segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

GILBERTO FREYRE - 'NÉLSON RODRIGUES , ESCRITOR'



NÉLSON RODRIGUES, ESCRITOR

Dizem-me que um "colunista" - pobre palavra de origem tão nobre quanto, quase sempre, degradada - estranhou que, em artigo para uma revista do Rio, eu considerasse Nelson Rodrigues não só "um novo, Eça de Queirós" como, na prosa jornalística, "mais vigoroso do que Eça".
Nada mais cristalinamente exato como equivalência. Estou agora mesmo procurando desenvolver num pequeno ensaio o que chamo "sugestões para uma sociologia das equivalências literárias". Uma sociologia que, dentro da Sociologia da Literatura, considere equivalências de conteúdos sociais - em poemas, em romances, em ensaios, em peças de teatro - ao mesmo tempo que coincidências de formas de expressão literária. Aliás, no trabalho que acabo de escrever para ser lido no Pen Club, no Rio, já me aventuro a esboçar algumas dessas sugestões. Desenvolvidas, serão expostas noutra conferência, a ser proferida em São Paulo.
As equivalências da espécie aqui sugerida existem. Precisam, é certo, de ser identificadas com extrema acuidade. Mas, uma vez identificadas, dão ao estudo comparado de literaturas que se faça sob um critério sociológico, complementar do estético, uma extraordinária riqueza.
Nelson Rodrigues avulta na literatura atual do Brasil, como o nosso maior teatrólogo. O maior de hoje e o maior de todos os tempos. Pode ser considerado um equivalente, nesse setor, do Eugene O'Neil: do que foi O'Neil na literatura, dos Estados Unidos.
Mas ele é também o mais incisivamente escritor, sem deixar de ser vibrantemente jornalístico, dos cronistas brasileiros de hoje. O maior dos jornalistas literários - potencialmente literários - que tem tido o Brasil. Nesse setor é um equivalente do que foi e é - quem o superou? - Eça de Queirós na literatura portuguesa. Apenas com esta diferença: no brasileiro há um vigor de expressão maior do que em Eça - um Eça até hoje inatingido e, talvez, inatingível, na graça artística que soube dar ao seu jornalismo literário.
Por jornalismo literário não se deve entender o jornalismo que se ocupe de assuntos literários; e sim o que se caracteriza pela potência literária do jornalista-escritor. Um característico relativamente fácil de ser captado: contanto, que se dá tempo ao tempo.
O escritor-jornalista ou o jornalista-escritor é o que sobrevive ao jornal: ao momento jornalístico. Ao tempo jornalístico. Pode resistir à prova tremenda de passar do jornal ao livro.
As correspondências de Eça de Queirós, de Paris e da Inglaterra, para jornais portugueses e brasileiros, passaram a ter seu maior esplendor quando publicadas em livro. E esse esplendor continua. Enquanto artigos, para o momento em que apareceram em jornais, magníficos - magníficos como pura expressão jornalística - reunidos em livros não resistem à terrível prova: morrem. Fenecem. Rosas de Malherbe. Conchas de Emerson. Vários exemplos poderiam ser invocados dessa precariedade da expressão apenas jornalística: os artigos reunidos em livro de Costa Rego - jornalista magistral; os de Annibal Fernandes - outro, jornalista magistral; os de Plínio Barreto - ainda outro jornalista admirável. Mas admiráveis, os três, quando lidos quentes e quase intoleráveis quando frios.
Em Nelson Rodrigues, como em Eça de Queirós, o escritor vence o tempo como escritor, embora servindo-se do jornal; da correspondência para jornal; do comentário ao acontecimento do dia. Nelson Rodrigues é, dos dois, o mais vigoroso nessa espécie de expressão literária: a transferível de jornal para livro. Ele é lido em livro, tão forte de virtude literária, quanto lido em jornal. Repete Eça. Repete Eça neste particular, com maior vigor do que Eça.

Fonte: FREYRE, Gilberto. Nelson Rodrigues, escritor. In: RODRIGUES, Nelson. O reacionário: memórias e confissões. Rio de Janeiro: Record, 1977. p. 9-10.

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