Van Gogh — e um método para escritores
Nas cartas de Van Gogh aprendemos algo sobre a arte de escrever, e também sobre a maior das artes: a arte de viver, perdida em nosso mundo.
Desde que começaram a ser publicadas, entre o final do século XIX e início do XX, as cartas de Vincent van Gogh a seu irmão, Theo, têm servido de inspiração para diferentes leitores. A sinceridade e o entusiasmo do artista pulsam nas descrições da natureza, nas brevíssimas resenhas dos livros — ele foi devotado leitor de Shakespeare e Balzac, entre outros — e também na forma como descreve seus estados de ânimo ou seu método de trabalho. O sucesso das cartas é uma prova do quanto estamos prontos a nos identificar com a franqueza, mesmo que isso não resulte numa mudança de comportamento — ou, ainda mais raro, nos torne melhores do que somos.
Mas, à parte as desejáveis conseqüências morais da leitura, pretendi descobrir nesse epistolário o que Van Gogh poderia oferecer ao trabalho do escritor.
Há uma virtude que se apresenta ao longo das cartas: a persistência. Mais que teimoso, Van Gogh foi obstinado. “Continuar, continuar, isso é que é necessário”, escreve, tantas vezes à beira da estafa ou do colapso mental. Ele não tem um plano definido para sua existência — e, muito menos, para uma possível carreira; permanece admiravelmente concentrado no processo criativo — e não no produto que pode resultar dos seus esforços. De tela a tela, apenas anseia repetir os mesmos gestos: do croqui ao esboço, e deste ao quadro. Alegra-se com os resultados, principalmente quando identifica algum progresso. Cada pequena vitória é um ensejo para prosseguir: “Se eu não fizer nada, se não estudar, se não procurar mais, então estarei perdido. Então, ai de mim”.
É verdade que o reconhecimento não veio — ele passou a vida adulta na pobreza, dependendo do irmão e sem conseguir vender seus quadros. Mas recompensa e fama não estavam entre suas preocupações. Van Gogh era movido por uma espécie de transcendência não metafísica, que o levava a ultrapassar sua realidade imediata: fixando-se no mundo e no próprio trabalho de forma plenamente objetiva, conseguiu viver longos períodos num estado de concentração acima da temporalidade.
Ele não “produzia arte”, mas desenhava e pintava. Seu comportamento, diante do ofício que escolhera e da sociedade, não era amaneirado. Recusava qualquer afetação. Jamais deixou-se levar por delírios de grandeza. E cultivou a liberdade de aguardar o êxito com sábia indiferença. Van Gogh poderia, trocando o verbo inicial, repetir com Flaubert: “Escrever é levar uma vida de cachorro, mas é a única que vale a pena viver”.
Estar constantemente envolvido em seu trabalho significou defrontar, dia após dia, a resistência que a natureza oferece ao artista. “Esta resistência”, dizia, “é um excitante para obter melhores resultados”. Se a natureza lhe parecia “intangível”, isso o provocava a “atacá-la com mão firme”, até que se tornasse “dócil”:
A luta com a natureza às vezes tem aquilo que Shakespeare chama de Taming the shrew (istoé, vencer quem resiste, pela tenacidade, ‘por bem ou por mal’). Sob muitos pontos de vista, mas mais especialmente para o desenho, eu acredito que ‘atacar com força é melhor que afrouxar’.
A realidade resiste da mesma forma ao escritor. Entre a observação contínua, o que filtra do real, as idéias que se contrariam em sua mente, seus sentimentos e o esforço para se expressar por meio da linguagem, o escritor precisa cultivar igual veemência, igual comportamento anti-melancólico.
Não importa que, ao fim do dia, constate poucos avanços. Deve estar sempre disposto a ultrapassar seus limites e repetir, de maneira estóica, as palavras de Van Gogh: “É realmente um trabalho relativamente duro do ponto de vista físico; abstração feita do esforço de espírito, da tortura intelectual, este trabalho exige diariamente um esforço de energia bastante considerável”.
Mais que a frase severa de Flaubert, evocando uma existência miserável, essa atitude vigorosa, enérgica, sem preocupação com o triunfo, faz-me recordar o conselho de Viktor Frankl: “Não aspirem ao sucesso — quanto mais a ele aspirarem e dele fizerem um alvo, mais falharão. Porque o sucesso, como a felicidade, não pode ser perseguido; deve acontecer… como se fosse o efeito secundário involuntário da dedicação pessoal a algo cuja grandeza nos ultrapassa”.
