Admirado pelo brasileiro José Guilherme Merquior, o sociólogo francês de inspirações liberais Raymond Aron (1905-1983) procurou delinear, em sua obra As Etapas do Pensamento Sociológico – um dos itens preciosos da Biblioteca Donald Stewart Jr. do Instituto Liberal e recomendadíssimo para os estudantes da disciplina e da área de Humanidades -, os sistemas concebidos por alguns dos autores que se tornaram referência na interpretação da sociedade.
Aron define Sociologia como o “estudo científico do social, seja ao nível elementar das relações interpessoais, seja ao nível macroscópico dos grandes conjuntos, classes, nações, civilizações ou, utilizando uma expressão de uso corrente, sociedades globais”. Ao longo de sua análise, podemos perceber que uma das grandes questões que permeiam os principais autores elencados por ele é a relação entre teorias gerais do social e as expressões da individualidade. Alguns dos pensadores sociológicos elencados esperam encontrar diretrizes gerais que, mais do que compreender as sociedades, permitiriam agir sobre elas e, de certo modo, orientá-las, moldá-las; outros são mais humildes, entendem melhor as limitações impostas pela pluralidade, e não se prestam tanto a essa arrogância filosófica, tendente ao antiliberalismo e ao centralismo de poder. Procurando destacar sua percepção de como os diferentes aspectos de uma sociedade se interligam, Aron não deixa de mostrar as consequências filosófico-políticas dos pressupostos assumidos pelos autores que investiga, e isso foi o que nos chamou mais atenção em seu livro.
Os fundadores
Na primeira parte, o autor aborda quatro pensadores que ele identifica como representantes da fundação da Sociologia, culminando com uma reflexão sobre o posicionamento que alguns deles tomaram diante das tribulações francesas em 1848. Sua jornada começa com o Barão de Montesquieu, o defensor da tripartição de poderes, a quem elege como precursor da Sociologia. O que se observa é que esse precursor apresenta muitas qualidades que não apareceriam em alguns dos consolidadores propriamente ditos da disciplina; tentando unir uma perspectiva mais generalista – enfocando a convicção na existência de valores e princípios gerais, de um direito natural que permitiria condenar totalmente certas instituições e abraçar outras – com a valorização da diversidade de costumes e tradições de povo para povo, para ele “o objetivo da ordem política é assegurar a moderação do poder pelo equilíbrio dos poderes, o equilíbrio entre povo, nobreza e rei na monarquia francesa ou na monarquia inglesa; o equilíbrio entre o povo e privilegiados, entre plebe e patriciado na república romana”. Montesquieu seria, portanto, o que alguns autores chamavam de liberal aristocrático, ou liberal-conservador.
Na contramão, viria Augusto Comte, que funda a Sociologia com esse nome, como disciplina consciente de si mesma, parte integrante de sua doutrina, chamada Positivismo. Sua filosofia, no plano político, seria a mãe do que hoje chamaríamos de intervencionismo centralizador, sem a valorização do conflito radical do socialismo. Com efeito, Comte enxergava um progresso constante e cristalino, que suplanta todas as etapas e ramos de conhecimento do passado em busca de um conhecimento “positivo”, que erigiria uma “sociedade positiva”; acreditava, por exemplo, no que evidentemente cometia erro ingênuo, que as guerras estavam superadas no século XIX. Nas palavras de Aron sobre Comte, explicita-se a intenção deste último de superar as diversidades e as pluralidades e estabelecer uma unidade pelo consenso, elevando ao estágio “positivo”, alheio à Metafísica e às especulações, todas as searas do saber, inclusive a religião – ele preconizou, ao fim da vida, o que chamou de Religião da Humanidade, um culto materialista aos construtores históricos do saber humano.
