A incompatibilidade entre o Islã e os valores ocidentais
Em função dos últimos atos terroristas do islamismo, republico ensaio do filósofo Roger Scruton (publicado aqui em 2016). No artigo "O Islã e o Ocidente" - publicado inicialmente em Dicta&Contradicta - ele analisa as conturbadas relações entre o mundo islâmico e o mundo ocidental. Os islâmicos, de fato, não escondem seu ressentimento contra a cultura secular do Ocidente, que precisa defender seus valores e princípios "sem concessões àqueles que desejam trocar a cidadania pela submissão, a nacionalidade pela conformidade religiosa, a lei secular pela sharia, o patrimônio judaico-cristão pelo Islã, a ironia pela solenidade, a autocrítica pelo dogmatismo, e o alegre beber por uma abstinência censurante. Devemos desprezar todos os que exigem tais mudanças e convidá-los a viver onde a forma política que preferem já esteja estabelecida. E devemos reagir à sua violência com toda força necessária para contê-la". Segue o texto na íntegra:
O Islã e o Ocidente
por Roger Scruton
O Ocidente hoje está envolto num conflito violento e dilatado contra as forças do radicalismo islâmico. Esta luta é sumamente difícil, tanto pela dedicação do nosso inimigo à sua causa, como – talvez principalmente – pela enorme desconjunção cultural por que passaram Europa e América desde o fim da guerra do Vietnã. Em termos simples, os cidadãos do Ocidente perderam o seu apetite por guerras estrangeiras; perderam a esperança de conquistar qualquer vitória que não fosse temporária; perderam a confiança no seu modo de vida. De fato, não têm mais certeza sobre as exigências que esse modo de vida lhes faz.
Ao mesmo tempo, viram-se diante de um novo oponente, um oponente que crê que o modo de vida ocidental é profundamente defeituoso e que talvez seja mesmo uma ofensa a Deus. Num “acesso de desatenção”, as sociedades ocidentais permitiram que esse oponente ganhasse espaço no seu próprio seio; nalguns casos – como a França, o Reino Unido e a Holanda -, em guetos que apenas mantêm relações tênues e hostis com a ordem política que os circunda. E tanto na Europa como na América há um crescente desejo de apaziguamento: uma contrição pública habitual; uma aceitação, ainda que pesarosa, dos editos censuradores dos mulás; e um conseqüente passo em direção ao repúdio do nosso patrimônio religioso e cultural. Há vinte anos, seria inconcebível que o arcebispo de Canterbury pronunciasse um discurso em favor da incorporação da lei religiosa islâmica (a shariá) ao sistema legal inglês. Hoje, contudo, muitas pessoas julgam essa uma proposta razoável, talvez um avanço rumo a uma contemporização pacífica.
Tudo isso indica que nós ocidentais estamos à beira de um perigoso período de concessão, em que as conquistas legítimas da nossa própria cultura serão ignoradas ou subestimadas na tentativa de provar as nossas intenções pacíficas. Demorará um pouco até que se permita à verdade desempenhar o seu importantíssimo papel de emendar os nossos erros presentes e preparar caminho para os futuros. Isto quer dizer que nos é mais necessário que nunca estar familiarizados com a verdade e ter uma compreensão clara e objetiva daquilo que está em jogo. É meu desejo, portanto, listar algumas das características-chave do nosso patrimônio ocidental, que devem ser compreendidas e defendidas no atual confronto. Cada uma delas está em contraste e, possivelmente, em conflito, com a visão islâmica tradicional da sociedade, e cada uma delas desempenhou um papel fundamental na criação do mundo moderno. A beligerância islâmica brota do fato de a sua cultura não ter lugar seguro nesse mundo e da conseguinte busca de refúgio em preceitos e valores divergentes do modo de vida ocidental. Isto não significa que devemos repudiar ou renunciar aos traços distintivos da nossa civilização, como muitos gostariam que fizéssemos. Ao contrário, significa que devemos estar ainda mais vigilantes na sua defesa.
A primeira das características que tenho em mente é a cidadania. O consenso entre as nações ocidentais de que a lei é legitimada pelo consentimento daqueles que a devem acatar. Esse consentimento é dado por meio de um processo político de que cada cidadão participa, criando e seguindo a lei. O direito e dever da participação é o que chamamos de “cidadania”, e a diferença entre as comunidades políticas e as religiosas resumem-se ao fato de que as primeiras são formadas por cidadãos, ao passo que as últimas são formadas por indivíduos que “se submeteram” (e eis o significado principal da palavra islã). Se quisermos uma definição simples do que é o Ocidente hoje, seria acertado escolher o conceito de cidadania como o nosso ponto de partida. De fato, é o que os milhões de migrantes vagando pelo mundo procuram: um ordenamento que garanta segurança e liberdade em troca de consentimento.
A sociedade islâmica tradicional, em contrapartida, vê a lei como um sistema de mandamentos e recomendações estabelecidos por Deus. Esses editos não podem sofrer emendas ainda que a sua aplicação em casos particulares possa envolver uma argumentação baseada na jurisprudência. A lei, conforme o Islã a entende, exige a nossa obediência e o seu autor é Deus. O que é o oposto do conceito de lei que nós ocidentais herdamos. A lei é para nós uma garantia das nossas liberdades. Não é feita por Deus, mas pelo homem, segundo o instinto de justiça inerente à condição humana. Não é um sistema de mandamentos divinos, mas o resíduo de acordos humanos.
Isso é particularmente claro para os cidadãos britânicos e americanos, que desfrutam do benefício inestimável da common law – um sistema que não foi imposto por algum poder soberano, mas construído nas cortes, que tentavam fazer justiça em litígios individuais. A lei do Ocidente é, portanto, um sistema construído de baixo para cima, que fala ao soberano com o mesmo tom de voz com que fala ao cidadão. Enfatiza que é a justiça, e não o poder, que prevalecerá. Daí o porquê de ser evidente desde a Idade Média que a lei, ainda que dependa do soberano para ser implementada, pode depor o mesmo soberano caso ele tente desafiá-la.
À medida que a nossa lei desenvolveu-se, permitiu a privatização da religião de grande parte da moral. Para nós, por exemplo, uma lei que castigue o adultério não é apenas absurda, mas também opressiva. Desaprovamos o adultério, mas também pensamos não ser assunto da lei punir um pecado simplesmente por ele ser pecado. Na shariá, porém, não há distinção entre moral e lei. Ambas vêm de Deus, e são impostas por autoridades religiosas obedientes à vontade revelada dEle. A dureza da situação é em certa medida mitigada pela tradição que prevê tanto as recomendações como as obrigações dentro da lei sagrada. Todavia, a shariá não comporta a privatização da moral e, menos ainda, dos aspectos religiosos da vida.
Claro, a maioria dos muçulmanos não vive sobre a shariá. Apenas alguns locais isolados – Irã, Arábia Saudita e Afeganistão, por exemplo – tentam fazê-la valer à força. Noutros lugares, foram adotados códigos civis e penais do Ocidente, na esteira de uma tradição iniciada nos começos do século XIX pelos otomanos. Mas essa aceitação da civilização ocidental pelos estados muçulmanos tem os seus perigos. Ela desperta inevitavelmente o pensamento de que a lei dos poderes seculares não seria uma lei real; de que, de fato, tal lei não teria qualquer autoridade real e seria mesmo um tipo de blasfêmia. Sayyid Qutb, antigo líder da Fraternidade Muçulmana, defendia exatamente esta idéia na sua obra seminal, Milestones. De fato, é fácil justificar rebeliões contra os poderes seculares quando a lei é vista como uma usurpação da autoridade divina.
Assim, desde as suas origens o Islã encontrou dificuldades para aceitar que a humanidade necessita de qualquer lei ou qualquer governo que não os revelados no Corão. Daí o grande cisma que seguiu à morte de Maomé, separando os xiitas dos sunitas. Do ponto de vista do governo secular, as questões acerca da sucessão ao poder, tais como a que dividiu esses dois grupos, são resolvidas pela mesma constituição que governa o funcionamento diário da lei. Noutras palavras, são em última análise uma questão de acordo humano. Mas uma comunidade que crê ser governada por Deus, de acordo com os termos postos pelo seu profeta, vê-se diante de um problema real quando o mensageiro morre: quem assume o poder e como? O fato de os governantes das comunidades islâmicas correrem um risco de assassinato acima da média não é alheio a essa questão. Os sultões de Istambul, por exemplo, cercavam-se de uma guarda pessoal composta de janízaros selecionados dentre os seus súditos cristãos precisamente porque não confiavam em que algum muçulmano fosse perder a oportunidade de retificar qualquer insulto a Deus representado pela pessoa de um reles governante mortal. O próprio Corão toca esse ponto, na Sura 3, versículo 64, ordenando judeus e cristãos a não aceitar quaisquer deuses que não o único Deus e também a não aceitar qualquer senhor (ârbâbân) dentre os seus iguais.
