terça-feira, 8 de dezembro de 2015

KARL MARX SEGUNDO ERIC VOEGELIN - SEGUNDA PARTE



3.1. A génese do socialismo gnóstico.
O ponto de partida para o movimento do pensamento de Marx parece ser a posição gnóstica herdada de Hegel. O movimento do intelecto na consciência do ser empírico é a fonte maior de conhecimento. Donde a revolta contra a religião como esfera que reconhece um realissimum para além da consciência. ADissertação de 1840-41 abre o prefácio com um ataque a Plutarco que ousa criticar Epicuro. A confissão de Prometeus "Numa palavra, odeio todos os deuses" é a sentença lançada contra os que se recusam a reconhecer a autoconsciência humana (das menschliche Selbstbewußtsein ) como a suprema divindade.
O contexto desta afirmação é o debate sobre a existência de Deus. Quaisquer demonstrações são logicamente inválidas. Os deuses são forma real apenas na imaginação e apenas demonstram a existência da auto-consciência humana. Levem papel-moeda para onde ele não é aceite, e logo verão o que acontece. Na prova ontológica, o ser que é dado é a auto-consciência humana. A forma geral das provas é esta: "Como o mundo está mal organizado, ou é irrazoável, Deus tem de existir". Isto apenas significa que Deus só existe para quem o mundo é irrazoável. Marx sumaria o argumento afirmando que a "irrazão é a existência de Deus". A soberania da consciência e a revolta anti-teística de Marx volve-se, depois, contra os sistemas de Aristóteles e de Hegel: de tal modo explicam o mundo que interrompem qualquer avanço ulterior da filosofia. Sendo impossível o aperfeiçoamento, os sucessores devem virar-se para a prática filosófica e para a crítica da situação. A mente teórica deve virar-se como vontade para a realidade mundana que existe independente dela. Esta semi-contemplação não é muito edificante. Marx estava interessado na filosofia pós-aristotélica de Demócrito e Epicuro porque sentia-a, pessoalmente, em paralelo com a situação pós-hegeliana. A cultura religiosa da Idade Média seria da "era da irrazão realizada", mais uma falácia de Marx. Na verdade, quando se atinge o impasse de Hegel e a especulação filosófica se encontra "concretizada", o que um realista espiritual deve fazer, é abandonar a gnose e regressar às experiências originais da ordem, à experiência de fé. A "necessidade" apontada por Marx era apenas um sintoma da sua revolta demoníaca contra Deus. Uma vez concretizada a auto-consciência, não concebia regressar à irrazão da fé; apenas poderia avançar para a liquidação da filosofia, a crítica radical do mundo e a instauração de novos deuses.
A atitude de revolta efectua-se historicamente mediante a incarnação do logos no mundo, por meio da acção revolucionária. Para Hegel o logos estava incarnado na realidade e poderia ser descoberto pela reflexão do filósofo. O desdobramento da Ideia não era acção humana. A gnose era contemplativa. A definição da figura histórica como pessoa cujas acções se conformam a movimento da ideia não é receita para se tornar uma figura histórica. Esta perversão da gnose activa surge com Marx.
Marx era um paráclito sectário no mais puro estilo medieval, um homem no qual o logos se incarnara e através de cuja acção a humanidade se tornaria o receptáculo do logos tal como Comte, por exemplo. Não concebeu o espírito como um transcendental que desce para o homem, mas como a verdadeira essência do homem que se revela. O verdadeiro homem deve ser emancipado das cadeias. A sua auto-consciência divina é o fermento da história. A grande revolução trará o grande homem. A pneumopatologia de Marx consiste nesta auto-divinização e auto-salvação do homem; o logosintramundano é proclamado contra a ordem espiritual do mundo.