Ao contrário de Comte, o terceiro autor, nosso grande conhecido, Karl Marx, valoriza o conflito e a revolução como os caminhos para atingir um estágio superior de sociedade, o comunismo, em que, por fim, esses conflitos estariam superados. Faz uma leitura particular do pensamento do alemão Hegel. A existência, na sociedade industrial e capitalista moderna – também foco de análises da obra de Comte, embora sob seu viés distinto -, de relações de exploração, com dominados e dominadores, explorados e exploradores, é o que, em função das contradições que provoca, condena essa sociedade a se extinguir um dia. Conjugando a filosofia alemã, a economia inglesa clássica e a ciência histórica francesa, o Marxismo original toma a economia e os modos de produção como os modelos fundamentais de apreciação das sociedades, e sustenta que o desenvolvimento do capitalismo fará com que a classe dominada seja, a partir de certo ponto, prejudicada a um limite em que se revoltará e implantará o socialismo. A linha de pensamento que daí deriva torna impossível, para certos intérpretes marxistas apontados por Aron, discernir o observador do atuante; a análise do real na sociedade levaria necessariamente à indignação revolucionária e ao desejo de transformá-lo. Aron faz uma crítica profunda da insuficiência de noções como luta de classes, esgotamento do capitalismo por suas próprias características internas e mais-valia, bem como da ideia ingênua de que o Estado, na chamada “ditadura do proletariado”, se diluiria em uma sociedade plena e sem antagonismos.
O francês Alexis de Tocqueville, de linha oposta ao coletivismo comtista e marxista, vem em seguida com seus temas principais: a democracia americana e a Revolução Francesa. Na linha de Montesquieu, Tocqueville discute com a ideia de que “a desigualdade é o motor e a garantia da liberdade”, acrescentando que a liberdade deve “assentar-se sobre a realidade democrática da igualdade de condições, salvaguardada por instituições cujo modelo lhe parecia existir na América”. O poder deve ser exercido de acordo com as leis, precisando ser limitado por outros poderes, através de uma “pluralidade de centros de decisão, de órgãos políticos e administrativos, equilibrando-se uns aos outros”. É um teórico da liberal-democracia, avesso ao despotismo, mas simpático a determinados valores aristocráticos. Era, no dizer de Aron, “um conservador liberal, resignado com a modernidade democrática, apaixonado pelas liberdades intelectuais, pessoais e políticas. Para ele, essas liberdades estão encarnadas nas instituições representativas, que as revoluções sempre põem em perigo. Está convencido de que, ao se multiplicarem, as revoluções tornam cada vez mais improvável a sobrevivência das liberdades”.
Em conclusão comparativa dessa primeira parte, Aron situa que cada um desses autores dá origem a uma escola sociológica. A primeira, baseada em Montesquieu e Tocqueville, seria a da “sociologia política” francesa, pouco dogmática, de pesquisadores interessados “antes de tudo na política, que, sem desprezar a infraestrutura social, aceitam a autonomia da ordem política e têm ideias liberais”. Aron se considera ligado a essa escola, que seria, por óbvio, a mais simpática às nossas ideias, também. A segunda, a de Augusto Comte, coloca a ênfase “sobre a unidade do todo social e retendo o conceito de consenso como conceito fundamental. Multiplicando análises e conceitos, esforça-se por reconstruir a totalidade da sociedade”. A terceira, a marxista, “combina a explicação do conjunto social a partir da infraestrutura socioeconômica com um esquema do futuro que garante a seus fiéis a vitória”.
Politicamente, Aron associa Comte com a “visão organizadora daqueles que hoje chamamos de tecnocratas”, que, sem qualquer ardor ideológico, preferem apostar no conhecimento técnico, exercido em vastas estruturas burocráticas, para conduzir os rumos da sociedade; Marx, “à visão apocalíptica dos que, ontem, eram revolucionários”; Tocqueville, ecoando Montesquieu, à “visão mitigada de uma sociedade onde cada um possui alguma coisa, e onde todos, ou quase todos, estão interessados na conservação da ordem social”.