Em poucas palavras, a cidadania e a lei secular caminham de mãos dadas. Somos todos participantes do processo de criação das leis; por isso podemos ver uns aos outros como cidadãos livres, cujos direitos devem ser respeitados e cuja vida privada é da nossa própria conta. O que possibilitou a privatização da religião nas sociedades ocidentais e o desenvolvimento de ordens políticas nas quais os deveres do cidadão predominam sobre os escrúpulos religiosos. Explicar como isso é possível mostra-se uma questão profunda e difícil de teoria política; o fato de isso ser possível é provado pelo testemunho inapelável da civilização ocidental.
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Isso me leva à segunda característica que julgo ser central na identidade da civilização européia: a nacionalidade. Nenhum ordenamento político pode atingir a estabilidade se não convocar uma lealdade compartilhada, uma “primeira pessoa do plural” que distinga aqueles que compartilham os benefícios e as cargas da cidadania daqueles que estão fora do aprisco. A necessidade dessa lealdade compartilhada fica evidente nos tempos de guerra, mas é igualmente necessária nos tempos de paz, caso as pessoas queiram que a sua cidadania defina as obrigações públicas. A lealdade à nação põe de lado a lealdade à família, ao clã e à fé; põe o foco do sentimento patriótico do cidadão não numa pessoa ou num grupo, mas em um país. Esse país é definido por um território, e também por uma história, por uma cultura e uma lei que tornaram o território nosso. A nacionalidade consiste em terra mais a narrativa da sua posse.
Foi esta forma de lealdade territorial que permitiu às pessoas nas sociedades ocidentais existir lado a lado, respeitando mutuamente os seus direitos de cidadão apesar das diferenças radicais de fé e da ausência de laços familiares, afetivos ou de qualquer costume local de longa data que sustentasse a solidariedade entre elas.
A lealdade à nação é desconhecida em muitas partes do globo e, especialmente, nos lugares onde o islamismo arraigou-se. Às vezes, por exemplo, a Somália é definida como um “estado que falhou” por não possuir um governo central capaz de tomar decisões em nome de todo o seu povo ou de impor qualquer tipo de ordenamento legal. O verdadeiro problema da Somália, no entanto, não é ser um estado que falhou, mas sim uma nação que falhou. Nunca desenvolveu o tipo de ordenamento secular, territorial e baseado na lei que possibilita que um país se estabeleça como estado-nação, não meramente uma assembléia de tribos e famílias em competição.
O mesmo vale para muitos outros lugares onde nascem islamitas. Mesmo quando, como no caso do Paquistão, tais países funcionam como estados, sempre subsistem neles falhas como nação. Não obtiveram sucesso em criar o tipo de lealdade que permite a pessoas de diferentes credos, afinidades e clãs viver pacificamente lado a lado e, também, lutar lado a lado por sua terra natal. A história recente desses países leva-nos a perguntar se não há um autêntico e profundo conflito entre a concepção islâmica de comunidade e as concepções que nos conduziram até a nossa idéia de governo nacional. Talvez a idéia de estado-nação seja de fato uma idéia anti-islâmica.
Esta observação, claro, tem muito a ver com a situação do Oriente Médio hoje, em que vemos os resquícios de um grande império islâmico divididos em estados-nação. Com poucas exceções, essa divisão é resultado da demarcação de fronteiras por potências do Ocidente, especialmente França e Grã-Bretanha por meio do acordo Sykes-Picot de 1916. Não devíamos ficar surpresos, portanto, com o fato de o Iraque possuir uma história tão artificial para um estado-nação, dado que só esporadicamente é que foi um estado e que nunca foi uma nação. Pode até ser que curdos, sunitas e xiitas cheguem a reconhecer-se mutuamente como iraquianos. Mas essa identidade nacional seria frágil e gretada; no primeiro conflito que surgisse, os três grupos iriam definir-se como contrários uns aos outros. Somente os curdos parecem ter desenvolvido uma autêntica identidade nacional, que é oposta ao estado em que estão inseridos. Os xiitas, por sua vez, prestam lealdade inicialmente à religião e, nos momentos de turbulência, vêem a terra natal do xiismo – o Irã – como modelo.