3.2. Teses sobre Feuerbach
Após o estudo do cerne do pensamento de Marx vejamos aCrítica das Teses de Feuerbach, um verdadeiro dicionário de conceitos marxianos. Se estudadas na sua sequência de 1 a 11, seguimos o curso da pseudo-lógica. Mas se invertermos parcialmente a ordem, (11,6,7,4,8,3,1,9,10) compreendemos a especulação . Aponta-se o conflito entre filosofia e não-filosofia na tese 11: "os filósofos só interpretaram o mundo; trata-se agora de o mudar". Mas repare-se que "interpretação" e "mudança" não equivalem a "teoria" e "prática" de Aristóteles. Claro que a função do bios theoretikos é interpretar o mundo e ninguém sério sustenta que a contemplação é um substituto da prática. A prática tem relevância (es kommt darauf an). Ademais apenas se pode agir no mundo e não mudá-lo. A intenção de incorporar na prática uma atitude só é possível em contemplação. A "prática" de Marx pode mudar o "mundo" porque o mundo é compreeendido como fluxo de existência, no qual a ideia se move concretamente. O logos não é uma ordem espiritual, mas uma ideia movendo-se dialecticamente dentro do mundo. Esta praxis pseudológica é atingida se nos lançarmos ao fluxo.
O "mundo" é o fluxo concreto de história. Não existe outro destino senão o social. Marx critica Feuerbach que dissolveu psicológicamente a religião como construção ilusória do homem mas ainda deixou o homem como entidade individual. Para Feuerbach, Deus é a essência do homem, Homo homini Deus. Agora, o espectro de Deus deve ser abatido. Na Tese 6 mostra-se insatisfeito com a dissolução de Feuerbach. Afinal o indivíduo mais não é senão a totalidade das relações sociais. É o meio social que nos confere crenças (Tese 7). É esse o facto da auto-alienação religiosa; e Feuerbach reduziu o mundo religioso à base mundana. Mas falta saber por qual razão a base mundana se separa de si própria e se fixa um céu. A contradição na base mundana tem de ser compreendida e revolucionada. (Tese 4).
A vida social é essencialmente prática (Tese 8). A vida não tem dimensão pessoal nem dimensão contemplativa. Todos os mistérios que poderiam induzir o misticismo em teoria, encontram a sua solução racional na prática humana. Marx leva a cabo o fechamento hermético ou clausura do fluxo de existência prática contra todos os desvios e contemplações e condena tentativas de produzir a mudança social mediante a educação. As circunstâncias apenas podem mudar através da acção humana. A auto-transformação é a "prática revolucionária" (3). A ideia de um sujeito de conhecimento e de moral distinto de objectos de conhecimento e acção moral deve ser abolida e o sujeito concebido como objeccional,gegenstäntdliche, e a actividade humana como actividadde objeccional. A realidade deve ser concebida como actividade humana sensorial (sinnliche menschliche Tätigkeit.) (1). Em termos de tradição filosófica, a prática revolucionária é definida como fluxo existencial em que o sujeito é objectificado e o objecto subjectivado. É essa a posição da humanidade social enquanto distinta do homem individual burguês bürgerliche, (9 e 10).

