quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Um comentário e dois fatos - ROBERTO DA MATTA


quarta-feira, janeiro 15, 2014


O GLOBO - 15/01

Nenhuma pessoa pode ser presa duas vezes: uma pelo sistema legal e outra pelos poderes que agem dentro dos presídios



Na medida em que fico mais velho e, como o diabo, vou conhecendo melhor a ingratidão e a maldade humanas, observo que os jornais — que a cada semana noticiam cada vez mais infâmias e desgraças — comprovam meus piores palpites.

Como entender a rede simultânea de negócios pessoais e de estado da governadora do Maranhão, por exemplo, cujas prisões são explodidas à barbárie, forçando uma intervenção branca de Brasília numa medida tomada a pulso, pois que ela indicia o sistema prisional brasileiro como um todo?

Como ter prisões padrão Fifa para os mensaleiros e padrão nacional para os criminosos comuns? Esses presos que não são ninguém, porque a eles faltam advogados sofisticados, amigos poderosos e compadres no governo? Ou, eis o ponto cego do sistema, sem filiação a alguma “facção” que controla por dentro e por fora o estabelecimento? E como ficar surpreso com a ausência de prisão e com a tal impunidade que queremos liquidar se o nosso sistema legal é explicitamente desenhado para impedir que um alguém — um famoso — seja preso?

Como prender se as prisões continuam a ser lugares para “indivíduos” — para os sem laços com o mundo? Não há como ter um sistema democrático sem uma polícia e prisões decentes. Nenhuma pessoa pode ser presa duas vezes: uma pelo sistema legal e outra pelos poderes que agem dentro dos presídios.

Eu fazia esse comentário quando o professor Richard Moneygrand me interrompeu e perguntou:

— Você viu as duas notícias mais intrigantes da semana?

— Sem dúvida. Elas não falam do que acabo de dizer?

— Sim e não — respondeu Moneygrand, que, se hospedando comigo em Niterói, abandonara a sua amada Zona Sul carioca, onde tem tantos amigos famosos e importantes. — A primeira grande notícia é a do fugitivo americano que preferiu voltar às grades a enfrentar em liberdade o frio extremado que varre o meu país. Coisa que nenhum de vocês, brasileiros sem advogado, bons amigos e padrinhos no governo, seriam capazes de fazer. Aliás, o calor de certo modo impede algo semelhante porque seria impensável para o espirito reacionário brasileiro ter celas com ar-condicionado.

— E a segunda novidade? — questionei um tanto irritado com meu amigo.

— Bem — disse ele, segurando com carinho a mão de sua sétima ou oitava esposa, a Jean Morris, uma ruiva alta e arredondada, especialista em genocídio e holocausto, de mais ou menos 35 anos.

Dick Moneygrand, amigos, passou dos 80 e tantos, mas insiste em dizer que namora, fica apaixonado e escreve poesias para as suas Julietas, como ele diz em tom cretino. Afinal, inteligência nem sempre corresponde a bom discernimento.

— A segunda novidade — continuou meu amigo. — é que Lady Gaga salvou do suicídio um jovem gay brasileiro falando pessoalmente com ele pela internet. Esses novidades libertam-me das infâmias políticas do vosso nobre país, obrigando-me a refletir sobre a arte e a vida.

— Devo continuar? — indagou meu velho mentor com aquele seu jeitão tranquilo e superior que eu tanto invejo.

— Claro! — respondi, aproveitando para renovar a dose do meu calado e invencível faixa-preta escocês.

Quando eu leio que um prisioneiro se entrega para fugir do frio eu entendo que não há nenhuma brecha entre vida e arte. A vida nos engloba; a ficção é apenas uma outra faceta da própria vida. O fato a ser visto é que nós acabamos para a vida, enquanto a vida, quando narrada num conto, romance ou filme, faz o oposto: é ela que acaba para nós como uma história, um livro a ser posto numa estante. Por isso, precisamos tão desesperadamente das narrativas. Elas, como os rituais, têm principio, meio e fim. A vida não tem. E nós, um dia, viramos histórias ou simples notícia, como dizia aquele poema do vosso Drummond.

— O escritor americano O. Henry — prosseguiu Moneygrand. — que foi por alguns anos presidiário em Ohio, escreveu um conto chamado “O policial e o hino” (publicado em 1904) no qual (veja como o mundo se repete) um vagabundo tenta ser preso (como sempre fazia) para escapar do inverno de Manhattan. Na prisão, como também mostra Chaplin, inspirado nas mesmas contradições da democracia igualitária e do capitalismo industrial, em “Tempos modernos” (exibido em 1936), o vagabundo consciente, cínico e profissional de O. Henry transforma-se num involuntário desempregado e teria cama, comida e agasalho. Melhor a prisão do que o inverno num parque.

Parece fácil ir para prisão, mas O. Henry mostra que não é. Seu herói malandro tenta um bocado de truques para ser enjaulado. Do rotineiro comer e não pagar num restaurante; de bancar o maluco, gritando e pulando na rua, até o gesto violento de atirar uma pedra na vitrine de uma loja de luxo. No truque de comer sem pagar ele é impedido pelos garçons; no fingimento da loucura, o policial pensa que ele é um estudante comemorando a vitória do time da sua universidade; nem quando é mais violento ele é preso, pois quem jogaria uma pedra numa vitrine e ficaria esperando pela polícia? O guarda vai atrás de um sujeito que corria atrás de um táxi. Ele tenta, então, roubar sem disfarce o guarda-chuva de um homem no balcão de um bar. Discutem, um policial se aproxima, o vagabundo profissional pensa que vai conseguir, mas o homem confessa que ele próprio havia encontrado o guarda-chuva por engano e concorda em deixá-lo com o nosso herói. Desesperado porque não conseguia ser preso, o malandro decide assediar uma jovem mulher. Mas logo descobre que a jovem é uma prostituta que lhe oferece um programa. (Continua na próxima quarta-feira)

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