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É verdade que nem todos os estados nacionais formados a partir dos restos do Império Otomano são tão arbitrários quanto o Iraque. A Turquia, o filé mignon do Império, teve sucesso em recriar-se como um autêntico estado-nação – não sem antes massacrar ou expulsar as suas minorias não turcas. Desde meados do século XIX, o Líbano e o Egito gozam de uma espécie de semi-identidade nacional sob a proteção do Ocidente. E, claro, Israel estabeleceu-se com uma forma de governo nacional inteiramente ocidental sobre um território que é alvo de disputas precisamente por isso. Estes exemplos, contudo, não são suficientes para diminuir a suspeita de que o Islã não vê com bons olhos a idéia de lealdade à nação e muito menos a idéia de que, em momentos de crise, são os vínculos nacionais, não os espirituais, que devem prevalecer.
Vejamos o caso da Turquia. Atatürk criou o estado nacional turco pela imposição de uma constituição secular; pela adoção de um sistema legal baseado nos modelos francês e belga; proibindo as vestes muçulmanas; expulsando os tradicionais mestres da lei islâmica (“ulemá”) dos cargos públicos; tirando as palavras de origem árabe do turco e adotando o alfabeto ocidental, de maneira a arrancar a língua dos seus antecedentes culturais. Conseqüência dessas mudanças revolucionárias foi o sucesso em lançar para segundo plano o conflito entre o islã e o estado secular. E por muito tempo parece que houve uma tolerância estável de um para com o outro. Hoje, porém, o conflito irrompe novamente por toda a parte: os secularistas tentaram invalidar o governo do partido islâmico (o AKP) que ganhou as eleições com uma votação massiva. Já o governo tentou processar os secularistas por terrorismo num julgamento de legalidade bastante duvidosa.
O Líbano, para darmos outro exemplo, deve a sua condição única no mundo árabe a uma antiga maioria cristã e à duradoura aliança entre maronitas e drusos contra o sultão otomano. A sua atual fragilidade é em grande medida culpa dos islamitas do hezbollah, que se uniram à Síria e ao Irã e que rejeitam o Líbano como uma entidade nacional a que se deva qualquer lealdade. Também o Egito apenas sobreviveu como estado-nação por ter tomado medidas radicais contra a Fraternidade Muçulmana e por ter levado à frente uma herança política e legal que provavelmente seria rejeitada por sua população muçulmana – mas não pela minoria cristã copta – em qualquer plebiscito. Já Israel foi condenado por seus vizinhos a viver num permanente estado de sítio.
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A terceira característica central da civilização ocidental é o cristianismo. Não tenho qualquer dúvida de que os muitos séculos de predomínio cristão na Europa lançaram as bases da lealdade à nação como um tipo de lealdade acima da que é devida ao credo e à família e sobre a qual pôde erguer-se um ordenamento de cidadania. Pode parecer paradoxal apontar a religião como a maior força por trás de um governo secular, mas devemos lembrar as circunstâncias peculiares pelas quais o cristianismo entrou no mundo. Os judeus da Judéia do século I eram uma comunidade fechada, unida por uma apertada teia de legalismos religiosos, mas governada desde Roma por uma lei que não fazia referência a qualquer Deus e que oferecia um ideal de cidadania a que todo o súdito livre do Império poderia aspirar.
Jesus viu-se em conflito com o legalismo dos seus colegas judeus e simpatizou com a idéia de um governo secular. Daí a famosa frase na parábola sobre o dinheiro dos impostos: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Depois da sua morte, a fé cristã foi moldada por Paulo tendo em vista comunidades dentro do Império Romano que buscavam apenas liberdade de culto, sem intenções de desafiar o poder secular. Essa idéia de dupla lealdade continuou após Constantino e foi endossada no século V pelo Papa Gelásio na doutrina das duas espadas dadas à humanidade para o seu governo: uma que guarda o corpo político e outra que guarda a alma individual. Essa ratificação da lei secular pela Igreja primitiva foi responsável pelos desenvolvimentos seguintes na Europa, desde a Reforma e o Iluminismo até a lei puramente territorial que predomina no Ocidente hoje.
Durante os primeiros séculos do islamismo, vários filósofos tentaram desenvolver a teoria do estado perfeito, mas a religião era sempre o seu ponto central. Al-Fârâbî, um sábio do século X, chegou mesmo a tentar reformular a República de Platão de acordo com o pensamento islâmico, sendo o profeta o rei-filósofo. Quando tal discussão cessou, no tempo de Ibn Taymiyya no século XIV, estava evidente que o Islã voltara as costas ao governo secular e tornara-se então incapaz de desenvolver qualquer coisa remotamente similar a um vínculo nacional oposto ao religioso. De fato, o mais importante advogado do nacionalismo árabe dos últimos tempos, Michel Aflaq, não era muçulmano, mas um cristão ortodoxo nascido na Síria, educado na França e falecido no Iraque, desiludido com o Baath, partido que ajudara a fundar. Se a lealdade à nação surgiu no mundo muçulmano ultimamente, foi apesar do Islã que surgiu – e não por causa dele. E não deveria causar espanto o fato de essas lealdades serem particularmente frágeis e rebeldes, como nos casos das tentativas palestinas de ganhar coesão nacional e da complicada história do Paquistão.
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O cristianismo é algumas vezes descrito como a síntese entre a metafísica judia e os ideais gregos de liberdade política. Sem dúvida que há verdade nessa afirmação, dado o contexto histórico do seu surgimento. E talvez seja a contribuição grega para o cristianismo a responsável pela quarta característica central que acredito valer a pena enfatizar numa comparação entre o Ocidente e o Islã: a ironia. Há já umas marcas de ironia na Bíblia hebraica, marcas essas que são mais fortes no Talmude. Mas há um novo tipo de ironia nos juízos e nas parábolas de Jesus, uma ironia que vê o espetáculo da loucura humana e nos mostra uma maneira “des-torcida” de conviver com ela. Um exemplo significativo é o veredicto de Jesus no caso da mulher apanhada em adultério. “Aquele que não tiver pecado”, diz, “que atire a primeira pedra”. Noutras palavras: “Vamos: vocês não queriam ter feito o que ela fez e já não o fizeram nos seus corações?” Já sugeriram que esse episódio foi uma interpolação tardia – uma das muitas que os primeiros cristãos tomaram do estoque de sabedoria tradicionalmente atribuída a Jesus após a sua morte. Ainda que isso seja verdade, só prova que a religião cristã fez da ironia parte central da sua mensagem. Essa ironia é compartilhada por grandes poetas sufi, especialmente Rumî e Hafiz, mas parece ser largamente desconhecida pelas escolas islâmicas que formam a alma dos islamitas. A religião que ensinam é incapaz de se ver a partir de fora e não pode ser criticada e muito menos alvo de risos – como diversas vezes testemunhamos recentemente.
Isso fica ainda mais claro quando lembramos aquilo que estimulou o juízo irônico de Jesus. A morte por apedrejamento ainda é uma punição para o adultério comum em muitas partes do mundo. E em muitas comunidades islâmicas as mulheres são tratadas como prostitutas assim que pisam fora da linha que os homens traçaram para o seu comportamento. O sexo, um assunto impossível de ser discutido sem uma medida de ironia, é pois um tema doloroso entre os muçulmanos, especialmente quando confrontados – e inevitavelmente são – pela moral laxa e pela confusão libidinosa das sociedades ocidentais. Os mulás vêem-se incapazes de pensar nas mulheres como seres sexuais e incapazes também de pensar muito tempo sobre qualquer outra coisa. O resultado disso é a enorme tensão que emerge nas comunidades muçulmanas dentro das cidades ocidentais, com os rapazes desfrutando das liberdades que os envolvem e as moças escondidas e aterrorizadas, a não ser que façam o mesmo.
O finado Richard Rorty via na ironia um estado de espírito intimamente ligado à visão de mundo pós-moderna [1]. É abrir mão do juízo ao mesmo tempo em que se busca um tipo de consenso, um acordo comum de não julgar. Parece-me, contudo, que a ironia, embora afete o nosso estado de espírito, pode ser mais bem compreendida como uma virtude, uma disposição voltada para a realização prática e o sucesso moral. Se eu fosse arriscar uma definição para essa virtude, diria que é o hábito de reconhecer a alteridade em tudo, inclusive em si mesmo. Não importa quão convencido alguém possa estar da justiça das suas ações e da verdade das suas idéias: deve olhá-las como as ações e as idéias de outra pessoa e reformulá-las de acordo com o que vir. Definida dessa maneira, a ironia mostra-se bastante diferente do sarcasmo. É um modo de aceitação, não de rejeição, que funciona em dois sentidos: pela ironia aprendo a aceitar tanto o outro a quem observo como a mim, o observador. Com todo o respeito a Rorty, a ironia não está livre de julgamentos. Ela simplesmente admite que aquele que julga também é julgado e julgado por si mesmo.