3.3. Crítica do céu e crítica da terra.
A crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica. Agora o homem pode reconhecer que é o super-homem e deixar de se considerar Unmensch. A religião é a auto-consciência de um homem que ainda se não encontrou a si mesmo, a teoria geral de um mundo pervertido. Confere realidade imaginária à essência humana, Wesen, que não tem verdadeira realidade. A miséria religiosa é a manifestação de miséria real e, ao mesmo tempo, protesto contra ela. A religião é o grito dos oprimidos, "o ópio do povo", KRR p.607. A destruição da religião é o começo da libertação, não é o fim. A felicidade ilusória do povo deve agora ser substituida pela sua felicidade real. As flores imaginárias na cadeia rosacruz não foram rasgadas para que a humanidade ficasse só com cadeias e sem consolação. Deve-se quebrar a cadeia e a flor. 607 ff. A crítica do céu deve ceder o lugar a uma crítica da terra, a teologia à política.
Para levar a cabo esta crítica do direito e da política, Marx não critica instituições mas sim a Filosofia do Direito, de Hegel. Nota a diferença de tempo histórico entre a Alemanha e o Ocidente. As Revoluções francesa e inglesa aboliram o antigo regime e estabeleceram o estado nacional moderno como expressão da sociedade burguesa. Foram realizadas por uma classe mas experimentadas como representativas por nações inteiras. Nem sempre isto é possível. Uma classe tem de evocar um momento de entusiasmo, em si mesma, e nas massas que a reconhecem. "Só em nome de direitos universais da sociedade pode uma classe particular reclamar governo geral para si". Não bastam oSelbstgefühl, pathos espiritual e a energia revolucionária. Deve também existir uma outra classe que se experimente como a esfera onde se pratica o crime notório contra o todo da sociedade, de modo a que a libertação desta classe surja como libertação geral. Por exemplo, a importância negativa-geral da nobreza francesa e do clero condicionou a importância positiva-geral da burguesia francesa como emancipadora.
A Alemanha ficou para trás porque o ancien régime continuou a existir. Nem tem uma classe cuja rudeza a tornasse representante negativa da sociedade, nem uma outra classe com energia e audácia revolucionária suficientes para se identificar com o povo. Cada classe da Alemanha está ainda envolvida em luta com as classes inferior e superior. O Estado moderno libertou o homem, na medida em que as diferenças de religião e de propriedade já não determinam diferenças de estatuto político para o indivíduo. O estado político perfeito é, por sua natureza, a vida genérica do homem. Contudo, a estrutura da vida egoísta mantém-se fora da esfera do Estado. O homem tem uma vida dupla; na comunidade política, vive como ser genérico, na sociedade vive como indivíduo privado. Ainda não chegou à liberdade através da completa socialização. Mas precisamente porque na Alemanha a situação política é anacrónica, os alemães podem radicalizar a ideia do Estado moderno. Em política, os alemães sempre pensaram o que os outros fizeram. Poderão os alemães p.613 e ss. levar a cabo uma revolução à la hauteur des principes ?
Na oposição entre a Alemanha e outras nações ocidentais, Marx é quase nacionalista. Considerava-se um autor que poderia extrair consequências práticas da filosofia hegeliana do Estado mas duvidava que os alemães a levariam a cabo. Como poderia a Alemanha fazer a revolução sem os passos intermédios já dados por outras nações europeias ? Talvez um dia a decadência geral, Verfall , da Europa tornasse a revolução política possível. A emancipação alemã não seria obra de uma classe particular mas do proletariado que, simultaneamente, faz e não faz parte da sociedade burguesa.
O proletariado é um "estamento" que é a dissolução de todos os estamentos, esfera social cujo carácter universal é devido ao sofrimento universal. É contra ele que se comete a injustiça em geral: de seu só tem a humanidade; por isso só se emancipa a si, emancipando a todos. Como é um zero de humanidade, pode ser um ganho total. Quando o proletariado anunciar a dissolução da ordem presente do mundo, apenas revelará o segredo da sua existência que é dissolução desta ordem do mundo. O proletariado será a arma material da filosofia, emancipador do homem: "A filosofia não se pode tornar realidade sem abolir o proletariado, o proletariado não se pode abolir a si próprio sem realizar a filosofia".
Marx reflecte na Reforma protestante, o passado teórico da Alemanha, uma revolução que começa pela especulação, que quebrou a fé na autoridade e instalou a autoridade de uma fé. Libertou o povo da religião externa mas deixou a religião interna. O protestantismo revelou a questão - combater o sacerdote - mas não deu a resposta certa. A luta contra o "padre exterior" foi ganha. Agora é preciso iniciar a luta contra o "padre de dentro". A guerra dos camponeses quebrou-se contra o muro da nova teologia protestante. Agora, no século XIX, ocorreu a destruição dos símbolos dogmáticos na geração de Strauss, Bauer, Feuerbach e Marx. Neste sentido, o marxismo é o produto final de um dos ramos do protestantismo liberal alemão.

