar que tanta repulsa ao mal só pode nascer de um profundo amor ao bem. Mas é próprio do mal odiar-se a si mesmo, e simplesmente não é possível que a redução de todos os valores morais, religiosos, artísticos e intelectuais da humanidade à condição de camuflagens ideológicas de impulsos mais baixos seja inspirada no amor ao bem. O olhar de suspicácia feroz que Marx e seus continuadores lançam sobre as mais elevadas criações dos séculos passados denota antes a malícia satânica que procura ver o mal em tudo para assim parecer mais suportável na comparação. Para aceitar como verdade a lenda do idealismo comunista, teríamos de inverter todos os padrões de julgamento moral, admitindo que os mártires que se deixaram matar na arena romana agiram por interesses vis, ao passo que os assassinos de cristãos na URSS e na China agiram por pura bondade.
    Nos raros instantes em que algum dos teóricos comunistas se permite contemplar imaginativamente as supostas virtudes da sociedade futura, ele o faz em termos tão exagerados e caricaturais que só se podem explicar como acessos de auto-excitação histérica sem qualquer conexão com o fundo substantivo das suas teorias. Ninguém pode reprimir um sorriso de ironia quando Trotski diz que na sociedade comunista cada varredor de rua será um novo Leonardo da Vinci. Como projeto de sociedade, isso é uma piada – o comunismo inteiro é uma piada. Ele só é sério enquanto empreendimento de ódio e destruição.
    Ademais, o protesto russo suprime, propositadamente, dois dados históricos fundamentais:
    (1) O fascismo nasceu como simples dissidência interna do movimento socialista e não como reação externa. Sua origem está, comprovadamente, na decepção dos socialistas europeus com a adesão do proletariado das várias nações ao apelo patriótico da propaganda belicista na guerra de 1914. Fundados na idéia de que a solidariedade econômica de classe era um laço mais profundo e mais sólido do que as identidades nacionais – alegadamente invenções artificiosas da burguesia para camuflar seus interesses econômicos –, Lênin e seus companheiros de partido acreditavam que, na eventualidade de uma guerra européia, os proletários convocados às trincheiras se levantariam em massa contra seus respectivos governos e transformariam a guerra num levante geral socialista. Isso foi exatamente o contrário do que aconteceu. Por toda parte o proletariado aderiu entusiasticamente ao apelo do nacionalismo belicoso, ao qual não permaneceram imunes nem mesmo alguns dos mais destacados líderes socialistas da França e da Alemanha. Ao término da guerra, era natural que o mito leninista da solidariedade de classe fosse submetido a análises críticas dissolventes e que o conceito de “nação” fosse revalorizado como símbolo unificador da luta socialista. Daí a grande divisão do movimento revolucionário: uma parte manteve-se fiel à bandeira internacionalista, obrigando-se a complexas ginásticas mentais para conciliá-la com o nacionalismo soviético, enquanto a outra parte preferiu simplesmente criar uma nova fórmula de luta revolucionária – o socialismo nacionalista, ou nacional-socialismo.
    Não deixa de ser significativo que, na origem do "socialismo alemão" – como na década de 30 era universalmente chamado –, a dose maior de contribuições financeiras para o partido de Hitler viesse justamente da militância proletária (v. James Pool “Who Financed Hitler: The Secret Funding of Hitler's Rise to Power, 1919-1933”, New York, Simon & Schuster, 1997). Para uma agremiação que mais tarde os comunistas alegariam ser puro instrumento de classe da burguesia, isso teria sido um começo bem paradoxal, se essa explicação oficial soviética da origem do nazismo não fosse, como de fato foi e é, apenas um engodo publicitário para camuflar ex post facto a responsabilidade de Stalin pelo fortalecimento do regime nazista na Alemanha.