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A ironia está intimamente relacionada com a quinta característica notável da civilização ocidental: a autocrítica. É quase natural para nós querer ouvir a voz dos nossos oponentes assim que fazemos uma afirmação. O método antagônico de deliberação é ratificado pelo nosso sistema legal, pelas nossas formas de educação e pelos sistemas políticos que construímos para negociar os nossos interesses e resolver os nossos conflitos. Pensemos em críticos mordazes da civilização ocidental, como o falecido Edward Said e o onipresente Noam Chomsky. Said falava de maneira intransigente e às vezes venenosa em nome do mundo islâmico contra aquilo que via como a última forma do imperialismo ocidental. E por isso foi recompensado com uma cátedra numa prestigiosa universidade e com inúmeras ocasiões de manifestar-se publicamente na América e em todo o mundo ocidental. As recompensas para Chomsky foram mais ou menos as mesmas. Penso que esse hábito de recompensar os nossos críticos é peculiar à civilização ocidental. O único problema é que nas nossas universidades hoje ele foi levado tão a sério que só há recompensas para os críticos. Distribuem-se prêmios à esquerda do espectro político para alimentar a principal emoção daqueles que os conferem, a saber: que a autocrítica nos trará segurança e que todas as ameaças vêm de nós mesmos e do nosso desejo de defender as nossas posses.
O hábito de autocrítica criou outro ponto fulcral da civilização ocidental: a representação. Nós ocidentais, especialmente os anglófonos, somos herdeiros do hábito de longa data de associarmo-nos livremente, o que leva a nos juntarmos em clubes, negócios, movimentos sociais e fundações educacionais. Esse gênio associativo foi particularmente notado por Tocqueville durante as suas jornadas pela América e é facilitado por uma extensão encontrada unicamente na common law – a eqüidade e as leis de trust – que permite às pessoas juntar recursos e administrá-los sem a necessidade de pedir permissão a qualquer instância superior.
Esse hábito associativo caminha de mãos dadas com a tradição de representação. Quando formamos um clube ou uma sociedade de caráter público vamos apontar comissários que a representem. As decisões desses comissários passam, pois, a comprometer todos os membros, que não podem rejeitá-las sem sair do clube. Assim, um indivíduo isolado é capaz de falar por todo um grupo e, ao fazê-lo, compromete todo o grupo a aceitar as decisões feitas em seu nome. Para nós, não há nada de estranho nesse fenômeno, que afetou e afeta de maneira inestimável as nossas instituições políticas, educacionais, econômicas e desportivas. Afetou também o governo das nossas instituições religiosas, católicas e protestantes. De fato, foram os teólogos protestantes do século XIX os primeiros a desenvolver plenamente a teoria da corporação como uma idéia moral. Sabemos que a hierarquia da nossa igreja – batista, episcopaliana ou católica – tem o poder de tomar decisões em nosso nome e pode dialogar com instituições de todo o mundo para assegurar o espaço de que necessitamos para realizar o nosso culto.
Em contrapartida, as associações assumem uma forma muito diferente nas sociedades islâmicas tradicionais. Clubes e sociedades entre estranhos são raros e a unidade social básica não é a associação livre, mas a família. Sob a lei islâmica, as empresas não gozam de um suporte legal sofisticado; Malise Ruthven e outros já afirmaram que o conceito de pessoa jurídica não tem equivalente na shariá [2]. O mesmo vale para outras formas de associação. As entidades beneficentes, por exemplo, organizam-se de uma forma completamente distinta da ocidental: não são propriedades possuídas em conjunto para prestar ajuda aos demais, mas sim uma propriedade que foi “parada” (waqf) por motivos religiosos. Por isso, todas as entidades públicas, inclusive escolas e hospitais, são submetidas à mesquita e governadas por princípios religiosos. Por sua vez, a mesquita não é uma pessoa jurídica. Também não existe uma entidade que possa ser chamada de “a mesquita” no mesmo sentido em que nos referimos à igreja: como uma entidade cujas decisões afetam todos os seus membros, que pode negociar em nome deles e que pode ser levada a juízo por conta dos seus erros e abusos.
Como conseqüência dessa longa tradição de associar-se apenas sob a égide da mesquita ou da família, as comunidades islâmicas não têm o conceito de porta-voz [3]. Quando conflitos sérios irrompem entre as minorias islâmicas no Ocidente e o mundo ao seu redor, é difícil, quando não impossível, negociar com a comunidade muçulmana, já que não há ninguém que fale por ela ou que lhe conseguirá impor qualquer decisão. Se por acaso houver quem dê um passo à frente para falar, os membros da comunidade sentir-se-ão livres para aceitar ou rejeitar as suas decisões a seu gosto. O mesmo problema se dá no Afeganistão, no Paquistão e noutros países compostos de muçulmanos radicais. A pessoa que tenta falar em nome de um grupo dissidente muitas vezes o faz por iniciativa própria e sem nenhum procedimento que legitime a sua atuação. Muito provavelmente, caso ela concorde com a solução para um dado problema, será assassinada ou, em todo o caso, rejeitada pelos membros radicais do grupo do qual ele se imagina porta-voz.
Esse ponto leva-me a refletir mais uma vez sobre a idéia de cidadania. Uma razão importante para a estabilidade e paz das sociedades baseadas na cidadania é que os indivíduos em tal sociedade estão completamente protegidos pelos seus direitos. Estão isolados dos seus vizinhos em esferas de soberania privada onde tomam decisões sozinhos. E em conseqüência disso, uma sociedade de cidadãos pode estabelecer boas relações e criar vínculos entre estranhos. Não é preciso que você conheça o seu colega cidadão para afirmar os seus direitos diante dele ou os seus deveres para com ele; além do mais, o fato de ele ser um estranho não muda a disposição de ambos de morrer pelo território que abriga os dois e as leis de que gozam. Essa característica marcante dos estados-nação é sustentada pelos hábitos a que me referi: autocrítica, representação e vida associativa, hábitos que não são encontrados nas sociedades islâmicas tradicionais. O que os movimentos islâmicos prometem aos seus seguidores não é a cidadania, mas a “fraternidade” – ikhwân -, algo ao mesmo tempo mais cálido, próximo e satisfatório do ponto de vista metafísico.
No entanto, quanto mais próxima e cálida é uma relação, menos ela se espalhará. A fraternidade é seletiva e exclusiva; não pode expandir muito sem que se exponha à rejeição violenta e repentina. Daí o provérbio árabe: “Eu e o meu irmão contra o meu primo; eu e o meu primo contra o mundo”. Uma associação entre irmãos não é uma nova entidade, não é uma corporação que pode negociar em nome dos seus membros. Ela subsiste como uma realidade essencialmente plural – de fato, ikhwân é simplesmente o plural de akh, “irmão” – e denota uma assembléia de pessoas com as mesmas idéias unidas por um fim comum, não uma instituição que possa se arrogar qualquer poder sobre elas. Esse fato possui importantes repercussões políticas. Por exemplo, o sucessor de Nasser na presidência do Egito, Anwar Sadat, reservou no Parlamento algumas cadeiras para a Fraternidade Muçulmana. As tais cadeiras foram ocupadas imediatamente por aqueles que o presidente julgava aptos para tanto, mas que foram rejeitados pela Fraternidade real, que continuou com as suas atividades violentas, culminando no assassinato do próprio Sadat. Em termos simples: irmãos não recebem ordens, mas trabalham juntos, como uma família, até discutirem e brigarem.
Isso me traz a última das diferenças vitais entre o Ocidente e o Islã. Vivemos numa sociedade de estranhos que se associam rapidamente e toleram as diferenças uns dos outros. Contudo, não temos uma sociedade de conformidade vigilante. Ela faz as poucas exigências públicas que não estão contempladas pela lei secular e permite às pessoas moverem-se com rapidez de um grupo para outro, de um relacionamento para outro, de uma religião, empresa, maneira de viver, para outra. E tudo com certa facilidade. Trata-se de uma sociedade com uma criatividade infinita para formar as instituições e associações que permitam às pessoas conviver com as diferenças e permanecer em paz umas com as outras, sem a necessidade de intimidade, fraternidade ou lealdade ao clã. Não quero dizer que isso é bom, mas é a maneira que as coisas são, e um subproduto inevitável do conceito de cidadania que descrevi aqui.
O que torna possível a vida assim? A resposta é simples: a bebida. Aquilo que o Corão promete no Céu, mas nega na terra é o lubrificante necessário para o dínamo ocidental. Podemos ver isso claramente nos Estados Unidos, onde os coquetéis imediatamente quebram o gelo entre estranhos e animam toda a reunião, estimulando um desejo coletivo para que as pessoas que instantes atrás eram perfeitas desconhecidas entrem em acordo rapidamente. Esse costume de ir diretamente ao ponto depende, claro, de muitos aspectos da nossa cultura além da bebida, mas a bebida é fundamental e todos aqueles que estudaram o fenômeno persuadiram-se de que, apesar de todo o custo do alcoolismo, dos acidentes de carro e dos lares destruídos, é em grande parte por causa da bebida que, no fim das contas, somos tão bem sucedidos. Evidentemente, as sociedades islâmicas têm a sua própria maneira de criar associações com rapidez: o narguilé, a casa de café e a tradicional casa de banho, que Lady Mary Wortley Montague louvou por criar entre as mulheres uma solidariedade sem equivalente no mundo cristão. Mas essas formas de associação são também formas de retirada, um passo para trás com relação aos negócios do governo numa postura de resignação pacífica. A bebida tem um efeito diferente: une estranhos num estado de agressão controlado, capazes e desejosos de falar sobre qualquer assunto que surgir na conversa.
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As características que elenquei não apenas explicam a especificidade da civilização ocidental; elas também explicam o seu sucesso em navegar as enormes mudanças ocasionadas pelo avanço da ciência e da tecnologia, bem como a estabilidade política e o caráter democrático dos seus estados-nação. Essas características também distinguem a civilização ocidental das nações islâmicas que geram terroristas. E ajudam a explicar o grande ressentimento desses terroristas que não conseguem superar com os seus recursos morais e religiosos a fácil competência com que os cidadãos da Europa e da América lidam com o mundo moderno.
Se as coisas são assim, como poderíamos defender o Ocidente do terrorismo? Sugerirei uma resposta breve a essa questão. Em primeiro lugar, devemos ter claro o que estamos e o que não estamos defendendo. Nós não estamos defendendo a nossa riqueza ou o nosso território; não é isso que está em jogo. Nós estamos defendendo o nosso patrimônio político e cultural, composto das sete características que destaquei aqui. Em segundo lugar, devemos ter claro que não podemos superar o ressentimento sentindo-nos culpados ou punindo a nós mesmos. A fraqueza instiga, uma vez que alerta o inimigo para a possibilidade de destruir você. Devemos, portanto, estar preparados para afirmar as nossas coisas e para expressar a nossa determinação de nos mantermos apegados a elas. Dito isto, temos de reconhecer que é o ressentimento, não a inveja, que move o terrorista. A inveja é o desejo de possuir o que os outros têm; ressentimento é o desejo de destruí-lo. Como lidar com o ressentimento? Eis a grande questão que tão poucos líderes da humanidade foram capazes de responder. Os cristãos, porém, são os felizes herdeiros da maior tentativa de respondê-la, que foi a de Jesus, apoiado na longa tradição judaica que remonta à Torá, e que foi expressa em termos similares pelo seu contemporâneo, o Rabino Hillel. Você supera o ressentimento perdoando-o. O espírito de perdão não é uma auto-acusação; é fazer um dom ao outro. E é neste ponto, parece-me, que tomamos a direção errada nas últimas décadas. A ilusão de que nós somos os culpados, de que nós devemos confessar as nossas faltas e aderir à causa do nosso inimigo apenas expõe-nos a um ódio mais intenso. A verdade é que a culpa não é nossa; que o ódio dos nossos inimigos por nós é completamente injustificado; e que a inimizade implacável deles não será desarmada por batermos no peito.
Admitir essa verdade, porém, acarreta uma desvantagem. Ela nos faz parecer impotentes. Mas não o somos. Há dois recursos de que podemos nos valer para a nossa defesa: um é público e outro é privado. Na esfera pública, podemos decidir proteger as coisas boas que herdamos. Isso significa não fazer concessões àqueles que desejam trocar a cidadania pela submissão, a nacionalidade pela conformidade religiosa, a lei secular pela shariá, o patrimônio judaico-cristão pelo Islã, a ironia pela solenidade, a autocrítica pelo dogmatismo, e o alegre beber por uma abstinência censurante. Devemos desprezar todos os que exigem tais mudanças e convidá-los a viver onde a forma política que preferem já esteja estabelecida. E devemos reagir à sua violência com toda força necessária para contê-la.
Na esfera privada, porém, os cristãos devem seguir o caminho que Jesus lhes apontou: olhar com sobriedade e espírito de perdão para as feridas que recebemos e mostrar, com o nosso exemplo, que essas feridas não fazem nada senão desacreditar aquele que as infligiu. Eis a parte difícil da tarefa: difícil de fazer, difícil de aceitar, difícil de recomendar aos outros. Contudo, é a que está ao nosso alcance e, numa batalha com coisas tão grandes em jogo, é uma tarefa em que não podemos falhar.
Artigo traduzido da revista Azure, no. 35, 5769/2009. © Roger Scruton, 2009. Todos os direitos dessa tradução reservados a Dicta&Con-tradicta.
Roger Scruton é filósofo, escritor e publicista. Este ensaio é a versão revista de uma palestra proferida no Ethics and Public Policy Center (Washington) como parte do programa para a defesa da liberdade americana.
Tradução de Cristian Clemente.