FOI PIOR DO QUE SE PENSAVA
O maior banco de dados sobre o tráfico negreiro no mundo mostra que a escravidão no Brasil era ainda mais intensa e disseminada do que se aprende na escola
Reportagem de Cecília Ritto publicada em edição impressa de VEJA
“Era um sonho dantesco… o tombadilho / Que das luzernas avermelha o brilho / Em sangue a se banhar / Tinir de ferros… estalar de açoite / Legiões de homens negros como a noite / Horrendos a dançar.”
Alvo de intensa campanha abolicionista em seu apogeu, execrada em prosa e verso – como esses de Castro Alves, no poema Navio Negreiro – por um grupo estridente de intelectuais e políticos, a escravidão de africanos no Brasil, uma vez encerrada, acabou relegada a umas poucas páginas nos livros de história que nem de longe retratam sua real dimensão.
Quem quiser se aprofundar no tema contará agora com uma ajuda poderosa: o banco de dados do Tráfico de Escravos Transatlântico, um monumental conjunto de documentos alojado no site Slavevoyages.org, com informações retiradas de registros alfandegários, declarações portuárias e diários de bordo sobre a saída e a chegada dos navios negreiros ao redor do mundo – conteúdo que em algumas semanas estará disponível pela primeira vez em português.
Alimentado por uma equipe internacional liderada pelo historiador americano David Eltis, da Universidade Emory, em Atlanta, o trabalho redimensionou o comércio negreiro para as Américas e compôs um minucioso perfil dos meandros dessa lucrativa atividade em seu entreposto mais efervescente, o Brasil. O vasto material expõe novas ramificações do tráfico dentro do território nacional e mostraque ele foi ainda mais intenso do que se pensava.
As 35 000 viagens documentadas contabilizam 1,2 milhão de escravos a mais trazidos para o país. Isso eleva a parcela do Brasil nesse comércio de seres humanos à extraordinária cifra de 4,9 milhões – quase metade dototal de 10,7 milhões de homens, mulheres e crianças capturados na África e vendidos no Novo Mundo, principalmente, entre 1501 e 1866.
A “carga” era despachada por rotas que até então não se sabia existir, revelando uma complexa teia de caminhos Brasil adentro – uma delas partia de Belém, passava por rios amazônicos e desembocava no Centro-Oeste. O movimento de escravos também era muito mais vigoroso do que se supunha nos portos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e em Santos.
Depois de 1830, quando um tratado selado com os ingleses fez do tráfico uma atividade ilegal no Brasil, o comércio de africanos continuou numeroso, mas em pontos menos visados. Registros no banco de dados mostram que no Rio, por exemplo, eles passaram a desembarcar na então longínqua Praia de Copacabana.
“A maior parte dos estudos sobre as rotas da escravidão se restringe aos três principais portos da época: em Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Agora, está claro que o tráfico não era tão centralizado”, explica Manolo Florentino, um dos maiores estudiosos do assunto e diretor da Casa de Rui Barbosa, à frente da tradução do site.
O levantamento chegou também a um número inédito sobre a alta mortalidade nas travessias do Atlântico: foram 667 744 os escravos mortos a caminho do Brasil — bem mais do que meio milhão de seres humanos. As informações mais detalhadas vêm das acuradas listas – com nome, idade e procedência – de africanos libertados por barcos britânicos interceptadores de navios negreiros em pleno oceano.
Os registros referentes a embarque e desembarque mostram que, nos portos africanos, subiam a bordo em média 400 escravos – uma constantedo tráfico da qual não se tinha conhecimento.
Amontoados no porão, os homens eram acorrentados nas laterais e as mulheres e crianças no meio. No século XIX, a escassez de água e comida e as péssimas condições de higiene resultavam na morte de no mínimo 10% dos cativos.
Os registros disponíveis confirmam ainda que 70% dos escravos despachados para o Brasil vieram dos atuais Congo e Angola e revelam que, no afã de lotar os navios, alguns enganos causaram constrangimentos: a rainha de Libolo, em Angola, desembarcada em Salvador em 1654, teve de ser devolvida a sua tribo para não prejudicar a relação dos traficantes com seus fornecedores.
“O estudo traça um cenário global e muito detalhado sobre o tráfico negreiro”, avalia o historiador Luiz Felipe de Alencastro, autor de O Trato dos Viventes, resultado de uma pesquisa de três décadas sobre o tema.
A força-tarefa dos maiores pesquisadores do mundo em tráfico negreiro teve ainda o mérito de cravar, pela primeira vez, o ano da última dessas viagens ao Brasil: 1856, seis anos depois da promulgação da Lei Eusébio de Queiróz, que enfim proibiu no Brasil o comércio transatlântico de escravos – um pujante negócio iniciado aqui em 1560 e que, em pouco tempo, abarcaria 40% do comércio internacional.
Durante três séculos, o Brasil foi um país movido a escravos e totalmente dependente deles. “Éramos uma sociedade escravista no sentido mais amplo. Ter escravos era natural. Foi necessária uma transformação no pensamento da época para que o tráfico passasse a ser considerado inadmissível”, diz o historiador Alexandre Ribeiro, professor da Universidade Federal Fluminense.
Ainda neste ano, a versão em português do site Slavevoyages será incorporada a um novo arquivo na internet, Escravidão e Pós-Abolição: Memória e Acervos, iniciativa da Casa de Rui Barbosa, que acrescentará ao conjunto a vasta documentação sobre o tema do grande jurista, um abolicionista ferrenho para quem a escravidão era “a mutilação da liberdade do branco”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário