O ex-diretor da Organização Mundial de Comércio diz que a estratégia da presidente Dilma de culpar o cenário internacional pela crise econômica é um velho truque dos políticos
CRISE
"A maioria dos países da América Latina está melhor do que o Brasil"
O francês Pascal Lamy é um otimista empedernido. Ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) entre 2005 e 2013 e, segundo a revista britânica Prospect, um dos 50 pensadores mais importantes do mundo, Lamy não considera o cenário atual tão grave quanto os economistas mais sisudos gostam de dizer. “O ritmo de crescimento do PIB da China diminuiu, mas ainda é enorme, e os Estados Unidos já estão foram da crise”, diz Lamy.
"O presidente Lula fez um trabalho duro para reduzir a desigualdade social.
O problema agora é a capacidade de o País sustentar isso"
Seu otimismo só mostra abalos quando analisa a conjuntura brasileira. “Vejo tempos difíceis para os próximos anos”, afirma. “O boom das commodities está acabado. O Brasil não está melhorando a competitividade de sua economia. Há depreciação do câmbio, inflação alta, desarranjos nas finanças públicas. Tem uma enorme lista de situações negativas.” Em entrevista concedida pouco antes de dar uma palestra na Faap, em São Paulo, sobre as mudanças no comércio internacional nos últimos 10 anos, este economista de 68 anos aponta o culpado pela situação: “O Brasil criou seus próprios problemas.”
"A reaproximação com Cuba, liderada por Obama, mostra que pessoas
razoáveis podem fechar questões do passado e seguir em frente"
Há visões sombrias sobre o crescimento do PIB mundial nos próximos anos. Qual é a real dimensão do problema?
Depende da forma como nós olhamos para a crise. Existem vários problemas de longo prazo, que têm a ver com o debate da estagnação secular (teoria segundo a qual o PIB do planeta não vai acelerar por um amplo período), mas o crescimento mundial não será muito menor do que antes da crise de 2008. Há um consenso para os próximos dez anos de que os emergentes vão crescer 5%, o que é uma boa escala, os Estados Unidos, por volta de 2,5%, e a União Europeia, em torno de 1,5%.
O sr. vai na contramão da maioria dos economistas, que parecem estar bastante preocupados com o futuro próximo. Por que essa diferença?
Eu não sei se podemos caracterizar a economia mundial como uma situação de crise. Houve uma crise em 2008 e em 2009, mas estamos saindo dela em níveis e velocidades diferentes.
Mas até a China diminuiu seu ritmo de crescimento.
A China ainda está avançando bastante. A taxa de crescimento diminuiu, mas ela ainda é enorme. Apenas em 2015, a economia chinesa vai crescer 800 bilhões de dólares. É menos em termos de ritmo, mas, hoje em dia, 6% representam mais do que os 10% de cinco anos atrás.
Há alguns dias foram divulgados indicadores negativos da economia americana, como a redução dos níveis de emprego e do consumo. Isso representa uma preocupação?
Os Estados Unidos estão fora da crise. Para uma economia madura como a americana, crescer 2,5% ano é uma boa performance. Não podemos dizer o mesmo da Europa, que enfrenta dilemas como o envelhecimento da população e o aumento da imigração.
Por que a América Latina em geral e o Brasil em particular vivem uma situação muito mais difícil?
Toda a América Latina está enfrentando o fim do “boom” de commodities. Porém, alguns países estão indo melhor do que outros e isso tem a ver com políticas internas. São decisões tomadas por governos que fazem com que uma nação fique melhor ou pior do que a média.
Em 2013, o sr. disse que estava muito confiante no desempenho dos países emergentes. O sr. ainda pensa dessa maneira?
Em geral, os países emergentes foram menos afetados pela crise de 2008 do que os Estados Unidos e a União Europeia, que viram seu sistema financeiro enfrentar sérios problemas. Países como China, Índia, Indonésia, Turquia, México e Brasil estavam mais preparados, com significativas melhoras nas finanças públicas.
Mas o Brasil teve um crescimento muito mais lento do que o esperado e agora está em recessão. O que deu errado?
A economia brasileira se deteriorou muito nos últimos anos, mas isso é resultado de decisões políticas. Os problemas que o Brasil enfrenta foram criados por ele próprio. Não foram feitos no mundo. A África, por exemplo, foi atingida em cheio pela crise, mas agora a economia está muito melhor do que antes.
Para justificar as dificuldades, a presidente Dilma Rousseff disse que “o Brasil está tentando sobreviver a uma crise internacional.” Isso não corresponde à realidade?
Você sabe, culpar o estrangeiro é um velho truque na política interna. A maioria dos países da América Latina está indo melhor do que o Brasil. Então, não é só a crise internacional que afeta o desempenho brasileiro.