3.4. Emancipação e alienação.
"Toda a emancipação é redução do mundo humano, das relações, ao próprio homem". A emancipação religiosa liquidará a consciência imaginadora de deuses. A emancipação politica converterá o indivíduo em cidadão. O homem individual ficará emancipado quando se tornar um ser com essência genérica (Gattungswesen ); quando reconhecer as suas forças como forças sociais e quando não mais separar a força social da política. A ultrapassagem do Estado é uma questão de tempo, cuja estrutura se assemelha à ultrapassagem da religião:"A constituição política foi até agora a esfera religiosa, a religião da vida popular... o céu da generalidade em oposição à existência terrena...A vida política é a escolástica da vida popular.
A alienação é o passado, a emancipação o futuro. O homem auto-alienado perde-se no além religioso, político, social, etc. O cerne da filosofia marxiana da história consiste em prever o fim das vicissitudes nas relações entre homem e natureza. O processo histórico comporta a origem animal do homem, as fases do processo de produção em que participa, a fase de auto-alienação e as possibilidades de emancipação revolucionária.
Os pressupostos reais da história crítica são os indivíduos reais, as suas acções e as condições materiais de vida. O homem distingue-se dos animais ao produzir os meios de vida(Lebensweise) desde a reprodução sexual e a divisão de trabalho ao nível familiar, até ao nível local, tribal e mercado mundial. O desenvolvimento das ideias é paralelo na política, direito, moral, religião e metafísica, A consciência é só ser consciente (bewußstes Sein). As ideologias são produto do processo material. Não possuem história própria. A história crítica deverá substituir a filosofia.
O processo material de produção é a substância irredutível da história. O trabalho humano é alienado pela especialização decorrente dos conflitos inerentes à divisão de trabalho nas condições da produção industrial para um mercado mundial. A consolidação do nosso produto em sachliche Gewalt é um notável factor de evolução. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz também o trabalhador como mercadoria. O trabalhador torna-se servo do seu objecto, nega-se a si próprio no seu trabalho. É apenas um meio de satisfazer necessidades exteriores ao seu trabalho. O trabalhador poderá sentir-se livre no desempenho das funções animais de comer, beber, procriar, alojar e ornamentar-se. Mas na função especificamente humana, permanece um animal. Na abstracção que o separa da esfera de acção humana, torna-se tierisch. Só a ciência e a beleza podem conferir forma ao que o homem produz. A actividade produtiva que distingue e vida humana é degradada ao nível de meio de ganhar a vida. A existência livre torna-se meio para existência física. Esta alienação da produtividade humana é inerente à divisão de trabalho e não se resolve por aumentos salariais que nada mais são do que formas de melhorar a sorte de escravos; não conferem maior dignidade nem destino ao trabalhador. Proudhon pede a igualdade de rendimentos: mas isso apenas tornaria a sociedade em capitalismo para todos e não só para alguns. Nenhuma organização social consegue controlar as condições de existência em sociedade.
Estas considerações provam que Marx não estava particularmente impressionado pela miséria dos trabalhadores. A reforma social não era um remédio para o mal que tinha em mente. O mal é o crescimento da estrutura económica da sociedade moderna até se tornar em poder objectivo ao qual o homem se submete completamente. Entre esses males contam-se:1) Separação entre operário e instrumentos. 2) Dependência do emprego face às empresas; 3) A divisão do trabalho tal como é praticada é um insulto à dignidade humana; 4) A especialização, para aumentar a produtividade destrói a qualidade do produtor 5) A interdependência económica gera acções fora do controle humano e social.

3.5. O homem socialista.
Que espera Marx da revolução comunista ? Por estranho que pareça, as características do futuro homem socialista estão estreitamente relacionadas com o sistema industrial de produção. Marx queria reter o sistema industrial e abolir a especialização humana. O novo homem deveria ser um dia poeta, noutro dia operário, depois pescador, etc. Ser tudo de todas as maneiras sem ter de ser nada. (Ideologia Alemã, p.22) A revolução é necessária para que o homem ganhe auto-determinação (Selbstbetätigung ) e assegure a sua existência. Consistirá na apropriação da totalidade das forças produtivas e terá carácter universal. O proletário é o instrumento ideal desta revolução. Como não está limitado (borniert ) por um tipo especial de propriedade, pode subsumir a propriedade em todos. A associação universal de proletários à escala mundial pode quebrar o poder da estrutura actual económica e desenvolver a energia e carácter necessários para a revolução. Depois o trabalho será transformado em auto-realização. A comunidade ultrapassará a divisão de trabalho e cada um poderá subsumir as forças produtivas e desenvolver plenamente as faculdades humanas.
O indivíduo total, ou o homem socialista, é o objectivo da história. A libertação da propriedade seria o último acto deste drama. Só é independente o ser que se sustenta pelos seus próprios pés, que só deve a existência a si próprio, que cria a sua própria vida. E embora a ideia de criação esteja enraizada na mente humana, o ser-por-si da natureza vai contra todas as experiências tangíveis (Handgreiftlichkeiten ) da vida prática. Onde começa a grande corrente de ser ? Marx proibe essa pergunta! Tais abstracções não têm sentido. O homem que não pôe questões é o homem socialista.

3.6. Comunismo em bruto e comunismo verdadeiro
A essencialidade (Wesenhaftigkeit ) do homem na natureza torna a busca de uma essência além da natureza como inessencialidade (Unwesentlichkeit ) do ser alienante divino. Deixará de ser preciso o ateismo como negação de Deus enquanto condição de posicionamento da existência do homem. O socialismo é a auto-consciência positiva da realidade humana sem a mediação da negação religiosa. (Manuscritos 1844, 3, pp.125 e ss.) O comunismo é uma contra-ideia que visa ultrapassar um estado histórico; não é uma reforma institucional; é uma mudança na natureza do homem.
O comunismo em bruto (roher Kommunismus) pretende a propriedade privada geral e o nivelamento social. É movido pela inveja e é uma manifestação de selvajeria, Niedertracht , na comunização dos bens e das mulheres. O socialismo ou verdadeiro comunismo,wahre Kommunismus, Sozialismus, é o regresso do homem a si mesmo como ser social. É um naturalismo humanístico com a solução do conflito entre o homem e a natureza (Ms. 1844 pp.114-116).

