quarta-feira, 11 de novembro de 2015

"Chulices e populismos", por Ruy Castro Folha de São Paulo





Um grupo de teatro do Oregon, nos EUA –um Estado americano que vive do abate de árvores–, anunciou a contratação de 32 dramaturgos para, pelos próximos três anos, "traduzir" todas as peças de Shakespeare para o inglês moderno. Seus mentores estão convencidos de que o público já não entende a linguagem do bardo, em que os personagens se tratam por "thou" quando poderiam chamar-se por "you", que é a mesma coisa –e outras adaptações não tão óbvias.

Essa submissão ao populismo e à chulice ainda nem se consumou e já tem adesões: grupos shakespeareanos de vários outros burgos dos EUA pretendem usar as "traduções". Com isso, uma linguagem que, apesar de todos os arcaísmos, impôs-se à humanidade e contribuiu para elevá-la pelos últimos 500 anos, virá morrer na praia bem no nosso ano de 2015.

As livrarias contêm Shakespeare com apenas as citações famosas, para quem não se interessar pelo resto do texto; resumos das tramas em prosa, em um ou dois parágrafos; e edições anotadas esclarecendo as referências mais obscuras. Tudo bem. Shakespeare tem sido também encenado de todo jeito, com o elenco nu ou com um ator vivendo todos os papéis. Nada a opor. Mas em seu habitat, o palco, a linguagem deve ser sagrada –se servia para Olivier ou Gielgud, por que não serviria para os novos elencos, compostos de mortais?

Há pouco, caiu-me às mãos uma edição recente do "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Abri-a e gelei. Rosa concebeu seu romance num bloco maciço, de 600 páginas, sem parágrafos, como se a fala do narrador Riobaldo fosse um novelo sem fim, e assim o publicou. As pausas do original estavam na música do texto.

Pois esta edição da Nova Fronteira esquartejou-o em 1.800 parágrafos. A exemplo do que vão fazer com Shakespeare, por que também não o "traduzem" para o português?

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