No final de 2012, eu (Mario) recebi a encomenda, por meio da agente literária Laura Susjin, de escrever um texto para a belíssima revista libanesa Portal 9 (www.portal9journal.org), editada em árabe e inglês. O tema era "Praça". Eu não podia fugir à coincidência, visto que morava numa praça, em Paris, como correspondente da revista Veja.
"Place du Palais Bourbon" foi publicado no Líbano, na primavera (no hemisfério Norte) de 2103. Quase um ano depois, a revista brasileira Dicta&Contradicta estampou uma segunda versão, "2, Place du Palais Bourbon", em que o narrador diz que o trabalho não foi aceito pelo editor libanês. Jogo de escritor.
É a segunda versão que resolvi reproduzir aqui (essa também é a graça de ser sócio de um jornal: você pode autodivulgar-se sem pudor). Espero que gostem. Há muita política nele:
2, Place du Palais Bourbon
Estou comendo uma madeleine de supermercado. Ainda que fosse uma madeleine caseira, como as que Proust comia, ela não teria efeito sinestésico em mim. E, se isso fosse possível, eu não saberia escrever como Proust. Ele teceria uma linda reflexão, por exemplo, sobre a praça em que moro, usando-a de pista de decolagem para voos vertiginosos como os de Harry Potter em sua vassoura mágica. Sim, estou juntando Proust e Harry Potter, o que é prova de como madeleines, no meu caso, reduzem ainda mais o que é já minúsculo – meu trabalho de escritor. Os bons autores, ou aqueles que se acreditam bons, usam o termo “minha literatura”, para denotar uma particularidade inerente a suas obras. Eu não ouso. Alguém que faz uma associação livre entre Proust e Harry Potter não pode falar em “minha literatura”. No máximo, pode culpar Proust por ter aberto a porta para que outros como eu pudessem fazer associações livres.
Madeleine de supermercado, Proust. A praça em que moro fica em Paris. Passo horas entrevendo-a através de uma das janelas da sala. Mas ela não me inspira nenhum sentimento. E, no entanto, é uma bela praça, em endereço elegante, com nome nobre: Place du Palais Bourbon. Fica em frente à verdadeira entrada da Assembleia Nacional francesa, cuja falsa entrada dá sobre outra praça, a da Concorde. Aqui do lado existe uma terceira. Tão grande que é uma esplanada, a dos Invalides, em cujo edifício majestoso repousa a tumba de Napoleão Bonaparte, meu vizinho mais ilustre, acho eu. Há também a praça da Igreja de Santa Clotilde, perto da minha agência bancária. O portão de ferro da igreja serve como gol para os meninos que jogam futebol no final da tarde -- e, invariavelmente, há uma bola presa entre as esculturas góticas tardias que enfeitam os arcos da entrada. Um dia, quando atravessava a praça, um menino me chamou: “Senhor, venha ver, venha ver!” Era um pato morto dentro de um saco plástico. O menino ficou esperando minha reação, mas eu só consegui dizer “que pena”. Eu não senti pena.
Como vim parar aqui, se não sou francês? Como vim parar aqui, se não sou um entusiasta de Paris, embora reconheça suas qualidades de mulher pela qual não se é apaixonado? (só para os franceses, Paris é uma cidade no masculino, “Le Vieux Paris”) Como vim parar aqui, se não fui anexado como o corso Napoleão Bonaparte? Sou um exilado. Limito-me a dizer que tive de sair do meu país natal por defender a lei no cumprimento do meu ofício. O dado irônico é que na praça em que moro há uma estátua chamada “A Lei”. É mais visível da janela do quarto. Quando acordo e abro a janela, dou de cara com a Lei.