    2) Desde a década de 20, o governo soviético, persuadido de que o nacionalismo alemão era um instrumento útil para a quebra da ordem burguesa na Europa, tratou de fomentar em segredo a criação de um exército alemão em território russo, boicotando a proibição imposta pelo tratado de Versailles. Sem essa colaboração, que se intensificou após a subida de Hitler ao poder, teria sido absolutamente impossível à Alemanha transformar-se numa potência militar capaz de abalar o equilíbrio mundial. Parte da militância comunista sentiu-se muito decepcionada com Stalin quando da assinatura do famoso tratado Ribentropp-Molotov, que em 1939 fez da União Soviética e da Alemanha parceiros no brutal ataque imperialista à Polônia. Mas o tratado só surgiu como novidade escandalosa porque ninguém, fora dos altos círculos soviéticos, sabia do apoio militar já velho de mais de uma década, sem o qual o nazismo jamais teria chegado a constituir uma ameaça para o mundo. Denunciar o nazismo em palavras e fomentá-lo mediante ações decisivas foi a política soviética constante desde a ascensão de Hitler – política que só foi interrompida quando o ditador alemão, contrariando todas as expectativas de Stalin, atacou a União Soviética em 1941. Tanto do ponto de vista ideológico quanto do ponto de vista militar, o fascismo e o nazismo são ramos do movimento socialista. (Deixo de enfatizar, por óbvia demais, a origem comum de ambos os regimes no evolucionismo e no "culto da ciência". Quem deseje saber mais sobre isto, leia o livro de Richard Overy, “The Dictators. Hitler’s Germany, Stalin’s Russia” New York, Norton, 2004.)
    Mas ainda resta um ponto a considerar. Se o comunismo se revelou uniformemente cruel e genocida em todos os países por onde se espalhou, o mesmo não se pode dizer do fascismo. A China comunista logo superou a própria URSS em furor genocida voltado contra a sua própria população, mas nenhum regime fascista fora da Alemanha jamais se comparou, nem mesmo de longe, à brutalidade nazista. Na maior parte das nações onde imperou, o fascismo tendeu antes a um autoritarismo brando, que não só limitava o uso da violência aos seus inimigos armados mais perigosos, mas tolerava a coexistência com poderes hostis e concorrentes. Na própria Itália de Mussolini o governo fascista aceitou a concorrência da monarquia e da Igreja – o que já basta, na análise muito pertinente de Hannah Arendt, para excluí-lo da categoria de "totalitarismo". Na América Latina, nenhuma ditadura militar – "fascista" ou não – jamais alcançou o recorde de cem mil vítimas que, segundo os últimos cálculos, resultou da ditadura comunista em Cuba. Comparado a Fidel Castro, Pinochet é o menino-passarinho. Em outras áreas do Terceiro Mundo, nenhum regime alegadamente fascista fez nada de parecido com os horrores do comunismo no Vietnam e no Cambodja. O nazismo é uma variante especificamente alemã do fascismo, e essa variante se distinguiu das outras pela dose anormal de violência e crueldade que desejou e realizou. Em matéria de periculosidade, o comunismo está para o fascismo assim como a Máfia está para um estuprador de esquina. Mas não podemos esquecer aquilo que diz Sto. Tomas de Aquino: a diferença entre o ódio e o medo é uma questão de proporção – quando o agressor é mais fraco, você o odeia; quando é mais forte, você o teme. É fácil odiar o fascismo simplesmente porque ele sempre foi mais fraco do que o comunismo e sobretudo porque, como força política organizada, está morto e enterrado. O fascismo jamais teve a seu serviço uma polícia secreta das dimensões da KGB, com seus 500 mil funcionários, orçamento secreto ilimitado e pelo menos cinco milhões de agentes informais por todo o mundo. Mesmo em matéria de publicidade, as mentiras de Goebbels eram truques de criança em comparação com as técnicas requintadas de Willi Münzenberg e com a poderosa indústria de desinformatzia ainda em plena atividade no mundo. Se, no fim da II Guerra, a pressão geral das nações vencedoras colocou duas dúzias de réus no Tribunal de Nuremberg e inaugurou a perseguição implacável a criminosos de guerra nazistas, que dura até hoje, o fim da União Soviética foi seguido de esforços gerais para evitar que qualquer acusação, por mínima que fosse, recaísse sobre os líderes comunistas responsáveis por um genocídio cinco vezes maior que o nazista. No Cambodja, o único país que teve a coragem de esboçar uma investigação judicial contra os ex-governantes comunistas, a ONU fez de tudo para boicotar essa iniciativa, que até hoje se arrasta entre mil entraves burocráticos, aguardando que a morte por velhice livre os culpados da punição judicial. O fascismo atrai ódio porque é uma relíquia macabra do passado. O comunismo está vivo e sua periculosidade não diminuiu nem um pouco. O temor que inspira transmuta-se facilmente em afetação de reverência exatamente pelos mesmos motivos com que o entourage de Stalin fingia amá-lo para não ter de confessar o terror que ele lhe inspirava.