3.7. Manifesto Comunista. Dezembro de 1846 - Janeiro 1848.
Manifesto realiza a naturalização do homem e a humanização da natureza. Como documento de propaganda, nada acrescenta às ideias já expostas. Mas é uma obra-prima de retórica. No preâmbulo, o autor fixa a escala do seu pronunciamento. Trata-se um processo mundial, de um espectro que paira sobre a Europa. Este reconhecimento obriga o novo mundo dos comunistas a clarificarem as suas oposições ao velho mundo reaccionário. A primeira secção desenvolve a perspectiva histórica do comunismo. A história é luta de classes. A visão da sociedade moderna é ainda mais simplista e maniqueista, pois refere apenas a burguesia e o proletariado. A burguesia nasceu dos servos da Idade Média para conquistar o mundo. O seu papel revolucionário na história foi destruir as idílicas relações patriarcais e feudais. Fez milagres maiores que as catedrais, pirâmides e aquedutos; criou a produção cosmopolita, a interdependência das nações, a literatura mundial, fez o campo depender da cidade, o bárbaro do civilizado, o Oriental do Ocidental. Marx louva a burguesia em termos que jamais burguês algum utilizou, fazendo recordar o orgulho absurdo de Condorcet. O esplendor da burguesia é, porém, transitório porque será ela substituida pelo proletariado em várias fases da luta. No começo, há apenas indivíduos que lutam contra a opressão local. Com a indústria, a opressão generaliza-se. As associações de operários terão vitórias e derrotas. A proletarização crescente da sociedade lança grupos educados no proletariado. Surgem os renegados de classe devido à desintegração social. Os burgueses ideólogos juntam-se aos operários, com o que se atinge a época de Marx e Engels.
A segunda secção do Manifesto lida com a relação entre proletários e comunistas. Aqui surgem ideias novas sobre a condução do processo político. Os comunistas não são um partido em oposição a outros partidos operários mas representam o todo. É o dogma fundamental do partido comunista. Não têm que estabelecer princípios próprios distintos do movimento proletário. O que os distingue não é um programa próprio mas o nível universal da sua prática. É a chamada fórmula da vanguarda: os comunistas são a secção mais resoluta dos trabalhadores; são seus objectivos formar o proletariado em classe, derrubar a burguesia, conquistar o poder político. O resto da secção lida com a exposição e defesa dos objectivos finais do comunismo. As ideias comunistas não resultam deste ou daquele reformador (Weltbesserer ). São a expressão das relações actuais de poder na luta de classes. As teses comunistas não são pedidos programáticos para mudar a situação; pelo contrário, revelam a situação e sugerem tendências inerentes ao processo, até se conseguir a sua realização plena. Os comunistas querem abolir propriedade privada. E então ? Quase ninguém a possui ! E se os capitalistas a perderem será expropriação ? Não, porque o capital é poder social, resulta da actividade comum. Se o capital fôr convertido em propriedade social apenas perde o seu carácter de classe. O que os adversários chamam expropriação apenas transforma a situação actual em princípio de ordem pública. O mesmo tipo de argumento é depois aplicado às críticas contra a abolição do casamento burguês, nacionalidade, religião e verdades eternas.
As teses do comunismo elevam a marcha da história à consciência. Fornecem a intuição da ordem que está por vir. Condorcet está presente nesta ideia de um directório que conduz a humanidade, na marcha para o reino da liberdade. Como a história não marcha por si, o directório irá dar uma "mãozinha": a arma é o proletariado como classe extra-social, sem propriedade nem nacionalidade. A conquista do poder será um processo prolongado. Primeiro, a ditadura do proletariado; é preciso centralizar os instrumentos de produção, descapitalizar a burguesia, organizar a classe proletária, aumentar a produção. Através de intervenções despóticas na propriedade, o poder público perderá o seu carácter político por deixar de ser instrumento de classe. Virá então a livre associação em que a liberdade de cada um é condição para liberdade do outro. O Manifesto termina com o célebre apelo, "Proletários nada tendes as perder senão as cadeias. Uni-vos"

3.8. Tácticas.
Em 1850, no Discurso à Liga Comunista, Marx indicara que o principal problema não era a conquista imediata do poder mas a aliança com os grupos democráticos que o tinham alcançado, até que fosse possível traí-los após vitória futura. É a situação da Frente Popular, depois repetida em 1930 e no pós-guerra. É interesse dos comunistas fazerem a revolução permanente para que a pequena burguesia não fique contente com ganhos iniciais. Os comunistas não estão interessados em mudanças na propriedade privada mas na sua abolição; não lhes interessam reformas da sociedade velha, mas a sua liquidação. Todos os meios serão bons para manter a excitação das massas; promessas ao proletariado e ameaças à burguesia; a violência de massas deve ser organizada:"Os pedidos dos trabalhadores devem ser sempre guiados pelas concessões e medidas dos democratas".

