APÓS RECESSÃO NOS ANOS 1990, PAÍS SE RECUPEROU NOS ANOS 2000, MAS VÊ FANTASMAS DA CRISE E DO AUTORITARISMO DE VOLTA
Desde a eleição de Mikhail Gorbachev como secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em março de 1985, com a missão de modernizar a economia do país, a Rússia assistiu ao colapso do socialismo e à emancipação das 15 repúblicas que formavam a URSS, viu sua economia encolher entre 1990 e 1996 e passou pelo maior processo de privatização já realizado. Contudo, 30 anos após Gorbachev começar a perestroika, o país volta a se apresentar como uma potência mundial capaz de rivalizar com os Estados Unidos, enquanto o presidente Vladimir Putin é criticado no Ocidente por seu autoritarismo. Uma reviravolta que mistura política, negociatas, guerras e a alta dos preços das commodities, além da herança da maior experiência do socialismo real.
— Os anos 1990, com Boris Ieltsin, foram um trauma nacional. Por isso Putin é tão bem avaliado. Isso reforçou as tendências coletivistas que vêm desde a União Soviética. Os russos acham que o capitalismo liberal anglo-saxão não funciona no país. Não se trata de uma volta ao comunismo, mas sim de ter um capitalismo estatal — afirma Angelo Segrillo, professor de História da Universidade de São Paulo e autor do recém-lançado livro “De Gorbachev a Putin: a saga da Rússia do socialismo ao capitalismo” (Ed. Prismas).
Na obra, o historiador traça o caminho político e econômico percorrido pelo país na transição entre os dois modelos. Ele destaca que a necessidade de modernização da economia soviética já estava há tempos no radar do PCUS. A desaceleração do crescimento econômico a partir da década de 1970, acentuada no início dos anos 1980, e o hiato cada vez maior no desenvolvimento tecnológico entre o Ocidente e a União Soviética pressionavam por mudanças. É nesse contexto que Gorbachev inicia a a perestroika, que significa reestruturação em russo.
Uma das primeiras medidas para modernizar a economia foi a expansão da experiência iniciada, em 1983, por Yuri Andropov, seu antecessor na secretaria-geral do PCUS. Cinco ministérios com cerca de 700 empresas selecionadas ganharam mais liberdade para decidir a melhor maneira de produzir e podiam reter uma parte do lucro, em vez de dá-lo ao Estado. Um primeiro passo na direção do autofinanciamento das empresas, algo que seria buscado cada vez mais intensamente nos anos seguintes. O planejamento central caminhava para se tornar mais indicativo do que diretivo.
Em maio de 1988, foi aprovada a lei que permitiu a criação de cooperativas na URSS, com no mínimo três sócios, e, pela primeira vez, liberava a contratação de mão de obra de terceiros. Paulo Afonso de Carvalho, professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do Centro de Estudos Russos, vê na perestroika uma influência de Lênin e sua Nova Política Econômica (NEP, em russo), implantada com o fim da guerra civil em 1921.
— Gorbachev buscou inspiração na NEP, que com Lênin manteve a indústria pesada e outros setores estatizados e liberava outros de médio e pequeno porte, porque era a única coisa que podia propor, mudanças na economia e manutenção do partido único. Mas a própria dinâmica da perestroika destampou a garrafa e o gênio da liberdade — afirma ele.
A desorganização econômica provocada pela flexibilização do planejamento central, com o aumento do desabastecimento, e da formação de preços, que permitiu o surgimento da inflação, teve um grande impacto negativo na vida dos soviéticos. Contudo, mais importante para a desintegração da URSS foram as tensões nacionalistas e étnicas, agravadas pelo ambiente de maior liberdade. No primeiro semestre de 1991, todas as 15 repúblicas tinham declarado sua soberania. Estônia, Lituânia, Letônia e Geórgia afirmaram a sua independência.
A ASCENSÃO DE IELTSIN
Na Rússia, Ieltsin, eleito presidente do Soviete Supremo do país em 1990, despontava como líder da oposição democrática. Durante a tentativa de golpe contra Gorbachev, em agosto de 1991, ele se tornaria o grande líder da resistência. Entrincheirado no parlamento, convocou uma greve geral e, derrotado o golpe, saiu como o grande vitorioso. Em dezembro, costurou pelas costas do secretário-geral o acordo com Bielorrússia e Ucrânia para a formação da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), pondo fim à União Soviética.
— A privatização foi uma escolha política. Muitos dizem que se as “dores do parto” fossem longas os comunistas voltariam, mas havia uma preocupação em criar um fato consumado e corrigir os desequilíbrios depois — explica Segrillo.