    sábado, 9 de abril de 2016

    Filme que você precisa ver: Chuck Norris vs Communism (2015)

    Filme que você precisa ver: Chuck Norris vs Communism (2015)

    Em tempos de acusações de "ditadura" e "golpe", um documentário romeno mostra o verdadeiro risco que corremos. E por que temer a Escola de Frankfurt.

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    Sabemos bastante sobre o horror do nazismo (embora não saibamos o que foi o nazismo) para nossos sentidos se escandalizarem e fazerem qualquer associação ao Terceiro Reich nos embrulhar o estômago. Como já notou Alain Besançon, por outro lado, a memória não retém as atrocidades do comunismo.
    Na comparação entre os dois, trata-se antes de um caso de imaginação do que propriamente de teoria, já que somos igualmente deficientes para entender até mesmo o ideal socialista do nacionalismo alemão sob a suástica.
    Raros aprenderam sobre Adolf Hitler com livros: é nosso imaginário mais básico, nossas impressões primeiras que conseguem evocar, da superfície dos dados aprendidos, o horror que foi o nazismo. Vimos tantos filmes, imagens e descrições do nacional-socialismo que até temos a impressão de termos visto, sentido, testemunhado parte do inferno que se tornou a Alemanha e, depois, a Europa, sobretudo após a eclosão da Segunda Guerra e o início do Holocausto.
    Quantos filmes são conhecidos sobre o comunismo? O imaginário coletivo, ainda mais em países de Terceiro Mundo (expressão inventada por Mao Zedong para se tornar “líder mundial” ao menos de uma parcela do mundo), ainda tende a criticar a palavra “capitalismo”, quase sempre em países que mal o conhecem, e imaginar o que seria o socialismo como uma espécie de rave de Zion do Matrix 2.
    A verdade sobre o Gulag, a inanição genocida do Holodomor, os campos de matança de Pol-Pot, a reforma agrária de Mao fazendo com que 70 milhões de chineses tivessem grama e cascas de árvore como última refeição antes de morrerem de fome, a crise de AIDS na Albânia ou os fuzilamentos na Hungria ou em todo país socialista passam longe de estarem na imaginação de qualquer socialista fora da velha linha-dura – sobretudo, é inexistente entre jovens e os famosos “críticos do capitalismo” sonhando com “outro mundo possível” incapazes de descrever.
    Se fomos corretamente bombardeados com meio século de filmes sobre o nazismo e ainda não arranhamos sua superfície, chega em boa hora o incipiente movimento dos países que viveram a experiência comunista (como os próprios dirigentes a chamavam, e não “socialista” – vide o imprescindível livro de Archie Brown) para mostrar ao Ocidente o que é que estávamos felizmente perdendo.
    Uma surpresa do ano passado é o petardo disponível na Netflix Chuck Norris vs Communism, filme romeno de Ilinca Calugareanu com um tema incrivelmente mais sério do que parece pelo título: como os romenos vivendo sob o comunismo do tirano Nicolae Ceaușescu viam filmes ocidentais contrabandeando fitas cassete e assistindo filmes escondidos da polícia.
    chuck-norris-vs-communism-sigFilmes “contra-revolucionários” e material “subversivo” de primeira categoria? Bem, tem Rambo, com Sylvester Stallone, e Braddock 3 – O Resgate, com Chuck Norris, que contêm expressões pesadíssimas como (tirem as crianças da sala) “comunista maldito” (ufa, essa foi horrível, eu avisei). De resto, o que a polícia secreta comunista (a violentíssima Securitatea) perseguia eram filmes como Uma Linda Mulher ou 9 e 1/2 Semanas de Amor. Um “valor burguês” como o amor poderia colocar o sistema abaixo – esta é a “superioridade” comunista.
    Narrado na forma de documentário com romenos narrando aquela época, entremeado com cenas dramatizando suas histórias, temos diante de nossos olhos justamente a construção inversa de imaginário: a pobre e oprimida população de um país comunista se juntando na clandestinidade para tentar imaginar como é viver num país livre no Ocidente.
    Os tais “filmes imperialistas”. Ou você acha mesmo que quem vive assistindo pronunciamento de Ceaușescu nas duas horas por dia em que a televisão funcionava queria mesmo era assistir filme do Felipe Braga na única hora em que não está sendo vigiado pela polícia política?
    Os relatos da censura deixariam boquiabertos quaisquer estudantes universitários de cursos de Comunicação, Letras ou Cinema se atentassem para o que de fato está em discussão. Como uma cena em que a censura romena analisa se vai deixar passar um desenho animado russo. Por uma fração de segundo, um coelho surge na tela carregando três balões: um vermelho, um amarelo e um azul. BEEEEING, dispara o alarme: são as cores da bandeira da Romênia, num desenho russo, com um coelho menor do que o personagem principal. Daria a impressão de que a Romênia, sob o forte e supostamente auto-suficiente socialismo juche importado da Coréia do Norte, estaria nas mãos da Rússia, em sinal de subserviência. “Que mensagem estaríamos passando a nossas crianças?”, postula um censor.
    Ora, não é exatamente o que se tanto estuda com teorias pauleira como a Escola de Frankfurt, tão encomiada quanto menos é entendida? Se György Lukács e, posteriormente, Horkheimer, Adorno e Benjamin são tão louvados como realização máxima da crítica literária e artística (quando não crítica única) é justamente por preconizarem o modelo Securității de censura, encontrando leituras capitalistas, burguesas, imperialistas, direitistas, reacionárias ou o adjetivo que quiserem inventar em qualquer obra inocente, já que o marxismo não permite que se enxergue algo sem ideologia por trás.