De Durkheim a Weber
A segunda e última parte do livro se dedica à análise de autores quase contemporâneos uns dos outros, que viveram entre o final do século XIX e o começo do século XX. Embora menos emblemáticos, do ponto de vista filosófico-político, que os autores da primeira parte, não são, por isso, menos interessantes. Os três estão objetivamente interessados em fazer da análise social uma ciência – e por isso, as relações entre o conhecimento científico e a filosofia moral ou a religião são centrais em suas preocupações. Conhecido por seus estudos sobre o suicídio e o que se poderia chamar de religião primitiva (como o totemismo e o animismo), o francês Émile Durkheim é um herdeiro direto da escola de Comte e concede mais protagonismo ao coletivo sobre o individual do que seria agradável a alguém de pendores mais liberais. Mesmo Raymond Aron não esconde sua antipatia pelo pensamento de Durkheim. Socialmente, ele enxergava também a utilidade do conhecimento sociológico para buscar o “consenso” e frear a anomia da sociedade moderna, rejeitando a visão baseada nos conflitos e nos meios violentos do Marxismo. Prefere remontar ao utopismo de Saint-Simon e ao Positivismo; o socialismo seria uma reação à “anarquia econômica”. Tal como Comte, não dava muita importância a parlamentos, partidos e eleições, embora fosse, nesse ponto, menos radical que o fundador da Religião da Humanidade.
Talvez o menos conhecido entre os autores cujas obras são resumidas no livro, o italiano Vilfredo Pareto, que nós também ignorávamos quase de todo, foi o que mais nos surpreendeu por apresentar ideias interessantes e atualíssimas. A ideia central de Pareto é a restrição do pensamento científico, mesmo aplicado à Sociologia, em seu meio, sem dele redundar qualquer consequência moral de aplicação prática generalizada. Era inimigo do cientificismo; para ele, “nada mais contrário ao espírito científico do que a supervalorização da ciência”. Pareto é um grande crítico das ideias típicas das ideologias revolucionárias e esquerdistas; um de seus alvos prediletos é o que Aron chama de “humanitarismo exagerado”, o momento em que “uma sociedade perde o sentido da disciplina coletiva”, o que é tão prejudicial quanto a despótica e brutal crueldade. Diz Pareto: “é incontestável que há um século a repressão dos crimes se tornou cada vez mais fraca. Não passa um ano sem que sejam promulgadas novas leis em favor dos delinquentes, e a legislação existente é aplicada pelos tribunais e pelos júris com indulgência cada vez maior. Pareceria, pois, que a piedade com relação aos delinquentes aumenta, e diminui a piedade com respeito às suas vítimas”. Os defensores dos “direitos humanos” ao estilo PSOL de ser não devem gostar muito de Pareto… Avesso ao Positivismo e ao Marxismo, Pareto sustenta a importância da desigualdade de riquezas e contesta o igualitarismo socialista. Baseado em sua experiência de engenheiro, endossa a livre iniciativa e contesta as exacerbadas intervenções do Estado no mercado. No entanto, paradoxalmente, Pareto também tinha um lado pessimista algo nietzschiano, acreditando que, no ser humano, a emoção sempre predomina sobre a razão, que articula justificativas lógicas para motivações não-lógicas. Isso o leva a se aproximar de algumas soluções autoritárias, e inclusive, o que é motivo de polêmica nas interpretações sobre seu trabalho, chegou a ter um flerte com o fascismo italiano, a despeito de seu antiliberalismo, porque provavelmente viu nele “uma reação sadia contra certos excessos”. Nenhum erro que, por exemplo, o grande austríaco Ludwig von Mises também não tenha cometido. Aliás, Pareto também não nega a ideia sociológica marxista de luta de classes, embora negue sua conformação binária e economicista, o que, ao fim das contas, leva a uma direção muito diferente da proposta original.
Finalmente, o livro encerra com o célebre autor de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Max Weber. As preocupações de Weber, um nacionalista alemão que, conquanto admitisse um rol de ideias liberais, conferia protagonismo a um espírito “imperialista”, de exaltação à grandeza da pátria, próprio de seu tempo, estavam em identificar as originalidades da sociedade ocidental e anglo-americana que justificavam a formação de suas disposições econômicas tão consagradas modernamente, e via na religião um aspecto importante para essa análise.
As Etapas do Pensamento Sociológico é um passeio lúcido de Aron pelos pilares formadores da Sociologia que, para quem deseja conhecer as ideias políticas liberais, deve servir também como provocação para o aprofundamento nas tensões aí verificadas entre o individualismo e o coletivismo – e como cada autor, bem ou malsucedido, lida com elas. Vale a dica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário