segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

ARTIGO - GILBERTO FREYRE - DIÁRIOS E MEMÓRIAS - ABRIL DE 1941

DIÁRIOS E MEMÓRIAS

É um gênero de literatura - às vezes de sub-literatura, é certo, porém, outras vezes de literatura na sua expressão mais forte e na sua forma mais transbordante de vida - de tradição muito débil na nossa língua: o diário ou o livro de memórias. Entretanto, reune ao interesse artístico ou literário - quando o possue, ostensivo ou dissimulado - um interêsse humano considerável. É material ótimo para a análise e a interpretação do caráter de um povo ou da fisionomia de uma época, através da personalidade ou simplesmente da pessoa que, ora pelo excesso de extroversão, ora pelo gosto de introspecção revela aspectos interessantes ou traços profundamente íntimos do seu tempo ou da sua gente. E não apenas de sua própria e restrita intimidade individual. Traços de patologia social e não apenas pessoal.
O gôsto pela leitura de tais documentos - quando não os iluminam, de dentro para fora, as luzes festivais de personalidades em grandes evidência ou de vida espetacular - não é entretanto um gosto comum e fácil. Ao contrário: precisa, em geral, de ser adquirido. Adquirido aos poucos. É um tanto como o gosto pelo wiskey e pela própria cerveja amarga em relação com o entusiasmo fácil - de adolescente, de moça, antigamente, de deputado federal brasileiro - pela champagne doce e pelos vinhos de sobremesa. Mas é um gosto que, uma vez adquirido, nos enriquece a vida. Junta à experiência de cada um uma variedade de experiências alheias; ao sabor de nossa época, o de outras épocas; ao conhecimento da intimidade do nosso povo, o da intimidade de outros povos. E a verdade é que êsse conhecimento ou êsse sabor do geral através do particular, nós o vamos recolher mais puro em diários onde se registra o miudo de preferência ao grandioso; em memórias onde se anotam as repetições da vida doméstica ou pessoal, de preferência aos fatos extraordinários ou excepcionais.
É claro que para o leitor guloso de pitoresco ou ansioso de dramaticidade ou de regalo simplesmente literário ou estético - o leitor a quem só um Dannunzio memorialista é capaz de contentar - tais repetições se apresentam como coisa monótona e tristonha, nas quais êle não acha jeito de enxergar valor histórico de espécie alguma; nem significação sociológica ou psicológica por mais rasteira. Diante de um memorialista pachorrento que nos fale, com voz igual e baixa, de nascimentos de filhos e de netos, de casamentos e mortes na família, de doenças predominantes em sua casa, de fugas de suas crias, de remédios caseiros e tradicionais, de intimidades suas e de parentes - tudo isso com simplicidade e mesmo com simplismo, com candura e até com ingenuidade - é natural que o guloso de pitoresco, de variedade, de aventura, de heroísmo, de drama, se sinta incomodado e até revoltado, como um meu conhecido que muito se indignou com a publicação do diário íntimo do engenheiro Vauthier e, depois, com o do velho Felix Cavalcanti.
Mas se do mesmo leitor alguem que se interesse em experiências de transformar amantes de champagne em amigos de bebidas profundas como o wiskey, fizer não só um estudante de literatura menos ostensivamente literária, dando-lhe a lêr memórias e diários clássicos - desde Santo Agostinho aos ingleses, e desde o velho Pepys aos da época de colonização puritana nos Estados Unidos - como um estudante de sociologia e de psicologia, que chegue até ao estudo sociológico e psicológico dos diários e das confissões e à análise e interpretação das recorrencias na vida doméstica, estou certo de que o mesmo leitor - admitido, é claro, o seu bom capital de inteligência, de sensibilidade e de gosto - se tornará um entusiasta dos diários e das memórias monótonas. E um entusiasta - aventuro-me a acrescentar - capaz de preferir, às vezes, tal monotonia à prosa polifônica dos memorialistas dannuzianos. Não que estes não sejam sugestivos e até fascinantes com sua exaltação do heróico, do raro, do genial e até do anormal. Falta-lhes, porém, o encanto da rotina, da repetição, da constância, da normalidade, da regularidade na qual tantas vezes é agradável descansar do ruído das exterioridades grandiosas e da impressão das aventuras heróicas. Não só agradável como proveitoso à saúde inteletual. E humano, demasiadamente humano.

Fonte: FREYRE, Gilberto. Diários e memórias. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 15 abr. 1941.

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