    Basta lembrar do sucesso dos anos 70 Para Ler o Pato Donald, que jurava encontrar um método de colonização da América Latina no sucesso da Disney. Uma panacaria que, hoje, a análise do discurso, aliando marxismo, psicanálise e semiótica, elevou à enésima potência – dogmas momentâneos como “apropriação cultural”, “micro-agressão”, “mídia golpista”, “multiculturalismo” ou “não vai ter golpe” têm sempre algum intelectual caudatário da Escola de Frankfurt por trás.
    Ninguém melhor para apresentar este cenário aos brasileiros do que o filósofo Olavo de Carvalho, que por sinal morou quase um ano na Romênia após a queda dos Ceaușescu. Foi ele que denunciou sozinho o perigo da clave de interpretação da realidade dada pelo neomarxismo da Escola de Frankfurt, sendo escorraçado da discussão acadêmica-jornalística por nadar sozinho contra o dogma frankfurtiano. Hoje refugia-se sozinho entre os poucos que atravessaram a parede censora da intelligentsia e tiveram coragem de conhecer seu pensamento enfrentando o enxame frankfurtiano, que produz o totalitarismo dos vilões do filme, não a libertação dos contraventores.
    Se temos dificuldade para entender como é a vida comum no comunismo (não só a vida na fome das fazendas coletivas e nos campos de trabalho forçado, mas a vida “normal”, das cidades que não são cadeias de prisioneiros políticos – ao menos formalmente), nada melhor do que ver como essas pessoas de carne e osso contam como era descobrir o inverso: de que a vida normal pode ser normal num país normal. Algo tão chocante que nós, ocidentais sortudíssimos, só mesmo pelo vício do costume e preguiça da inventividade não percebemos.
    Todos os filmes eram dublados pela mesma dubladora, Irina Nistor, uma das principais narradoras do documentário, que traduzia e imediatamente dublava todas as vozes dos filmes. Os romenos ficavam surpresos com a fartura das mesas ocidentais: cenas de luta em um restaurante terminando com alguém caindo sobre a mesa não deveriam ser cogitadas num cinema romeno nem mesmo se não fosse comida de verdade e nem mesmo se a Romênia tivesse uma indústria de cinema.
    Poder falar “Jesus!”, “Papai Noel”, nomes de santos, “Páscoa”? Como o mundo livre capitalista poderia tomar tamanha liberdade enquanto o comunismo romeno destruía igrejas de um país tão católico (e outrora vencedor dos muçulmanos turcos) e mandava à prisão quem ousasse freqüentar uma igreja?
    A vida além da Cortina de Ferro se torna incrivel e assustadoramente opressora vendo as imagens ainda de hoje, com a arquitetura soviética onipresente e uniforme em todo o mundo transformando prédios em verdadeiros cubículos em labiríntica repetição.
    Falar que um parente possui um videocassete em público, geralmente contrabandeado de alguma visita a países fronteiriços e custando mais do que uma casa, é o mesmo que confessar um assassinato nas ruas aos berros hoje – afinal, com a perestroika de Gorbachev e com a caturrice de Ceaușescu em ser “o último stalinista”, o regime precisou endurecer a perseguição política, e num modelo político em que Estado e sociedade se tornam um corpo uno, qualquer vizinho invejoso, discussão ou mesmo ser mal visto por alguém significa ser denunciado às autoridades.
    Os relatos de pessoas que tinham medo até de entrar por uma porta ao serem gentilmente convidados (tudo no socialismo se torna um risco longe dos olhos protetores de testemunhas) sobre as desconfianças de seus colegas de trabalho mostram que a vida vermelha é uma espécie de jogo de detetive 25 horas por dia – com assassinatos políticos reais. Um desconfia que o outro é espião do governo, enquanto o que é desconfiado desconfia que o desconfiante é que trabalha para o governo secretamente. Não há exatamente um “trabalho” no país além de espionar quem trai o socialismo.
    O melhor, é claro, fica para Chuck Norris e os filmes de ação. São eles que animam, atiçam a fantasia e o desejo de heroísmo dos jovens, estes que, para o bem ou para o mal, estão sempre à frente dos velhos progressistas.
    Assistindo escondidos os filmes de Chuck Norris, Schwarzenegger, Stallone, Bruce Lee e van Damme, meninos contam como vêem, pela primeira vez, alguém se sacrificar pelo outro. Uma história em que se pôr em risco por uma amizade é escancarado aos olhos – o que o coletivismo socialista, centralizado no Partido-Estado, nunca permitiria, enquanto ocidentais crêem que socialismo é sinônimo de caridade, o seu exato oposto.
    É nas narrativas de superação de personagens machões e “violentos” (na verdade, guerreiros) que os jovens descobrem um modelo de heroísmo conhecido pelo Ocidente civilizado desde as primeiras narrativas da Odisséia ou da Eneida (vide como Christopher Vogler as descreve tão bem em A Jornada do Escritor: Estrutura Mítica Para Escritores, usando os ensinamentos do Herói de Mil Faces de Joseph Campbell). Ser revolucionário e contrário a tradições é, justamente, jogar isto no lixo e preferir qualquer propaganda política repetindo slogans martelados roboticamente. Algo que, infelizmente, o Brasil já conhece quase tão bem quanto a Romênia comunista.
    Após ver belas histórias de auto-superação, ouvimos a mais bela frase do filme: de que a partir destes filmes, uma pedra não era mais só uma pedra, uma parede não era só mais uma parede. Que os meninos passavam a disciplinar suas brincadeiras, de própria vontade, querendo ser mais do que aquilo que o governo dizia que eram.
    Foi essa mudança no imaginário, que a maldição comunista e suas teorias tão em voga no Ocidente provocaram, que provocou mudanças em todo o bloco soviético. Antes da realidade, e muito maior do que ela, está a imaginação. Não há lição que os brasileiros, à esquerda e à direita, precisem com mais urgência nestes tempos.
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    sábado, 2 de abril de 2016

