Diário do Comércio, 3 de abril de 2012
Platão já observava que a degradação moral da sociedade não chega ao seu ponto mais abjeto quando as virtudes desapareceram do cenário público, mas quando a própria capacidade de concebê-las se extinguiu nas almas da geração mais nova. Trezentos jovens insultando duas dúzias de octogenários – eis a imagem daquilo que, no Brasil de hoje, se considera um exemplo de coragem cívica. É possível descer ainda mais baixo? É. Nenhum dos agressores se lembrou sequer de perguntar se algum daqueles velhos, a quem cobriam de cusparadas, xingamentos e ameaças, esteve pessoalmente envolvido nos episódios de tortura que lhes eram ali imputados, ou se o único crime deles não consistia em puro delito de opinião. Que eu saiba, nenhuma acusação de tortura pesa ou pesou jamais contra aqueles oficiais atacados na porta do Clube Militar. O único acusado, o Cel. Brilhante Ustra, não estava presente e foi queimado em efígie. Os outros pagaram pelo crime de achar que Ustra é inocente, que o governo militar foi melhor do que a alternativa cubana ou que as violências praticadas por aquele regime pesam menos do que as suas realizações. Por isso, e só por isso, foram chamados de assassinos e torturadores. Não apenas a “coragem” é o nome que hoje se dá à covardia mais sórdida, mas o “senso de justiça” consiste em acusar a esmo, sem ter em conta a diferença que vai entre aplaudir um regime extinto e ter praticado crimes em nome dele.
Se o simples fato de avaliar positivamente um governo suspeito de tortura faz do cidadão um torturador, então os arruaceiros reunidos na porta do Clube Militar, bem como o seu instigador, o cineasta Sílvio Tendler, são todos torturadores, e o são em muito maior escala do que qualquer militar brasileiro, pelo apoio risonho e cúmplice que, uns mais, outros menos, por ações e omissões, têm dado a regimes incomparavelmente mais cruéis do que jamais o foi a nossa ditadura.
Essa observação aplica-se especialmente, e da maneira mais literal possível, aos militantes do PC do B, a organização mais representada naquele espetáculo. É o partido maoísta, nascido e crescido no culto a um monstro genocida, estuprador e pedófilo, campeão absoluto de assassinatos em massa, que se zangou com a URSS por achar que o governo de Moscou não era violento e cruel à altura do que o exigiam os padrões da revolução mundial. Por todas as normas do direito internacional, a lealdade retroativa a um regime reconhecidamente genocida é crime contra a humanidade. A carga dessa culpa imensurável é a única autoridade moral com que a massa de jovens revoltadinhos se apresenta ante os oficiais das nossas Forças Armadas, acusando-os de crimes que talvez alguns de seus colegas de farda tenham cometido, mas que eles próprios jamais cometeram.
O sr. Silvio Tendler diz que sua mãe foi torturada. É possível. Mas isso dá a ele o direito de instigar uma multidão de cabeças ocas para que acusem de tortura qualquer saudosista do regime militar que encontrem pela frente? Não entende, esse pretenso intelectual, a diferença entre crime de tortura e delito de opinião?
Opinião por opinião, pergunto eu: os méritos e deméritos do regime militar brasileiro já foram examinados com isenção e honestidade, em comparação com a alternativa comunista que suas pretensas vítimas lutavam para implantar no Brasil?
Os brasileiros que, exilados ou por vontade própria, se colocaram a serviço dos regimes de Havana e de Pequim não se acumpliciaram com uma violência ditatorial incomparavelmente mais assassina do que aquela contra a qual agora esbravejam histericamente? Ou será que os cadáveres de cem mil cubanos, dez mil angolanos e setenta milhões de chineses, assassinados com o apoio dessa gente, pesam menos que os de algumas dezenas de terroristas brasileiros? Havana, é verdade, fica longe, Luanda fica ainda mais longe, a China então nem se fala, e o Doi-Codi fica logo ali. Mas desde quando a gravidade dos crimes é medida pela razão inversa da distância em que foram cometidos? Também é fato que os mortos de Cuba, de Angola e da China nunca foram manchete no Brasil, mas devemos acreditar, a sério, que a extensão do mal é determinada objetivamente pelo escarcéu jornalístico concedido a umas vítimas e negado a outras por simpatizantes ideológicos das primeiras?
Essas perguntas, bem sei, não se fazem. Não são de bom tom. Mas, na dissolução geral da própria idéia das virtudes, que senso do bom-tom poderia sobreviver num país cujo presidente se gaba, veraz ou falsamente, de haver tentado estuprar um companheiro de cela, e ainda diz ter saudades do tempo em que os meninos da sua região natal faziam sexo com cabritas e jumentas, se é que faziam mesmo e não foi ele próprio quem os inventou à imagem e semelhança da sua imaginação perversa? E será preciso lembrar que essa mesma criatura, indiciada em inquérito pelo maior esquema de corrupção de que já se teve notícia nesse país, reagiu com um sorriso cínico, alegando-se protegida não pela sua inocência, que nunca existiu, mas pela lentidão da Justiça?
Será exagero, será insulto criminoso chamar de cafajeste o homem capaz de fazer essas declarações em público? E será insana conjetura suspeitar que esses e outros tantos exemplos da cafajestada oficial, copiados por milhares de incelenças, louvados em prosa e verso por uma legião de sicofantas, repassados com orgulho do alto das cátedras, transfigurados por fim em “valores culturais” e aceitos com sorrisos de complacência entre paternal e servil pelas nossas “classes dominantes”, criaram o modelo de coragem e justiça que hoje inspira os bravos agressores de anciãos?
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