segunda-feira, 26 de novembro de 2018

"Pequenos gestos insignificantes", por- Gustavo Pacheco “As únicas derrotas e as únicas vitórias que decidem a vida são as que você perde ou ganha sozinho, perante si mesmo”


"Pequenos gestos insignificantes", por Gustavo Pacheco

“As únicas derrotas e as únicas vitórias que decidem a vida são as que você perde ou ganha sozinho, perante si mesmo”

“É difícil acompanhar dia após dia o aumento progressivo das hostilidades. De repente você está cercado de todos os lados, sem saber como nem quando. Pequenos fatos isolados, pequenos gestos insignificantes, pequenas ameaças jogadas ao vento. Hoje uma briga no bonde, amanhã um artigo no jornal, depois de amanhã uma janela quebrada. Tudo parece casual, sem conexões, meio de brincadeira. Até que um certo dia você percebe que não consegue mais respirar.”

Essas palavras saíram de um romance, mas poderiam ter saído de um diário. O romance se chama Por dois mil anos e nele o narrador sem nome, um jovem estudante judeu, descreve a ascensão do antissemitismo na Romênia do entreguerras. Lançado em 1934, causou muitos problemas para seu autor, o escritor, dramaturgo e jornalista Mihail Sebastian.

Embora se apresente como ficção, Por dois mil anos, publicado no Brasil no ano passado, é um livro profundamente autobiográfico. Sua epígrafe é a célebre frase de Montaigne: 

“Ouso não somente falar de mim, mas falar somente de mim”. Sebastian era judeu e foi testemunha e alvo da onda de violência que, anos mais tarde, desaguaria na destruição de mais da metade da população judaica da Romênia, estimada em cerca de 750 mil pessoas antes da Segunda Guerra Mundial.

Por dois mil anos é um livro desconcertante, em grande medida por causa do tom contido e equilibrado do narrador, que presencia e sofre barbaridades sem deixar que afetem sua sanidade e sua integridade de caráter: “Por enquanto, recebi dois socos durante a aula de hoje e escrevi oito páginas de anotações. Por dois socos, foi uma pechincha.”

Os momentos mais contundentes do livro são os diálogos do narrador com seus amigos, que pouco a pouco o abandonam e passam a apoiar sem ressalvas a violência antissemita. Ainda assim, ele não rompe relações, nem expressa raiva ou amargura, mantendo sua dignidade estoica: “As únicas derrotas e as únicas vitórias que decidem a vida são as que você perde ou ganha sozinho, perante si mesmo.”

Entre os amigos de Sebastian, estavam alguns dos mais importantes artistas e intelectuais romenos do século XX, como Eugène Ionesco, Mircea Eliade e Emil Cioran – alguns deles reconhecíveis em personagens de Por dois mil anos. Quando o livro estava para sair, Sebastian pediu que seu amigo e mentor, o professor de lógica Nae Ionescu, escrevesse o prefácio. Ionescu, que serviu de inspiração para o personagem Ghiţă Blidaru, era uma figura carismática que exerceu grande influência sobre Sebastian e muitos outros escritores de sua geração. Quando o prefácio chegou, Sebastian ficou perplexo: era um texto violentíssimo, que atacava os judeus e dizia que eles nunca seriam realmente romenos – nem mesmo o autor do livro.

Numa decisão que até hoje é motivo de debate, Sebastian decidiu incluir o prefácio no livro, o que gerou um escândalo: Por dois mil anos foi atacado por comunistas e fascistas, judeus e cristãos, liberais e extremistas. Por que Sebastian se sujeitou a isso? Alguns dizem que, mesmo magoado, ele continuava prezando a amizade com Ionescu; outros dizem que o prefácio é a ilustração perfeita do processo de ascensão do antissemitismo, que é o tema central do livro.

Em 1935, pouco depois de o livro ser publicado, Mihail Sebastian começou a escrever um diário. As semelhanças entre os dois são notáveis: como disse o escritor inglês John Banville, Por dois mil anos é um romance escrito como se fosse um diário, enquanto o diário de Sebastian foi escrito como se fosse um romance. Ainda inédito em português, o diário é um registro ímpar de um ser humano que insiste em manter sua humanidade enquanto, à sua volta, o mundo se decompõe.

A primeira anotação no diário, em 12 de fevereiro de 1935, diz o seguinte: “O rádio está sintonizado em Praga. Estou escutando um concerto de J. S. Bach em sol maior, para trompete, oboé, cravo e orquestra.” A partir daí, os comentários de Sebastian sobre Mozart e Debussy, Shakespeare e Proust, se misturam a seu testemunho da escalada do fascismo, da perseguição aos judeus, do caos instaurado pela guerra e das cautelosas esperanças depois que a Romênia muda de lado e passa a apoiar os Aliados. A última anotação é de 31 de dezembro de 1944: “É o último dia do ano. Tenho vergonha de estar triste. No fim das contas, foi o ano que trouxe de volta a minha liberdade. Mesmo com toda a amargura e todo o sofrimento, mesmo com todas as decepções, esse fato básico permanece.”

Mihail Sebastian sobreviveu à Segunda Guerra Mundial e ao Holocausto. Morreu em 29 de maio de 1945, aos trinta e oito anos de idade, atropelado por um caminhão quando atravessava a rua.



O romancista romeno Mihail Sebastian (1907-1945) - Divulgação


Gustavo Pacheco é diplomata e antropólogo.

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