LOBÃO — PROCESSO CRIATIVO, RIGOR E MISERICÓRDIA
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Nas reflexões que desenvolvi em “Qual o caminho para a criatividade?”, analiso alguns aspectos do surgimento das idéias — ou do que chamamos inspiração. Quem leu o artigo deve se lembrar dos exemplos que retiro de dois ensaios do poeta Wystan Hugh Auden, por meio dos quais mostro como cada escritor tem sua própria história no que se refere à mescla de estímulos exteriores, experiência acumulada, sinapses e conseqüências estéticas que fazem nascer novos textos.
Esse é um dos assuntos a que sempre retorno, pois acredito que refletir sobre o processo de criação literária pode me ajudar a esclarecer parte dos problemas apresentados por meus alunos da Oficina de Escrita Criativa e de outros cursos on-line.
Foi uma agradável surpresa, portanto, receber o novo livro do músico Lobão, Em busca do rigor e da misericórdia — reflexões de um ermitão urbano, no qual ele relata “em profundidade a gênese e a gravação, in the flight” do seu próximo disco, O rigor e a misericórdia. Ao mesmo tempo, Lobão narra acontecimentos de sua vida cotidiana e da conjuntura política do Brasil, mostrando como a criação artística é inseparável do homem e do contexto em que ele vive:
Vou, portanto, contar toda a trajetória do processo criativo, do nascimento à produção, das catorze novas canções. Como vieram as melodias, as harmonias, os detalhes dos arranjos e suas intenções, em que instrumentos foram compostas, juntamente com suas letras, e as histórias do trabalho, os insights, os livros que li no período, o panorama externo em que me encontrava e as pessoas que as inspiraram.
Os capítulos também estão marcados, portanto, de indignação, inseparável da vida intelectual de quem tenha um mínimo de consciência crítica e, desgraçadamente, viva hoje no Brasil, submetido ao que Lobão define como “atmosfera de estupor”.
À parte as justíssimas críticas de Lobão, o livro é um exercício que alguns dos principais artistas realizaram: meditar a respeito do seu próprio processo criativo, o que permite aprimorar sua voz, isto é, lapidar sua autoconsciência — processo necessário e interminável, como expliquei no texto “Estilo e autoconsciência”.
QUIETUDE NO MEIO DO CAOS
Veja-se, por exemplo, o Capítulo 12, “A esperança é a praia de um outro mar”, no qual Lobão narra a criação da música homônima, indissociável da morte de sua irmã, Mônica.
O capítulo abre com a reafirmação de uma certeza:
Não há caso de inspiração fulminante, canção composta sob algum forte impacto emocional ou coisa parecida. Trata-se (para meu espanto) de trabalho feito com método, disciplina, esforço mental, rigor de proporções, associações de idéias e forte e contínuo diálogo com minhas leituras e com o que tenho ouvido esses anos.
O trecho corrobora o que sempre afirmo: o processo criativo é um exercício que nasce principalmente do estudo e da disciplina — e não, como supõem alguns ou querem nos fazer acreditar certos escritores falsamente românticos, da mera inspiração, da visita de uma fada-madrinha.
Como salienta Lobão,
a emoção, quando aflora nesse tipo de processo, vem justamente após o momento em que as obras ganham vida própria, ao constatar que merecem existir por sua beleza recém-inaugurada, que já não há mais como “evaporá-las”, ao verificar que “a coisa deu certo”, momento em que a existência de algo elaborado por você não é mais você, e sim outra coisa, cuja independência é chancelada pelas proporções equilibradas, pelas vozes dos instrumentos, pelo modo como se completam em harmonia, em conflito, e pela letra, que cumpre seu papel poético, rítmico e melódico. Um percurso de concepção, enfim, sobretudo intelectual.
O trecho é perfeito. E serve à minudência da criação literária, em que o ficcionista deve estar atento não apenas às idéias, às cenas, à psicologia das personagens, mas também à forma, à linguagem, incluindo a entonação, o ritmo expressivo, e a eufonia.
Lobão define o processo por meio de uma feliz expressão: “eletroencefalograma da alma” — terminada a criação nascida da ciência, ela já não é mais o criador, mas ao mesmo tempo “o representa intimamente em tudo”.
O capítulo mostra, entretanto, a única música criada sob o efeito de dolorosas emoções. Diante do câncer que devasta sua irmã, a pergunta “Onde habitará a alma?” o fustiga “noite escura de insônia adentro”. Mas, preso a esse núcleo de dor, o artista reafirma a predominância da racionalização:
Os ressentimentos, as frustrações, os nossos anseios mais profundos, nada disso é capaz de definir um sentido real de perda ou de dor. Pensar, racionalizar, esse processo é, de alguma forma, eliminatório.
A descrição das emoções e questionamentos que arrebatam o artista diante da morte da irmã fizeram-me lembrar de Saul Bellow e sua definição da arte: “A conquista da quietude no meio do caos”. Para o romancista, a arte é “uma quietude que caracteriza a prece, também, e o olho do ciclone”, ou seja, uma forma de “deter a atenção em meio à distração”.
“Em busca do rigor e da misericórdia” confirma, a cada capítulo, o que diz o filósofo Louis Lavelle: o ato da atenção produz em nós, de maneira incessante, novos estados de consciência. Por meio dessa forma de refletir, possuímos a nós mesmos, criamos a nós mesmos.
OLAVO DE CARVALHO
Mas quero fechar esta breve análise com outro elogio a Lobão. Ele não se mostra sincero e lúcido apenas ao confrontar suas fragilidades ou seu processo criativo. O Capítulo 6, em que salienta a interferência “dramática” do filósofo Olavo de Carvalho em sua maneira de perceber o mundo é uma prova de coragem intelectual.
Lobão detecta a covardia que também denunciei em minha análise de O imbecil coletivo — e que faz parte do meu novo livro, Crítica, Literatura e Narratofobia, a ser lançado nas próximas semanas: o comportamento comum a todos os “ruidosos detratores do Olavo”, a invariável fuga do debate e a recusa peremptória em ler o que o filósofo escreve.
O capítulo, em que Lobão lista várias de suas influências, termina com a melhor homenagem que Olavo de Carvalho poderia receber: o título do livro e do disco de Lobão foi retirado de um dos ensaios do filósofo, “Poesia e filosofia”, que se encontra em A dialética simbólica, recentemente reeditado:
A filosofia é a busca da sabedoria, a poesia é sabedoria em busca dos homens. Isto é tudo, e não há mais diferença alguma. São como duas colunas do templo, o Rigor e a Misericórdia — aquilo que a sabedoria exige, aquilo que a sabedoria concede.
E, completo, aquilo que Lobão realiza neste novo livro.
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