A conduta de Van Gogh impressiona ainda mais no tempo atual, quando tantos se apegam ao vitimismo e à autocomiseração. Não importava que ninguém reconhecesse seu trabalho — bastava-lhe a consciência de que “o caminho para fazer melhor mais tarde é fazer hoje tão bem quanto possível, e então naturalmente haverá progresso amanhã”.
Quantos não desistem após os primeiros esforços? A idolatria dos derrotados, tão repugnante para Ernest Hemingway, continua a comemorar os que fracassam, afinal, como ele próprio afirmava, “aqueles que não perduram são sempre mais amados, já que ninguém tem que vê-los em suas lutas infindas, monótonas, implacáveis, sem trégua, que eles inventam para fazer algo do jeito como acreditam que deve ser feito, antes de morrerem”.
Nas cartas de Van Gogh aprendemos algo sobre a arte de escrever, e também sobre a maior das artes: a arte de viver, perdida em nosso mundo.
Desde que começaram a ser publicadas, entre o final do século XIX e início do XX, as cartas de Vincent van Gogh a seu irmão, Theo, têm servido de inspiração para diferentes leitores. A sinceridade e o entusiasmo do artista pulsam nas descrições da natureza, nas brevíssimas resenhas dos livros — ele foi devotado leitor de Shakespeare e Balzac, entre outros — e também na forma como descreve seus estados de ânimo ou seu método de trabalho. O sucesso das cartas é uma prova do quanto estamos prontos a nos identificar com a franqueza, mesmo que isso não resulte numa mudança de comportamento — ou, ainda mais raro, nos torne melhores do que somos.
Mas, à parte as desejáveis conseqüências morais da leitura, pretendi descobrir nesse epistolário o que Van Gogh poderia oferecer ao trabalho do escritor.
Há uma virtude que se apresenta ao longo das cartas: a persistência. Mais que teimoso, Van Gogh foi obstinado. “Continuar, continuar, isso é que é necessário”, escreve, tantas vezes à beira da estafa ou do colapso mental. Ele não tem um plano definido para sua existência — e, muito menos, para uma possível carreira; permanece admiravelmente concentrado no processo criativo — e não no produto que pode resultar dos seus esforços. De tela a tela, apenas anseia repetir os mesmos gestos: do croqui ao esboço, e deste ao quadro. Alegra-se com os resultados, principalmente quando identifica algum progresso. Cada pequena vitória é um ensejo para prosseguir: “Se eu não fizer nada, se não estudar, se não procurar mais, então estarei perdido. Então, ai de mim”.
É verdade que o reconhecimento não veio — ele passou a vida adulta na pobreza, dependendo do irmão e sem conseguir vender seus quadros. Mas recompensa e fama não estavam entre suas preocupações. Van Gogh era movido por uma espécie de transcendência não metafísica, que o levava a ultrapassar sua realidade imediata: fixando-se no mundo e no próprio trabalho de forma plenamente objetiva, conseguiu viver longos períodos num estado de concentração acima da temporalidade.
Ele não “produzia arte”, mas desenhava e pintava. Seu comportamento, diante do ofício que escolhera e da sociedade, não era amaneirado. Recusava qualquer afetação. Jamais deixou-se levar por delírios de grandeza. E cultivou a liberdade de aguardar o êxito com sábia indiferença. Van Gogh poderia, trocando o verbo inicial, repetir com Flaubert: “Escrever é levar uma vida de cachorro, mas é a única que vale a pena viver”.
Estar constantemente envolvido em seu trabalho significou defrontar, dia após dia, a resistência que a natureza oferece ao artista. “Esta resistência”, dizia, “é um excitante para obter melhores resultados”. Se a natureza lhe parecia “intangível”, isso o provocava a “atacá-la com mão firme”, até que se tornasse “dócil”:
A luta com a natureza às vezes tem aquilo que Shakespeare chama de Taming the shrew (istoé, vencer quem resiste, pela tenacidade, ‘por bem ou por mal’). Sob muitos pontos de vista, mas mais especialmente para o desenho, eu acredito que ‘atacar com força é melhor que afrouxar’.
A realidade resiste da mesma forma ao escritor. Entre a observação contínua, o que filtra do real, as idéias que se contrariam em sua mente, seus sentimentos e o esforço para se expressar por meio da linguagem, o escritor precisa cultivar igual veemência, igual comportamento anti-melancólico.
Não importa que, ao fim do dia, constate poucos avanços. Deve estar sempre disposto a ultrapassar seus limites e repetir, de maneira estóica, as palavras de Van Gogh: “É realmente um trabalho relativamente duro do ponto de vista físico; abstração feita do esforço de espírito, da tortura intelectual, este trabalho exige diariamente um esforço de energia bastante considerável”.
Mais que a frase severa de Flaubert, evocando uma existência miserável, essa atitude vigorosa, enérgica, sem preocupação com o triunfo, faz-me recordar o conselho de Viktor Frankl: “Não aspirem ao sucesso — quanto mais a ele aspirarem e dele fizerem um alvo, mais falharão. Porque o sucesso, como a felicidade, não pode ser perseguido; deve acontecer… como se fosse o efeito secundário involuntário da dedicação pessoal a algo cuja grandeza nos ultrapassa”.
A conduta de Van Gogh impressiona ainda mais no tempo atual, quando tantos se apegam ao vitimismo e à autocomiseração. Não importava que ninguém reconhecesse seu trabalho — bastava-lhe a consciência de que “o caminho para fazer melhor mais tarde é fazer hoje tão bem quanto possível, e então naturalmente haverá progresso amanhã”.
Quantos não desistem após os primeiros esforços? A idolatria dos derrotados, tão repugnante para Ernest Hemingway, continua a comemorar os que fracassam, afinal, como ele próprio afirmava, “aqueles que não perduram são sempre mais amados, já que ninguém tem que vê-los em suas lutas infindas, monótonas, implacáveis, sem trégua, que eles inventam para fazer algo do jeito como acreditam que deve ser feito, antes de morrerem”.
“Abrir caminho entre o que sentimos e o que podemos”
Mas haveria um método sob esse empenho diário? Mais que um método, há um ato cognitivo realista, consciente: para Van Gogh, pensa-se “muito mais corretamente quando as idéias surgem do contato direto com as coisas, do que quando se olham as coisas com o objetivo de encontrar esta ou aquela idéia”. Na contramão do pensamento ideológico — pronto a repelir os fatos que não se encaixem na sua fôrma, no molde em que toda a realidade precisa, à força, ser inserida —, Van Gogh prefere “olhar longamente as coisas”, pois é o que “nos amadurece e nos faz conceber mais profundamente”.
O desdobramento dessa forma de observar é duplo. Primeiro, trata-se de freqüentar a escola da paciência. Van Gogh admira a frase de Gustave Doré: “Tenho a paciência de um boi”. Ele vê na afirmativa “uma honestidade decidida”, a honestidade que recusa o “grasnido dos corvos”, dispostos a repetir idéias prontas sobre o tristemente afamado “dom dos artistas”. Talento não é dádiva, mas, sim, conquista da serenidade, semelhante ao exercício de observar “silenciosamente surgir o trigo, crescerem as coisas”, o que exige uma “paciência digna”.
O segundo desdobramento — tão esquecido quanto o primeiro pelos apressados e talvez por isso lacônicos escritores contemporâneos — arremata o método: a obra notável não nasce do mero impulso, mas do “encadeamento de muitas pequenas coisas reunidas num todo”. Desenhar e pintar — assim como escrever — é “abrir caminho através do muro de ferro invisível que se encontra entre o que sentimos e o que podemos”. Não devemos “golpeá-lo com força”, diz Van Gogh, mas atravessá-lo lentamente, usando “uma lima”. Assim, ao final do dia, olhando para “uma quantidade de esboços”, o artista sabe que ali existe muito mais, ali se materializa o “tranqüilo desejo de trabalhar”. Um desejo, para Van Gogh, incansável:
No caso de não bastarem cinqüenta, desenharei cem, e se isto ainda não for o suficiente farei ainda mais, até chegar exatamente onde quero, ou seja, até que tudo seja redondo e que na forma não haja de modo algum nem fim nem começo, mas que se forme um conjunto harmonioso de vida.
