quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Joel Silveira: os conselhos da Víbora para um mundo antiofídico.




Em sua coluna na Gazeta, Paulo Polzonoff Jr. recorda o encontro com Joel Silveira, que detestava ser chamado de "Víbora":


Sou mesmo um afortunado. E foi nessa condição que me coube conhecer ninguém menos do que um dos ídolos da minha juventude: Joel Silveira. Ao entrar naquele apartamento cheirando a mofo na divisa entre Ipanema e Copacabana, eu era um jornalistinha de 26 anos com fama de virulento. Ao sair de lá, algumas horas mais tarde, tinha me transformado num escombro em vias de reconstrução (que levaria uns dez anos).

O convite me foi feito pelo saudoso Geneton Moraes Neto, que estava gravando um documentário sobre Joel. Subimos eu, ele e o cinegrafista num elevador apertado. A porta se abriu para um corredorzinho ladeado por livros e quadros com lembrancinhas políticas. Lembro-me claramente de um bilhete assinado por Jânio Quadros, com mesóclise e tudo.

Enquanto o cinegrafista montava o equipamento, ficamos conversando. Joel Silveira já estava com a saúde debilitada. Sua vozinha aguda de timbre metálico expressava cansaço. Suas pernas inchadas e cheias de feridas ajudavam a compor um quadro de decadência. De repente, saiu da cozinha a esposa de Joel Silveira com uma bandeja na mão. Foi o pior café que já bebi na vida, mas bebi com gosto, porque estava diante de uma lenda.

Até que surgiu na conversa a palavra que viria a definir Joel Silveira: víbora. Ele recebera essa alcunha por causa de seu estilo ácido e sua capacidade de destruir alguns dos personagens de suas matérias. Foi graças a essa agressividade, aliás, que ele acabou enviado à Europa a fim de cobrir a Segunda Guerra Mundial, tema da maioria dos livros que se acumulavam naquela sala. “E não me morra!”, teria aconselhado Assis Chateaubriand ao seu melhor repórter.

O problema é que Joel Silveira odiava o apelido. Ele o considerava um insulto. Ali na conversa pré-entrevista, ele se virou para mim, jornalistinha virulento da província, e me explicou por que rejeitava a alcunha. Nunca me esqueci da lição que trago até hoje comigo.

Ortodoxia do Veneno

Evoco a figura de Joel Silveira por causa de uma reflexão que tenho feito com frequência nos últimos tempos: qual o objetivo de tanto veneno no debate público? Não que uma dosezinha de cicuta de vez em quando não seja até divertido – para quem escreve e para quem lê. Mas o que há de virtuoso nesse ímpeto destruidor, nessa linguagem que se pretende a objetiva e purificadora, seca e letal, sem qualquer sinal de um humor misericordioso?

Por algum motivo que me escapa no momento, fomos levados a acreditar que a função da escrita (jornalismo, literatura e até aquele seu post despretensioso nas redes sociais) é eliminar do debate aqueles que percebemos como maus. Numa época em que valores subjetivos como honra valiam mais do que o sucesso nas urnas, Joel Silveira fez isso como ninguém. Ele realmente sabia contar histórias e conduzir entrevistas de modo a destruir o perfilado ou entrevistado da vez.

Assim, um tanto quanto inadvertidamente, Joel Silveira criou toda uma escola de narrativa jornalística que se baseia na ideia do “desagrado geral” como forma de consolidar uma suposta credibilidade isenta de paixões ideológicas. O que, evidentemente, não faz sentido nenhum quando o objetivo real é usar essa mesma paixão para aniquilar o adversário.

Beberam dessa fonte todos os grandes jornalistas do século XX, de Millôr Fernandes a Paulo Francis. O próprio Geneton Moraes Neto dizia que, ao entrevistar alguém, sempre se perguntava “por que esse bastardo [ele realmente falava “bastardo”] está mentindo para mim?”. Assim, Joel Silveira deu origem a uma verdadeira “Ortodoxia do Veneno”.

E o pior é que, com o tempo, o veneno das víboras foi perdendo a beleza para dar lugar ao ritual cotidiano de apedrejamento verbal. A tal ponto que hoje temos todo um serpentário orgulhoso de sua condição e que simplesmente não entende como pode existir algo fora dessa ortodoxia. São, pois, tratados como hereges todos os que buscam um tom mais conciliador – visto como sinal de submissão e bajulação.

Dedo carinhosamente em riste

Naquele dia, voltei para casa andando pela praia. O gosto do café ruim não me saía da boca. Assim como estavam impressas na minha retina as pústulas nas pernas inchadas de Joel Silveira. Que, com o dedo carinhosamente em riste, me deu o melhor conselho que um jornalistinha virulento de província poderia receber.

A vontade de restabelecer a justiça no mundo (um conceito bastante subjetivo) não pode ser maior do que a busca pela verdade. Porque, em nosso ímpeto justiceiro, não é raro tropeçarmos na injustiça da vingança. Mais do que isso, o objetivo de encontrar o que entendemos por verdade por meio da destruição do outro (dos ricos e dos poderosos, como Joel fazia tão bem) não passa de uma perversão do intelecto.

Da posição estranhamente privilegiada de quem já contemplava a própria morte e seu legado, Joel Silveira se arrependia de ser visto como alguém que, por paixão ao texto e por causa de ideia distorcida da própria intelectualidade, muitas vezes passou por cima de seus semelhantes – independentemente da culpa ou inocência deles.

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