segunda-feira, 23 de março de 2020

"O vírus das elites", por J.R. Guzzo

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O grande escândalo criado pelo coronavírus no Brasil, e a razão pela qual a mídia está em transe com essa história desde o seu começo – os psicólogos apontariam, aí, “sintomas de comportamento obsessivo” – é que a epidemia pega as elites. Se não pegasse, ninguém estaria ligando: desde quando alguém perdeu dois minutos de seu tempo pensando nas multidões inteiras que vivem morrendo em lugares como China, ou Bangladesh, ou África? Você talvez não se conforme em ser jogado no meio das elites, mas não tem jeito: nesse país onde o sujeito se dá por muito feliz quando consegue ganhar 1.500 reais por mês, toda a classe média é elite.


Misérias como a do vírus chinês, que pegam em segundos e derrubam centenas de milhares de pessoas pelo mundo todo é coisa de pobre. Deveria ficar entre eles e não incomodar as moças e moços que se produzem para aparecer nos jornais de televisão, nem os médicos de hospitais que cobram diárias milionárias, nem os cidadãos que têm algum tipo de decisão a tomar a respeito. Infelizmente, não está sendo assim.

Esse diabo de coronavírus pega gente que viaja em voos internacionais, mora em condomínios onde os síndicos fecham as academias de ginástica com medo do contágio e vai fazer degustação de vinhos no norte da Itália – muitos deles pagando a prazo, é verdade, mas é esse o seu mundo. Infectou, Santo Deus, a comitiva do presidente Jair Bolsonaro que acaba de voltar dos Estados Unidos – dos Estados Unidos, a maior potência do mundo, e não da beira de algum rio malsão do sul do Pará onde ainda se pega maleita. Os conselhos que recebem dos meios de comunicação são um primor: sim, você pode sair para passear com o seu cachorro, mas não reúna amigos em sua “varanda gourmet”; sim, você pode sair com a sua bike, com capacetes e bretelles de primeiro mundo, mas não chegue perto de outros ciclistas. Etc. Etc.

Como no “Decameron” de Bocaccio, onde dez jovens bem de vida se refugiam numa vila do campo toscano para fugir à peste em Florença, nossa primeira classe escapa para as suas fazendas, casas de campo e condomínios rurais protegidos por forças de segurança equivalentes ao exército americano. Fala-se muito em Laranjeiras, Trancoso, esse tipo de lugar. A segunda classe tem se se contentar com refúgios mais modestos, mas quem pode também se esconde – em algum lugar. Esse é o começo, o meio e o fim da história toda.

Ninguém está ligando a mínima para a saúde pública – nem as autoridades e nem a elite assustada. Jamais ligaram, em toda a vida. Porque iriam ligar agora? Só se tocam por que acham que dessa vez o bicho pode pegar rico, político,empresário, celebridade, jornalista, gente culta e por aí vamos. Não é nem uma questão de dinheiro; é uma questão de posição social, que fica tanto mais grave quanto mais alto é o galho no qual você está montado.

A saúde pública continuará a droga que sempre foi. Coronavírus? Ninguém precisa de coronavírus para morrer no SUS – por falta de atendimento médico correto, falta de remédios, falta de equipamento, falta de leitos , falta de tudo. Estão morrendo há mais de 30 anos, sem uma mesa redonda de televisão nem editoriais indignados pra mencionar o assunto. Este é o Brasil que existe.

Revista Oeste

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