Como adoraria me agarrar aos ponteiros do relógio e voltar atrás, recontar aquela história
Bebi durante grande parte de minha vida, mas só entrei nesse vício após parar de jogar, talvez por saudade da vida maravilhosa dentro de campo, dos títulos, amizades, craques, Maracanã lotado... enfim, o futebol é apaixonante. Mas imagino os que beberam por desgosto, por aquela bola decisiva na trave, pelo detalhe, o descuido fatal. A injustiça dói, destroça.
Estou lendo “Dossiê 50”, do saudoso Geneton Moraes Neto, jornalista raro, desses que desapareceram das redações. Ele ouviu o carrasco uruguaio Ghiggia e todos os brasileiros de 50. Os atletas da seleção atual deveriam ser obrigados a ler esse livro para perceberem a colossal diferença de comportamento entre as gerações.
É o que sempre tento, em vão, explicar aqui. Não falo sobre a qualidade do futebol, mas a forma de enxergá-lo. Em um trecho, Danilo, o Príncipe, diz: “Parecia o presidente da República descendo do carro, vaiado. Mas era eu chegando em casa após a derrota”. Impossível não chorar.
E desabafa Juvenal: “Perder aquele jogo para o Uruguai foi como perder uma guerra. Não pedíamos prêmio, nada, nem sabia quanto ganharíamos. Quem vai para a seleção tem que defender a pátria”.
Só nesses dois depoimentos ficam claríssimos dois pontos muito discutidos atualmente, o distanciamento entre o ídolo e a torcida, e a transformação do jogador em mercadoria. Me dói imaginar a dor do lendário Zizinho e é comovente ler o seu depoimento: “Meu sonho era assim: a gente ainda iria jogar contra o Uruguai. Aquilo que aconteceu era mentira”. E a de Bauer: “Vim para ser campeão. Voltei para São Paulo no chão do trem”.
Meu Deus, imaginam algum convocado de hoje vivendo essa tragédia? E a de Bigode, junto com Barbosa apontado como um dos culpados pelo gol uruguaio: “Tempos depois fui jantar em um restaurante com a minha esposa quando ouvi na mesa ao lado: olha ali o culpado pela derrota. Fui embora”. A vitória era certíssima e os 200 mil torcedores não tinham a menor dúvida disso. E leio Barbosa dizendo: “Só três pessoas calaram o Maracanã, Ghiggia, Frank Sinatra e eu”.
Como adoraria me agarrar aos ponteiros do relógio e voltar atrás, recontar aquela história.
Queria ser o vento para soprar aquela bola de Ghiggia para longe. Ah, Deus, me transforme no feiticeiro do tempo, me dê poderes, seja lá o que for, mas não deixe esses homens sofrerem tanto.
Esquece, PC, todos já partiram carregando esse peso!! Fecho o livro, mas guardarei essa história eternamente comigo porque não posso admitir que a dor da derrota seja banalizada. Ou o futebol é paixão ou não é.
Hoje, a frieza impera. Não comparo a qualidade dos jogadores de hoje com os de outrora, mas a relação que tinham com a torcida, do amor que sentiam pela camisa da seleção. A mudança de comportamento e de poder aquisitivo, a tecnologia, nada pode ser capaz de espanar esse sentimento bom e profundo.
O futebol é amor, drama, entrega, dor, vitórias e injustiças. A pureza fazia o nosso futebol mais leve e plástico. Já fomos bailarinos, hoje, somos robôs. Precisamos de mais doçura, como a refletida na frase de Friaça após a derrota de 50: “O trauma foi enorme. Quando dei por mim, estava embaixo de uma jaqueira”
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