3.9. Conclusão
Na raiz da ideia marxiana está uma doença espiritual, a revolta gnóstica de quem se fecha à realidade transcendente. A incapacidade espiritual aliada à vontade mundana de poder provoca o misticismo revolucionário. A proibição das questões metafísicas acerca do fundamento do ser; "Será possível negar Deus e manter a razão ?" destrói a ordem da alma. Mas a par desta impotência espiritual há a vitalidade de um intelecto que desenvolve uma especulação fechada. As Teses sobre Feuerbach mostram que o homem marxiano não quer ser uma criatura. Rejeita as tensões da existência que apontam para o mistério da criação. Quer ver o mundo na perspectiva dacoincidentia oppositorum, a posição de Deus. Cria um fluxo de existência em que os opostos se transformam uns nos outros. O mundo fechado em que os sujeitos são objectos e os objectos actividades, é talvez o melhor feitiço jamais criado por quem queria ser divino. Temos de levar a sério este dado para compreender a força e a consistência intelectual desta revolta anti-teista.
Por outro lado, Marx compreendeu que o crescimento gigantesco das instituições económicas num poder de influência determinante da vida de cada pessoa, inutilizava qualquer debate acerca da liberdade humana. É o único pensador de estatura do século XIX que tentou criar uma filosofia do trabalho humano e uma análise crítica da sociedade industrial. A sua obra principal Das Kapital não é realmente uma teoria económica como as de Smith, Ricardo, Mill. Está cheia de defeitos nas teorias do valor, do juro, da acumulação de capital. É sim uma crítica da economia política, uma tentativa de revelar os supostos nos conceitos da teoria económica e assim chegar ao centro da questão, ou seja, a relação do homem com a natureza e a uma filosofia desta relação, ou seja, o trabalho. Cento e cinquenta anos após Marx é duvidoso que qualquer escola de teoria económica tenha suficientemente desenvolvido este ponto.
O diagnóstico é bom. O sistema industrial está permanentemente ameaçado por impasses, por revoluções adiadas e pela subida do nível de vida. O resultado seria o comunismo bruto. Na sua construção da história, Marx concebeu o desenvolvimento das formas económicas numa humanidade abstracta com um apêndice de ideologias. De facto, o desenvolvimento ocorre em sociedades históricas com vida espiritual.
Podemos chamar "magia" à trasladação da vontade de poder do domínio dos fenómenos para o da substância ou à tentativa de operar nesta como se fosse o domínio dos fenómenos. A tendência para estreitar o campo da experiência humana à area da razão utilitária e pragmática; a tentação de a tornar a preocupação exclusiva do homem; a tentação de a tornar socialmente preponderante por pressão económica e por violência, fazem parte de um processo cultural que visa operar a substância humana através de uma vontade planeadora pragmática. Mas o sonho de criar o super-homem que sucederá à criatura divina, a ideia do indivíduo total que se apropria das faculdades do sistema industrial, para a sua auto-actividade, são empiricamente irrealizáveis. A mudança da natureza humana através da experiência da revolução é um estéril misticismo intramundano. Compreendemo-lo melhor se compreendermos Marx.

GLOSSÁRIO

der vergesellschaftete Mensch homem socializado
umstülpen inverter
Gattungswesen ser genérico descoberto no ser individual
sachliche Gewalt poder objectivo dos produtos que nos rodeiam
sinnliche menschliche Tätigkeit actividade humana sensorial
Selbstbetätigung Auto-determinação, apropriação de forças produtivas
Fetischcharakter der Warenwelt Carácter de feitiço das mercadorias
Handgreiftlichkeiten experiências tangíveis da vida prática
roher Kommunismus Comunismo em bruto,propriedade privada geral
wahre Kommunismus, Sozialismus verdadeiro comunismo/socialismo
Wesenhaftigkeit essencialidade do homem na natureza
Unwesentlichkeit inessencialidade do ser alienante divino
Lebensweise processo de produção material

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