Assim como madeleines jamais me transformariam em um Proust, o exílio não faz de mim um herói. Sou um homem e sua circunstância -- frase que, no mais das vezes, define um idiota. Mas não me sinto um idiota. Não sinto nada. É bom não sentir nada. É bom não sentir nada a respeito de si próprio. E não tenho ninguém a meu lado que possa ter uma opinião a meu respeito. É bom não ter ninguém ao lado que emita opiniões sobre você. Meu exílio é solitário como o último sanduíche de presunto ou atum que corro a comprar antes que a loja da rue de Bourgogne feche e eu fique sem jantar. Não julgue minhas linhas autocomplacentes, como o editor da revista libanesa que encomendou este – conto, ensaio, autografia? Elas só expressam o meu cotidiano. Os sanduíches são bons, e eu poderia ser mais organizado e fazer compras suficientes para não ter de sair correndo em busca da refeição noturna.
A Place du Palais Bourbon ajuda a que eu não sinta nada. Nela, não há crianças, não há fontes, não há árvores, não há bancos, não há namorados, não há bancas de jornal, não há vendedores de crepes, cachorros quentes ou badulaques turísticos. É uma praça de pedra, cercada por edifícios que datam do final do século XVIII e de meados do século XIX, dominada pela estátua “A Lei” e por uma bandeira da França em cima do pórtico da assembleia. Um pórtico com um relógio que, à noite, exibe um mostrador verde-limão. Às vezes, sinto algo, admito — que sou um estranho como o verde-limão do relógio. Mas não sei dizer se é um sentimento em relação a mim ou à praça. Talvez sejam dois sentimentos que se fundem. De qualquer forma, eles esvanecem rapidamente, e eu passo a meu presente estado natural: o de não sentir nada.
Eu diria que a Place du Palais Bourbon é uma cenografia da origem disso a que chamamos praça. Minha tese literária é que as praças nasceram como simulação urbana das grandes clareiras que proporcionavam a nossos ancestrais pré-históricos a sensação de amplidão. Era perigoso sair ao aberto de uma clareira, animais predadores e inimigos de tribos rivais sempre à espreita, mas o impulso devia ser irresistível. Finalmente, o céu. Finalmente, o horizonte infinito. Há um bom pedaço de céu sobre a Place du Palais Bourbon. A lua quase sempre permanece enquadrada na janela da sala próxima à mesa em que trabalho. Não sinto nada em relação à lua. Ela não evoca reminiscências, amores ou curiosidade sobre a origem do universo. A lua da Place du Palais Bourbon é só um ponto branco, ora maior, ora menor, nas noites límpidas. A lua da Place du Palais Bourbon é um rochedo morto que projeta sua luz morta sobre pedras mortas.
De simulações de clareiras, as praças passaram a ser cenários em que o céu e o horizonte só ampliavam o infinito de nossas crenças arrogantes, de nossas ideias boçais. Na Atenas antiga, as praças serviam à filosofia que elevou o homem a uma transcendência inexistente e à democracia dos poucos iguais. Na Roma dos césares, as praças serviam ao circo feroz proporcionado pelos poucos iguais ao restolho humano. Na Idade Média, as praças eram palco de autos de fé. Boa parte das praças ainda são extensões de igrejas. A mais monumental delas, a de San Pietro, em Roma, foi idealizada por Lorenzo Bernini, para que todos nós nos sentíssemos pequenos diante da Igreja Católica – e reverentes ao poder divino, representado por ela. Em San Pietro, eu me senti alegremente pequeno quando a conheci. Depois, comecei a não sentir nada quando ultrapasso o jogo barroco das colunas de Bernini e adentro o espaço projetado por ele.
Há também praças em que predominam símbolos do poder temporal. A praça da Signoria, em Florença, com seu Palazzo Vecchio, é uma das mais célebres. A primeira imagem que me vem à cabeça é a de uma noite chuvosa em que eu, acompanhado já não me recordo de quem, estava indisposto para apreciar a sua arquitetura magnífica. Um enjoo permanente, quase quimioterápico, tomara conta de mim na enésima visita à sala de visitas dos florentinos (aí está outra função das praças italianas). Anos depois, não muitos, estive em outra praça do poder temporal: a Tiananmen, em Pequim, na qual sobressai a fotografia de Mao Tsé-Tung pendurada na muralha do antigo palácio imperial. Lá, a imagem da Lei é o rosto redondo de Mao. Quando visitei a praça Tiananmen, fiquei perturbado com a quantidade de gente andando ao redor da bandeira chinesa no centro daquela imensidão desprovida de arquitetura. Não fiquei triste porque o regime havia matado lá um grupo de estudantes, vinte anos antes. É difícil entristecer-se diante da fotografia de Mao. Em Tiananmen, só senti o ridículo da ideologia que mata a tristeza, mata a alegria, mata a clareira.
Pela televisão e pelos jornais, acompanhei a multidão que ocupou a Praça Tahrir, no Cairo, para exigir o fim da ditadura egípcia. Assim como em Pequim, as grandes praças se transformaram em lugares de demonstração popular. Eu não sinto nada em relação a demonstrações populares. Minto. Sinto medo. A massa como um organismo único, dotado de vontade própria, é um monstro e, como tal, me assusta. Jamais irei à praça Tahrir. Pela televisão e pelos jornais, sua primavera pareceu-me um verão violento e nada mais.
Eu não tenho muito mais a dizer sobre praças, porque não tenho muito mais a dizer sobre mim ou sobre o mundo. O editor libanês não gostou de eu não ter muito mais a dizer sobre praças. Esse era o tema do número para a qual fui convidado a escrever. Ele até toleraria o que julgou ser autocomplacência, mas queria um sabor nacional em troca. Errou de cozinheiro. Sou sensaborão feito uma madeleine de supermercado. Queria também que eu discorresse sobre o meu exílio. Eu disse não. Assim, meu esboço – de conto, ensaio, autografia? -- foi rejeitado. Eu não tenho problemas com rejeição.
Na falta do que fazer, agora que cai a noite na Place du Palais Bourbon, e com a liberdade de ter sido recusado, decidi arrematar esta encomenda. Sabor nacional: as praças do meu país não passam de buracos mais feios do que o horror circundante. São povoadas de mendigos, traficantes, drogados, ladrões, prostitutas. Fedem a urina. Fim do sabor nacional. Sobre a minha relação com praças de verdade, não tenho a paixão antropológica que me permitiria apreciar aquelas que parecem simular tão-somente clareiras, como a dos museus em Amsterdam. As ruínas de Grécia e Roma deixaram de me emocionar, porque nelas só vejo a semente de nossa arrogância. Não acredito no Deus católico e, por isso, as grandes praças a ele dedicadas não me sensibilizam com a sua arquitetura que diminui o homem não à sua exata proporção, mas o reduz ainda mais a fim de engrandecer um ser sobrenatural que nós próprios criamos à nossa imagem e semelhança. Nas praças de Deus, ficamos menores porque nos vemos maiores do que somos, eis o paradoxo. Sou tão indiferente ao poder que já não desfruto histórica e esteticamente das praças construídas em homenagem a governantes. Temo a massa e, assim, fujo das que servem como palco para suas demonstrações, por mais justas que possam parecer.
O que me restou foi a Place du Palais Bourbon. Mas a sua beleza pétrea é desgastada continuamente pelos automóveis que a volteiam. No fundo, ela não passa de uma rotatória, em cujo centro está a estátua da Lei. Talvez eu devesse fechar as cortinas para nunca mais olhar a Place du Palais Bourbon. Talvez eu devesse procurar uma praça dentro de mim. Uma praça em que um menino brincava, e imaginava figuras desenhadas no céu vespertino, e projetava o futuro, e conversava com amigos. Um lugar tão comum quanto um lugar-comum. Mas eu teria de criar do nada esse menino. Eu teria de erigir do nada essa praça interior. Não posso, não ouso. Não sinto nada a meu respeito. O nada tem gosto de madeleines de supermercado. É bom poder comprar madeleines de supermercado.
"Quando abro a janela, dou de cara com a Lei."
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