Nem todos os dias são produtivos, entretanto. Muitas vezes, sem conseguir desenhar um só esboço, Van Gogh não fica apenas descontente, mas sente-se “louco, patife, ou velhaco”. As possibilidades podem se mostrar “desastrosas”, mas sabe que não deve se prender aos fracassos. As cartas são fundamentais também por isso: não apresentam a história do sucesso ou da derrota, mas da vida real, ampla, inteira.
Meticuloso ou tomado pela loucura, “como um oráculo grego em seu trípode”, Van Gogh não desiste. As telas levam, na região do Midi, até um ano para secar. Não importa. Permanece fiel à pintura, sua “amante ruim”, perdulária e sempre insatisfeita — tem a obstinação de Flaubert, que podia levar três semanas para escrever dez páginas.
As semelhanças entre as cartas de Van Gogh e Flaubert são inúmeras. Eles são o mesmo urso solitário, como Flaubert gostava de se imaginar: certos de que não há conquista sem trabalho atroz, seguem proclamando seu desinteresse pelo futuro e pelo renome.
…
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Mas haveria um método sob esse empenho diário? Mais que um método, há um ato cognitivo realista, consciente: para Van Gogh, pensa-se “muito mais corretamente quando as idéias surgem do contato direto com as coisas, do que quando se olham as coisas com o objetivo de encontrar esta ou aquela idéia”. Na contramão do pensamento ideológico — pronto a repelir os fatos que não se encaixem na sua fôrma, no molde em que toda a realidade precisa, à força, ser inserida —, Van Gogh prefere “olhar longamente as coisas”, pois é o que “nos amadurece e nos faz conceber mais profundamente”.
O desdobramento dessa forma de observar é duplo. Primeiro, trata-se de freqüentar a escola da paciência. Van Gogh admira a frase de Gustave Doré: “Tenho a paciência de um boi”. Ele vê na afirmativa “uma honestidade decidida”, a honestidade que recusa o “grasnido dos corvos”, dispostos a repetir idéias prontas sobre o tristemente afamado “dom dos artistas”. Talento não é dádiva, mas, sim, conquista da serenidade, semelhante ao exercício de observar “silenciosamente surgir o trigo, crescerem as coisas”, o que exige uma “paciência digna”.
O segundo desdobramento — tão esquecido quanto o primeiro pelos apressados e talvez por isso lacônicos escritores contemporâneos — arremata o método: a obra notável não nasce do mero impulso, mas do “encadeamento de muitas pequenas coisas reunidas num todo”. Desenhar e pintar — assim como escrever — é “abrir caminho através do muro de ferro invisível que se encontra entre o que sentimos e o que podemos”. Não devemos “golpeá-lo com força”, diz Van Gogh, mas atravessá-lo lentamente, usando “uma lima”. Assim, ao final do dia, olhando para “uma quantidade de esboços”, o artista sabe que ali existe muito mais, ali se materializa o “tranqüilo desejo de trabalhar”. Um desejo, para Van Gogh, incansável:
No caso de não bastarem cinqüenta, desenharei cem, e se isto ainda não for o suficiente farei ainda mais, até chegar exatamente onde quero, ou seja, até que tudo seja redondo e que na forma não haja de modo algum nem fim nem começo, mas que se forme um conjunto harmonioso de vida.
Nem todos os dias são produtivos, entretanto. Muitas vezes, sem conseguir desenhar um só esboço, Van Gogh não fica apenas descontente, mas sente-se “louco, patife, ou velhaco”. As possibilidades podem se mostrar “desastrosas”, mas sabe que não deve se prender aos fracassos. As cartas são fundamentais também por isso: não apresentam a história do sucesso ou da derrota, mas da vida real, ampla, inteira.
Meticuloso ou tomado pela loucura, “como um oráculo grego em seu trípode”, Van Gogh não desiste. As telas levam, na região do Midi, até um ano para secar. Não importa. Permanece fiel à pintura, sua “amante ruim”, perdulária e sempre insatisfeita — tem a obstinação de Flaubert, que podia levar três semanas para escrever dez páginas.
As semelhanças entre as cartas de Van Gogh e Flaubert são inúmeras. Eles são o mesmo urso solitário, como Flaubert gostava de se imaginar: certos de que não há conquista sem trabalho atroz, seguem proclamando seu desinteresse pelo futuro e pelo renome.
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