Quer dizer que o Brasil está imune à crise econômica internacional?
É claro que não é assim. A crise na Europa, por exemplo, teve alguma influência na economia brasileira. Afinal, a Europa é um parceiro comercial importante, como são também os Estados Unidos e os outros países ricos. No mundo globalizado, há muitas conexões. A questão é que o Brasil está mais sensível em decorrência da volatilidade dos preços das commodities. Mas isso não deveria ser tão prejudicial ao País. O problema é que as exportações brasileiras são menos diversificadas do que deveriam ser.
Quais são as suas expectativas para o Brasil nos próximos anos?
Vejo tempos difíceis para os próximos anos. Há muitas coisas caminhando para a mesma direção. O boom das commodities está acabado. O Brasil não está melhorando a competitividade de sua economia. Há depreciação do câmbio, inflação alta, desarranjos nas finanças públicas. Tem uma enorme lista de situações negativas.
Os brasileiros estão muito decepcionados com o governo, fazendo protestos e pedindo o impeachment da presidente. O que pode ser feito para o País superar a crise?
Assim como em qualquer democracia, a insatisfação é um direito das pessoas. Há muitos problemas acumulados, que precisam ser corrigidos. No final das contas, o que interessa na economia é saber quantas pessoas estão empregadas e a qualidade desses empregos. Eu vejo que foi feito um trabalho muito duro pelo ex-presidente Lula para reduzir as desigualdades no Brasil. O problema agora é a capacidade de o País sustentar isso. Como você consegue sustentar um bom sistema social com um crescimento lento? É muito difícil.
Quando comandava a Organização Mundial do Comércio, o sr. chegou a dizer que os mais pobres deveriam ter um tratamento especial no comércio internacional. De que forma isso funcionaria?
Na verdade, no antigo mundo do comércio, onde os obstáculos eram as tarifas e subsídios, essa afirmativa estaria correta. Mas, no mundo atual, os obstáculos não são mais esses. As tarifas e subsídios importam muito menos do que no passado, por causa dos sistemas de produção cada vez mais globalizados.
Os BRICS parecem, de forma geral, terem perdido a relevância. Por que isso aconteceu?
Em primeiro lugar, o conceito do BRICS não é racional. Por que só Brasil, Rússia, Índia e China? Por que não Indonésia? Por que não México? Por que não Turquia? Mas não é verdade que eles perderam a relevância. Os países emergentes respondem por mais da metade da economia mundial. Isso não é ser irrelevante. A taxa de crescimento dos países emergentes é duas vezes maior do que a dos Estados Unidos, quatro vezes superior à dos países europeus e uma vez a taxa observada no Japão.
É possível conciliar desenvolvimento econômico com as novas demandas da sociedade, como preservação ambiental e avanços sociais?
Hoje, o mundo está ancorado, basicamente, em três modelos. O primeiro é o modelo dos Estados Unidos, com bastante liberdade individual, liberdade de mercado e muita tolerância com a desigualdade. O segundo é o da China, que não oferece liberdade individual, mas possui eficiência coletiva. O terceiro é o europeu, com bastante liberdade e um grande sistema social solidário. Ou seja, os Estados Unidos proporcionam liberdade, mas não são muito solidários. A China não é tão livre assim, mas bastante solidária. Já a Europa está entre os dois, livre e solidária. Para proporcionar um sistema relativamente sofisticado, que permite abordar melhor as desigualdades sociais, é preciso, pelo menos, 2% de crescimento. Os Estados Unidos estão acima disso, a China também. A Europa cresce menos que isso.
Em 2010, o sr. disse que a Europa precisava de imigrantes para manter seus padrões de vida. O sr. acredita que a imigração teve alguma influência no crescimento econômico do continente?
Ainda não. A maioria dos europeus está relutante em aumentar a imigração. A Europa, a longo prazo, terá de aceitar a imigração se quiser manter o seu modelo de civilização. O problema é que a maioria dos europeus continua contrária à chegada de estrangeiros. Se você comparar a Europa com o Canadá ou com a Austrália, verá que a mentalidade é totalmente diferente.
A França, seu país, também parece mergulhada num pessimismo sem fim.
A França é, por natureza, anti-capitalista e anti-mercado. Isso é parte da cultura francesa e explica por que dois terços dos franceses pensam que a globalização é algo ruim para o país. Os franceses são os campeões mundiais em pessimismo. Como resultado, a França está se adaptando de forma muito vagarosa aos novos tempos.
Quais são os efeitos positivos da reaproximação história entre Estados Unidos e Cuba?
Do ponto de vista econômico, o impacto é muito pequeno, dado o tamanho de Cuba. Porém, os efeitos políticos da reaproximação liderada por Barack Obama são muito importantes. Isso mostra que pessoas razoáveis podem fechar questões do passado e seguir em frente.
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