A venda das estatais foi complexa e até cupons, para serem trocados por ações, foram distribuídos. No caso das grandes companhias, houve a ascensão dos “oligarcas”, divididos entre oriundos do mercado financeiro e ex-diretores soviéticos. O grupo assumiu as operações mais rentáveis nas áreas de energia, mineração e comunicações. Com forte influência política, despejou milhões de dólares para garantir a reeleição de Ieltsin, em 1996, contra Gennady Ziuganov, do Partido Comunista da Federação Russa (PCFR).
Os oligarcas assumiram postos importantes no governo, como Vyktor Chernomyrdin, primeiro-ministro de dezembro de 1992 a março de 1998. Foi sob seu comando que foi gestada a bomba-relógio da crise de agosto de 1998. A receita aplicada para controlar a espiral inflacionária foi parecida com a do Brasil no período: a âncora cambial. Com sonegação e déficit fiscal em alta, a valorização do rublo só poderia ser defendida com endividamento externo, emissão de títulos e juros estratosféricos. A conta veio e o país quebrou.
Entre 1998 e 1999, em meio a crise, a Rússia teve cinco primeiros-ministros. Em agosto, Vladimir Putin tomou posse. Com fama de durão, sua popularidade cresceria na onda dos ataques a militantes islâmicos no Daguestão e da invasão da Chechênia, após uma série de atentados atribuídos aos rebeldes deixarem 300 mortos. Percebendo a força política de Putin, Ieltsin o apontou como seu candidato na eleição presidencial de 2000 e, no último dia de 1999, renunciou ao cargo em nome do então primeiro-ministro.
DEMOCRACIA AMEAÇADA
Vladimir Putin se reelegeu presidente em 2004, fez Dmitri Medvedev seu sucessor em 2008, tornando-se primeiro-ministro, e elegeu-se presidente em 2012, agora para um mandato de seis anos. Sua ascensão representou uma inflexão em comparação a Ieltsin: no campo político, promoveu uma centralização do poder e restringiu a atuação das oposições. Na economia, renacionalizou empresas estratégicas, numa campanha conhecida como “caça aos oligarcas”. De acordo com Segrillo, Putin ensaiou um acordo tácito: os outrora poderosos manteriam influência econômica, mas se retirariam da política. Quem não concordou, sofreu com o cerco do governo contra a sonegação. Foi assim que as redes de TV ORT e NTV, críticas ao governo, foram encampadas, além das petroleiras Sibfnet e Yukos.
A combinação de estabilidade econômica e disparada do preço do petróleo — menos de US$ 10 em 1998 para US$ 149 em julho de 2008 — favoreceram Putin. Até a crise financeira global, seu governo viu o desemprego cair pela metade e a percentagem de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza diminuir de 40% para 15%. Para Paulo Afonso de Carvalho, da UnB, a bonança vivida até 2008 explica sua alta popularidade e a fraqueza das oposições. Hoje, a ameaça de uma nova crise aparece no horizonte por conta da forte queda do preço dos barris.
— Putin foi responsável pela devolução do orgulho dos russos. Se a eleição para presidente fosse hoje, seria reeleito com quase 80% dos votos.
No entanto, pairam dúvidas sobre a democracia russa. Desde 2004 a Freedom House, organização que monitora a liberdade no mundo, não considera o país democrático. No seu último relatório, classificou a Rússia como “não-livre”, deu nota 6 para as liberdades civis e os direitos políticos, numa escala em que 7 é a pior nota, e elencou uma série de violações, como perseguições a jornalistas independentes. A organização também criticou a anexação da Crimeia e apontou a participação de tropas russas nos confrontos no leste da Ucrânia, apesar das negativas oficiais.
— Nas eleições presidenciais de 2012, a OSCE (Organização para Segurança e Cooperação Europeia) mostrou que houve desequilíbrio na cobertura da imprensa, irregularidades na contagem dos votos em um terço das seções, uso de recursos públicos em favor do seu partido e manipulação da lista de votantes. O respeito aos direitos individuais infelizmente não existem na Rússia hoje — diz Susan Corke, diretora da Freedom House para a Eurásia.
A anexação da Crimeia, que completou um ano este mês, e a guerra civil na Ucrânia são novos episódios da tensa relação entre a Rússia, seus vizinhos e o Ocidente. Segrillo afirma que Putin manteve um bom relacionamento com os EUA até o presidente George W. Bush anunciar a intenção de instalar um escudo antimísseis no leste europeu. A expansão da OTAN em direção às antigas repúblicas soviéticas também alimenta a desconfiança do presidente russo.
Já Susan enxerga na suposta ameaça da OTAN um sinal de que Putin não quer a paz na região.
— Putin crê que a expansão da OTAN é uma ameaça. Isso mostra a visão dele de que os membros da OTAN são adversários, não aliados. Suas ações têm mostrado que ele não está comprometido com uma paz prolongada no espaço euro-atlântico e, pelo contrário, fomenta um conflito.
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