    "OS INSEPULTOS", POR IGOR GIELOW

    "Os insepultos", por Igor Gielow

    Folha de São Paulo


    Na quinta (31), após mais um uso de bens públicos para a adulação ritual da presidente emérita, o ministro Edinho Silva empregou tons sombrios ao falar da radicalização política no país –um dos legados permanente da era PT.

    Disse o petista: "Vamos baixar o tom ou vamos esperar o primeiro cadáver?". 

    Menos de 24 horas depois, a Lava Jato, sempre ela, tratou de pagar a clarividência de Edinho com fel, trazendo à costa o corpo insepulto do nebuloso preâmbulo dos anos do PT no poder:o caso Santo André.

    A volta à baila dos nomes de Celso Daniel, Ronan Maria Pinto, Delúbio Soares e Silvinho Pereira tem um gosto einsteiniano: o passado, o presente e o futuro soam como uma única história, da propina do ônibus ao petrolão, passando pelo mensalão. Apenas a gravidade, que ora joga o projeto de poder petista ao chão, distorce e simula um círculo narrativo.

    O cadáver de fato, Daniel, se insinuou antes do mártir das ruas. Simbolicamente, é sua sombra que se projeta sobre o muito mais complexo esquema Schahin. As traficâncias evoluíram, mas a constante a ser assombrada por suas exumações se chama Luiz Inácio Lula da Silva.

    Recado entendido, Lula deve apressar a erosão da máquina pública em nome da prorrogação da agonia de Dilma Rousseff, esbarrando na conveniência eleitoral dos velhos-novos aliados: Dnocs é ótimo para a fisiologia municipal, mas quem quer estar com o PT em outubro?

    O processo é sórdido. Só a ideia de um segundo loteamento da Saúde em seis meses em troca de uma dúzia de votos, tornando a pasta depósito de indizíveis úteis em meio a emergências sanitárias, é o que pode de fato ser chamado de golpe.

    O agora ex-petista Delcídio do Amaral, teria dito certa vez a Lula que o PT deixa seus "cadáveres em covas rasas". Quase todo império tem corpos em suas fundações. Alguns deles, no ocaso das eras, se materializam como epitáfios.

    O GOLPE DO GOLPE - DEMÉTRIO MAGNOLI


    "O golpe do 'golpe'", por Demétrio Magnoli

    Folha de São Paulo


    O kirchnerismo caiu numa disputa eleitoral. Derrotas nas urnas são contingências normais do jogo político. O lulopetismo encara a perspectiva de uma catástrofe: a humilhação histórica de um impeachment sustentado pela maioria esmagadora da população. É diante desse abismo que seus dirigentes formularam a narrativa do golpe. Ela não se destina a salvar o mandato agonizante de Dilma Rousseff, mas a resgatar os responsáveis pelo desastre. "Golpe" é a palavra escolhida para hipnotizar a base militante petista no pós-Dilma, congelando o debate interno e salvando a liderança política de Lula.

    Os dirigentes petistas não são néscios. Eles não acalentam a pretensão exorbitante de persuadir a sociedade com o conto de um "golpe" que segue a Constituição e as leis, num processo definido milimetricamente pelo STF. Da mesma forma, sabiam que a ofensiva na imprensa internacional, por meio de entrevistas de Dilma e Lula de denúncia do "golpe", provocaria irônica perplexidade entre os correspondentes estrangeiros. Foi pior que o 7 a 1: o governo brasileiro e, por extensão, o próprio país, converteram-se em objeto de piada e escárnio. Mas isso estava na conta. É uma prestação a pagar pelo objetivo maior.

    Um quarto de século atrás, combativos parlamentares do PT clamavam pelo impeachment de Collor argumentando que a legitimidade das urnas não colocava o presidente acima da ordem legal. Se houvesse hoje um golpe em curso, Dilma recorreria à Constituição para abortá-lo, invocando perante o Congresso a necessidade de decretação do estado de sítio. Mas, como o "golpe" não é golpe, a presidente nada solicitou aos parlamentares que se preparam para apeá-la legalmente. O público-alvo da lenda do "golpe" é a área de influência do PT. Os militantes não precisam acreditar na cantiga de ninar. Basta que a assumam como benevolente autoilusão: um truque capaz de aplacar as angústias de quem acompanhou uma trajetória de degradação política e ética.

    O governo foi escorraçado pela nação, experimentando o desprezo do povo, o abandono dos empresários, a traição de uma elite política que compartilhava o poder. Essa narrativa sobre o encerramento melancólico do longo ciclo de poder do PT solicitaria uma implacável revisão crítica interna. Seria preciso identificar erros de natureza política, ideológica e metodológica, para começar outra vez, sobre um mármore limpo. Como aconteceu com veneráveis partidos europeus, a refundação implicaria uma renovação na cúpula dirigente. O "golpe" nasceu para cortar essa hipótese pela raiz. É uma narrativa que serve aos interesses de Lula, mas sabota o futuro do PT.

    Desde a redemocratização, quase todas as correntes de esquerda no Brasil assumiram posições à sombra do guarda-chuva de Lula. O controle lulista sobre a esquerda acentuou-se nos mandatos do ex-presidente, que lançou mão de financiamentos oficiais indiretos para subordinar os chamados "movimentos sociais" ao Palácio. Contudo, nos últimos anos, sob os impactos dos escândalos de corrupção e do esgotamento das políticas de estímulo ao consumo, fragmentos da esquerda (como o Psol e o MTST) adquiriram autonomia, esboçando desafios à hegemonia lulista. A segunda finalidade da farsa do "golpe", que complementa a primeira, é restabelecer uma ordem abalada.

    A narrativa de um governo que fracassou politicamente depois de se associar ao alto empresariado numa vasta trama de corrupção serve como bandeira para reaglutinações da esquerda longe da sombra de Lula. Já a narrativa do "golpe das elites" contra o "governo popular" congela os movimentos de ruptura, reinserindo-os na órbita lulista. O golpe do "golpe" tem a função de estender o regime de servidão voluntária da esquerda para além da queda de Dilma. Nesse sentido, funciona, como se viu nos atos "contra o golpe" do 31 de março.